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Barbuy: senso comum (7) - Nietzsche
quarta-feira 6 de outubro de 2021, por
7. Nietzsche , no fim do século XIX, levantou o desesperado clamor de que a vida não tinha mais sentido porque Deus tinha morrido. A negação da realidade do mundo tinha conduzido à negação da realidade de Deus: E que sentido poderia ter o mundo sem Deus? Tudo quanto sempre se concebeu como ordem vital, ou mundo, ou harmonia, ou kosmos supunha a realidade concreta de Deus; os seres reais só podiam ser interpretados no seu vir-a-ser pela composição da potência e do ato, supondo Deus como Ato Puro, como Perfeito, como razão de ser do que se perfazia; os seres só podiam ser essência e existência, com a condição de um Deus que fosse o Ente e o Existente Absoluto; tudo o que se move supunha o motor imóvel, o contingente o necessário, o temporal o Eterno; as quatro causas supunham Deus. A História supunha Deus. Ora bem, quando principia o ocaso de Za-ratustra e Nietzsche exclama que Deus morreu, tudo quanto tinha até então existido já havia perdido o seu valor e o seu sentido. E na proporção em que se perdiam valor e sentido acentuavam-se as declamações sobre a dignidade do homem e dos direitos do homem; num mundo feito só de fabricações científicas, só de artefatos, não faltaram os positivistas que quiseram fabricar também ideias que dessem um sentido à vida que o perdera; nos moldes pré-fabricados da ciência, que só atinge a quantidade e para a qual tudo é massa e espaço, a realidade sacral dos antigos, o mundo a que os gregos denominaram kosmos e os romanos mundus, se havia convertido numa engrenagem mecânica, em massas e corpos, dentre os quais a terra era um ponto minúsculo no tamanho do universo e o homem um ponto minúsculo na terra; tudo era agora cientificamente explicável e a ciência tinha até a perfídia de reconhecer os seus próprios limites, como se ela tivesse dado alguma explicação ao que se considerava dentro desses limites! Subitamente o secreto desespero do homem que destruiu Deus e para o qual não há mais sentido em cousa alguma, tendo-se o mundo — kosmos — transformado em caos — desordem —, irrompe da consciência de Zaratustra que proclama Deus morreu! [1]. O louco da praça pública perguntava angustiado: “Aonde foi Deus? Os homens o mataram, eles e eu! Mas como podemos fazer tal cousa! Como foi que [154] pudemos tragar todo o mar! Quem foi que nos deu a esponja para cancelar todo o horizonte ao derredor? Que cousa foi que fizemos quando desvinculamos esta Terra dos elos que a aproximavam do Seu Sol? Para onde se move agora? Para onde vamos nós? Para longe de todos os sóis? Ou não caímos talvez sem cessar no abismo? E por detrás e pelo lado e por adiante e por todas as partes? Existem pois ainda um acima e um abaixo? E não estamos errando talvez por um infinito nada? E não nos perseguem até os espaços com o seu hálito? E não faz mais frio agora? Não desce por acaso a Noite sem trégua e algo mais do que a Noite? Não devem acender-se as lanternas em pleno dia?. . . [2]
Tais cousas dizia o louco da praça pública, o primeiro que se apercebia de que já não havia horizontes ao redor, de que a terra estava desvinculada do Sol, anulados o acima e o abaixo, tudo reduzido a caos, tudo sem finalidade. Eis porque a advertência de Zaratustra Deus morreu não quer dizer que Deus já não exista, mas sim que Deus morreu no coração do homem e que a vida e o mundo não têm mais sentido. Nietzsche desmascarou todo o terror da alma humana à procura de um objeto. E muitas passagens de sua obra são lamentações profundas sobre este fato: Deus morreu e a vida já não tem sentido. Zaratustra não veio combater Deus, mas recolher a triste herança deixada pelos séculos da devastação, tentando o último e supremo esforço de levantar adiante do homem a imagem do super-homem, qual um novo sentido para a vida. Mas que sentido poderia já ter a vida, se o mundo também não o tinha? Afinal, o que é o mundo? Os gregos nunca poderiam ter dito que o mundo é uma série de corpos que se atraem na razão direta das massas e na razão inversa do quadrado das distâncias, porque, para os gregos, o mundo era antes de tudo uma cousa que tinha sentido; por isso Crisipo definiu o mundo como um conjunto que compreendia os deuses, os mortais, a terra e o céu. Abolido Deus e abolidos os seres invisíveis que eram os seus mensageiros, o mundo perdeu o sentido porque ficou desconectado da sua realidade última e suprema. Desvinculada a terra do centro da sua significação, o universo se transformou num cortejo funerário de planetas. [155]