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Barbuy: senso comum (11) - arte

quinta-feira 7 de outubro de 2021, por Cardoso de Castro

  

11. A perda da significação do ritmo se traduz ao olhar de qualquer observador por uma série de fenômenos, cuja evidência é inegável; as grandes cidades, onde desfilamos como expressões transitórias de massas anônimas — hóspedes passageiros de moradias coletivas — onde a confusão, o caos, a rotina, a resignação, a domesticação nos reduzem a apêndices de máquinas, a peças de engrenagens, matam em [161] nós todo sentimento do ritmo interior e exterior. As técnicas são inimigas do ritmo, destruidoras da sabedoria da vida. As técnicas estão unicamente voltadas para o que Heidegger   denomina com justeza a existência banal, subsumida no utilitário e no econômico; ainda, não é exato que as técnicas solucionem sempre os problemas do útil e do econômico; ao contrário, as técnicas em grande parte criam os problemas que se propõem depois a resolver; manifestação direta da planificação científica, as técnicas conseguem resolver problemas dificílimos pela razão muito simples de que foram elas mesmas que puseram esses problemas; quando um problema não é posto pela técnica, mas pela vida, a técnica não o resolve; e não vamos aqui entender por vida a existência artificial do homem contemporâneo, totalmente dominado pela técnica; as necessidades artificiais de um tal tipo humano requerem a intervenção dos inventos técnicos, porque são necessidades nascidas da técnica e esse mesmo tipo humano está conformado à imagem e semelhança da técnica. A técnica substitui nele o natural pelo artificial, o que se vive pelo que se usa, o que se cria pelo que se compra e se vende. Todo ritmo da vida foi recalcado na sua alma e até a visão do ritmo cósmico, das noites e dos dias, das estações do ano e de tudo o que manifesta a harmonia das esferas, desapareceu sob a técnica da eletricidade. Onde não há ritmo não pode haver sequer a ideia da duração; o sol e a chuva, as noites e os dias, a primavera e os invernos se tornam cada vez mais indiferentes às cidades, onde a vida natural — vida de natureza — é substituída pela vida artificial — vida de técnica. E dos resultados inúmeros desta destruição do sentido do ritmo e da duração, é fácil apontar exemplos visíveis, palpáveis, vulgares, qual por exemplo o declínio de todas as formas de expressão artística.

A arte, em todos os tempos culturais nasceu da visão do sentido da vida, da unidade do real, da existência da terra, do céu e do inferno; abolidos o espaço e o tempo, as regiões sobrenaturais do bem e do mal, do divino e do infernal, consequentemente o reino da religião e do destino, já não podiam subsistir. Com o sentido superior da vida, desapareceu a arte, que era sua manifestação. A arte, que sempre esteve ligada ao mítico e ao religioso, não podia sobreviver ao mito e à religião. A profanização ou, o que é o mesmo, a profanação [162] do sagrado, matou todas as artes porque rompeu o anel da unidade que liga o homem aos mundos inferiores ou infernais e aos superiores ou celestes. Era desta ligação que nascia a arte, a tal ponto que a arquitetura nasceu com o templo, a escultura com a imaginação do divino e a dança com o rito; toda a arte grega não é senão uma prece endereçada aos deuses e um testemunho de respeito ao invisível; tal é o que ilustra o conhecido exemplo de Fídias, que foi condenado por ter insculpido pela primeira vez o rosto de um mortal, que era ele próprio. A Idade Média, que concebeu a própria vida como projeção do heroico e portanto como devotamente ao divino, em tudo quanto se exprime artisticamente está ligada à concreção dos infernos e dos céus e ao drama da liberdade humana; Hieronimus Bosch desenhou esse drama em linhas tão impressionantes, que ficaram para sempre como um testemunho de verdadeira arte, porque de verdadeira religião; e se a pintura da Renascença nunca mais foi excedida, é justamente porque a tragédia da religiosidade que se perdia recrudesceu o drama do homem diante da eternidade. Mas a arte estava indissoluvelmente unida à heterogeneidade dos momentos, por isso ao valor transcendental de cada ato humano, à desigualdade de cada cumprimento da vida, à salvação e à perdição e, em termo último, à noção do momento privilegiado.

A desigualdade dos momentos e o caráter decisivo de um certo momento são correlatos da intuição do momento privilegiado da criação, do momento privilegiado da Redenção e do momento privilegiado em que a nossa liberdade atende a um apelo interior, em detrimento de todos os outros.

Mas a projeção científica do tempo homogêneo não podia receber o dogma da criação, nem o da redenção, nem a existência da liberdade, porque se todos os momentos são repetições do idêntico, a criação tem que ser explicada mecanicamente, a redenção alegoricamente, a liberdade subjetivamente.

O tempo científico é uma sucessão quantitativa, de cujo campo são banidos todos os valores qualitativos. Como disse Bergson  , o movimento é banido pela ciência, que o confunde com a soma dos instantes artificialmente parados e [163] mortos na sua vitalidade. Ora bem, se arte é movimento, como pode haver arte numa realidade cortada dos seus anéis com Deus, reduzida a mera manifestação do pensar científico? A arte deixa de existir na mesma proporção em que desaparece a realidade de que é a tradução; não há agora nada mais a traduzir em forma de arte, porque a explicabilidade das cousas é do domínio da ciência, ainda mesmo que a ciência determine seus próprios limites, inicialmente com a pretensão já assinalada de ter explicado alguma cousa dentro desses limites e finalmente sem compreender que, se tivesse explicado alguma cousa até certos limites da realidade, porque não explicaria a realidade toda? O que é que impediria a ciência se o seu método fosse até certo ponto da realidade, de ir até o fim? Se a ciência não pode ir até o fim, exaurindo a realidade, será que não seguiu um caminho errado, deixando tudo por explicar desde o começo? E o que são esses “limites do cognoscível” de que falavam os importantes positivistas do século XIX? Pois bem, esses limites do cognoscível que não se encontram só no termo, mas também no começo e em todos os pontos do método científico, são aquelas cousas que as culturas de antanho exprimiam artisticamente, mítica ou religiosamente porque era esse o único meio de exprimi-las. É certo que não podem as palavras nem as fórmulas algébricas exprimir o que exprimem as sinfonias de Brahms, que só pode exatamente ser expresso por meio da música e daquela música particular; com certeza, se os artistas pudessem dizer em palavras ou em fórmulas o que disseram em arquitetura, em escultura, em pintura, em música nunca teria havido arquitetos, escultores, pintores e músicos. É este o reino incognoscível que limita e invalida toda ciência porque este é o reino da vida. Mas quando a existência se torna o produto das manipulações científicas, tudo o que não é ciência definha e tudo o que é arte morre. A arte foi desaparecendo aos poucos, com momentos de íntima consciência dramática, como surgem na grande música romântica do século passado, em instantes reais de agonia — combate, luta, como diz o termo — sentindo-se morrer como um corpo ao qual tinham tirado a alma. O Romantismo foi uma dessas reações contra o nada, descrita na Morte e Transfiguração de Richard Strauss, [164] um eco wagneriano que morreu pedindo uma ressurreição do mito na Teatrologia e uma ressurreição do heroico religioso em Parsifal. A dramaticidade destes apelos finais não podia conter-se nas formas da música tradicional e buscou a mais tensa, a mais enérgica das formas de expressão da angústia humana, que é a música romântica. Esta música se associa ao esforço de toda a filosofia idealista numa desesperada tentativa de retorno ao concreto, à reconstrução de um universo escatológico, onde houvesse horizonte, onde houvesse um acima e um abaixo, onde houvesse cousas sentidas e não objetos manipuláveis. Só a música, que vive por excelência o mistério dos momentos desiguais, podia desenrolar a façanha fabulosa de Siegfried acordando Brunhilde da hipnose de uma ilusão mortal; mas foram inúteis todas as lutas, todas as travessias do fogo mágico, porque Siegfried e Brunhilde, imagens do mortal e do Walhalla divino, sucumbiram juntos na pira final, quando a marcha fúnebre do herói anuncia a morte, não de um herói, mas de todo heroísmo, de todo mito, de toda religião, de toda faculdade de crer, de todo encantamento e de toda poesia. Por isso, se há um significado no terrível drama da alma contemporânea, este só se pode dar na consciência de que é preciso devolver ao homem o sentido da sua vida, que não é outro senão o sentido do religioso, buscando, como os cavaleiros do Graal, através de jornadas indizíveis, o objeto transcendente da existência. Porque se a vida tem um fim, este não pode ser senão um fim que transcende à vida; se a transcendência estivesse na vida mesma, como dizem Heidegger e outros existencialistas, então a vida seria o fim de si mesma, o que é o mesmo que dizer que a vida não tem finalidade, nem sentido. Nada tem sentido se Deus não existe, nem Siegfried, nem Parsifal. Mas, se Deus existe, viver é transcender-se, é superar-se; eis porque, todos os tempos que acreditaram em Deus, acreditaram no herói. Se todos têm que resgatar a vida pela morte, não importa então morrer mas como e porque se morre: se o instante da morte difere de todos os demais é porque o tempo não é homogêneo, é porque o instante da morte é aquele em que se trava a última e suprema batalha do destino. Mas tudo isto parece devaneio e utopia, como algo que não cabe — utopos — quando se perdeu a noção do ritmo e da arte. [165]

Quando a obra de arte parece o fruto psicanalítico de algum poeta inadaptado, então o tempo já se encerrou e não há nada mais do que a análise, a catalogação dos fatos e a prospecção mecânica do que é “positivo”. Já nada mais se cria, senão que se desenvolve a tendência a destruir o que foi criado. Quando se nega o ato criador do herói, do santo e do artista, também se nega o ato criador de Deus. E quando se desfiguram as obras de arte, também se desfiguram as imagens de Deus. Por isso, está na lógica do desenrolar científico, a negação da arte, como esteve na sua lógica a luta contra Deus. O ritmo se perdeu, já não pode haver criação de espécie alguma. Dissolve-se ao contrário o que foi criado, como claramente se vê nas tendências da chamada “arte moderna”. É uma arte que desconhece a duração e o ritmo e que os desfigura; na música, a foxtrotização de páginas de Chopin e Beethoven, as formas predominantes do swing, todo o complexo da dissonância, revela a obliteração do senso da melodia, que é a forma superior do ritmo; os poucos retardatários são vistos com espanto por um século em cuja alma vazia ecoam os ruídos frenéticos e roucos do jazz-band. O mesmo se pode dizer da “poesia” atual, que rejeita a métrica, dentro da qual no entanto se sentiram à vontade os grandes poetas do passado, dos tempos em que havia poetas. O verso não foi outrora prisão para nenhum grande poeta: antes, a métrica libertava a emoção vital, que é também tão ritmíca quanto o era o verso. Mas não só os estados emotivos, como tudo quanto se queria exprimir encontrava sua forma natural no verso, reprodução do ritmo vital; os testamentos originais das velhas culturas vinham redigidos em forma de verso; em verso se escreveram tratados de medicina e de moral; e Parmênides  , conquanto não fosse grande poeta, não encontrou outra forma senão a do verso para redigir uma doutrina do ser, que ainda hoje sulca todas as dimensões da filosofia. Porque o verso — que aqui se toma como sinônimo natural de ritmo — se conjugava com a vida mesma, a qual é ritmo, é ciclo, é duração. O tempo heterogêneo, no qual se desenrola a façanha do destino no privilégio do momento supremo, é a poesia mesma. Mas a poesia se decompõe no processo que aniquila o ritmo, quando se suprime o tempo interior e a originalidade de cada instante. O termo do processo é a mecanização da existência ou a existência feita de [166] momentos iguais, sem ritmo. E a poesia moderna, a pintura moderna, a arquitetura moderna, que são negações intrínsecas da arte, porque a arte nasce do anel que une o terreno e o divino, são produtos de uma existência inteiramente mecanizada. A incapacidade de síntese das artes modernas revela a incapacidade de visão da unidade dos conjuntos; isto é, o seccionamento que se inaugura quando o homem se desliga de Deus, desligando-se assim de si mesmo, decompondo-se no inorgânico e expulsando de si uma realidade desfigurada, fragmentada, feita de pontos isolados, uniformes, como os pontos do espaço geométrico e os momentos do tempo científico; o impressionismo não elimina os elementos de reprodução da realidade, simplesmente reproduz uma realidade dissociada, que é a do senso comum; tal realidade não está dissociada em si, mas na projeção impressionista do mundo; Monet, Cézanne e Degas só podiam dissociar-se da realidade construindo uma realidade dissociada, à semelhança da realidade científica. Esta origem científica das artes modernas se evidencia no seu momento mais claro que é o divisionismo de Segantini substituindo linhas por pontos, em estreita relação com a análise matemática e com a ideia de que as cousas não são cousas, isto é, não são unidades vividas, mas amontoados analíticos de pontos iguais, que só se diferenciam pela disposição no espaço geométrico; a arte se suicida assim, querendo exprimir ideias, ou seja abstrações despojadas de sentimentos e fabricando matemáticas do plástico; é a transpolação das sensações informes da alma contemporânea ou a reprodução das sensações sem as formas; ora, todos os temperamentos culturais sabem que a forma é o que há de essencial e anímico no ser; os escolásticos enunciaram tal verdade ao definir a alma como forma substancial do Corpo. A eliminação das formas é a eliminação da alma; e, eliminadas as formas, nenhuma arte verdadeira era mais possível, porque toda arte verdadeira degenerou na cópia do natural aparente, que não é o natural substancial e profundo; assim a reprodução tal e qual de uma realidade sem vida, porque sem metafísica, levou à repulsa de toda “arte acadêmica”, assimilada à cópia, e a confusão entre retrato e fotografia; ora, o retrato só podia confundir-se com a fotografia em virtude da perda da alma ou da forma da realidade; porque um retrato não só não é fotografia, como ainda é o seu oposto; a fotografia só apanha [167] a linha superficial de um momento parado, mas o retrato traduz num só momento a totalidade do ser, é a biografia de uma vida, a captação profunda, não das linhas externas, mas dessas linhas no seu íntimo porquê. O retrato se tornou impossível quando a pintura se modelou pela programação matemática e geométrica da realidade; se a sua matematização se ilustra no divisionismo, a sua geometrização se torna clara no cubismo de Braque; o cubo é a forma geométrica sólida mais simples e mais despojada de alma; o cubismo elimina toda “fantasia” e esquematiza a realidade, tal como a fórmula algébrica da relatividade geral; são artes que referem a desintegração da personalidade, a sua completa alienação; não são formas novas; são decomposições de formas velhas; a ruína de toda possibilidade de arte é exaustivamente demonstrada pelo dadaismo de Izar e pelo surrealismo de Breton. Tal arte não pode formular um sentido para a vida, porque a arte nunca foi o sentido da vida, mas apenas a transcrição desse sentido; a arte moderna é o reflexo da falta de sentido da vida moderna, desligada do mítico e do religioso; se em tal arte se encontra alguma religiosidade, não é senão um ajuntamento de elementos dissociados da religião, já decomposta e analisada sob uma perspectiva “científica”; a falta de sentido das artes se manifesta ademais na tendência a fabricar sentidos artificiais, qual por exemplo a intencionalidade social; o socialismo da arte trai a alienação do artista que não vive em si, mas nos objetos que o cercam e que são preferentemente outros seres humanos, com os quais, não tendo vida própria, deseja confundir-se, dissolver-se; a vontade de dissolução e de desaparição nas massas, que tanto podem ser as massas físicas como as sociais, é um dos aspectos do socialismo que a artes modernas revelam; porque o artista moderno não quer mais ser na sua arte o que se distingue e sim o que se confunde; ele não tem espaço nem tempo, não tem proximidade, nem distância, como poderia ser um per se, hic et nunc, se está anulado, se não tem nada a dizer, nada a traduzir? A monotonia só pode levar ao desespero.