Página inicial > Modernidade > Levy Antropologia Ciberespaço

Levy Antropologia Ciberespaço

terça-feira 22 de março de 2022, por Cardoso de Castro

  

Pierre Lévy   — INTELIGÊNCIA COLETIVA. POR UMA ANTROPOLOGIA DO CIBERESPAÇO
espaços antropológicos, espaço antropológico
LÉVY, Pierre (1995), L’Intelligence Collective. Pour une Anthropologie du Cyberespace. Paris, La Découverte.

Pierre Lévy (1995) nos propõe uma espécie de ciclo de evolução do que chama “saber coletivo”, que definitivamente ocupa e reorganiza o espaço e o tempo da humanidade, ao longo de sua constituição. Ao mesmo tempo que sua visão se cerca de um certo “utopismo”, bastante comum entre os entusiastas da Era da Informação, Lévy deixa, no entanto, em alguns momentos, transparecer as anomias que se revelam neste processo, e, por conseguinte, os riscos associados a cada bifurcação desta trajetória.

Para começar, Lévy define o que denomina “espaço antropológico”, de forma análoga à noção de espaço geográfico elaborada por Milton Santos   (1996), permitindo transpor as características do primeiro para a reflexão sobre este espaço que Santos convida o geógrafo a estudar. Segundo Lévy, o “espaço antropológico” é “um sistema de proximidade (espaço) próprio ao mundo humano (antropológico) e logo dependente de técnicas, significações, linguagem, cultura, convenções, representações e emoções humanas” (p. 21). Tendo em vista esta dependência de elementos endógenos ao próprio espaço antropológico, e, portanto, à exaltação da vida que nele se manifesta, o espaço antropológico se constitui em planos de existência que se entremeiam: o espaço da terra, o espaço do território, o espaço das mercadorias e o espaço do saber.

O espaço antropológico de Lévy reconhece e afirma o sentido da “vida” na sua constituição, na medida que vê nas interações entre a vida dos seres humanos e seu meio físico e propriamente humano, a matriz na qual se produzem, se transformam e se geram continuamente espaços antropológicos heterogêneos, porém entrelaçados. Estes espaços plásticos, que se tecem mutuamente em suas interações, compreendem, por sua vez, signos que os sustentam, representações que os evocam, pessoas que os conduzem, e toda a situação em seu conjunto, tal qual é produzida e reproduzida nos atos e fatos realizados por seus integrantes.

Parafraseando Milton Santos (1996), a proposição de Lévy poderia ser a seguinte: os espaços vividos se movimentam e se deformam ao redor de objetos e ações que eles compõem e organizam, ao mesmo tempo, que são por estes objetos e ações também compostos e organizados. Os indivíduos vivos, através de sua subjetividade e da inter-subjetividade com os demais, compõem e trocam imagens, palavras, conceitos e coisas de forma mais ou menos estruturante, segundo a intensidade afetiva ou emocional, ou de vida, engajada neste processo. Resultando assim espaços efêmeros ou duráveis, formais ou informais, institucionais ou não.

Para Lévy, reconhece-se a importância de um evento qualquer, na ordem intelectual, técnica, social, histórica ou geográfica, por sua capacidade de reorganizar as proximidades e as distancias em um espaço, ou seja, por seu poder de instaurar novos espaços-tempo ou novos sistemas de proximidade. Em virtude de alguns eventos maiores na civilização ocidental, em particular na Modernidade, se constituíram de forma acelerada diferentes espaços antropológicos. Passamos a viver em uma multiplicidade de espaços diferentes, cada um com seu sistema de proximidade particular (temporal, geográfico, afetivo, linguístico, etc.). De tal forma que uma entidade qualquer pode estar próxima de nós em um espaço, e bem longe em outro. O fato é que cada espaço, mesmo interpenetrado por outros, guarda ainda sua topologia e sua axiologia, ou seu sistema de valores ou de medidas, particular.

Os espaços emergem do interior da relação da vida humana com o seu meio, como mundos vivos, e são continuamente engendrados pelos processos e interações que se desenvolvem dentro desta relação fundamental. Eles parecem se desenvolver de forma irreversível, ganhando consistência e autonomia e se tecendo mutuamente. Entretanto eles não devem ser como estratos de infra ou de superestruturas, que se determinam mecanicamente ou que se interagem dialeticamente. Cada espaço é assim um plano de existência da vida, onde se identificam frequências e velocidades, ou seja, ritmos determinados.

Pierre Lévy, como vimos, identifica quatro espaços antropológicos, constituídos em sucessão, desde a aurora da humanidade: Terra, Território, Mercado e Saber. Preferimos intitular os dois últimos de maneira diferente, qualificando-os de acordo com sua natureza, como os dois primeiros o foram. Assim sendo teríamos: espaço da terra, espaço do território, espaço das transações, e espaço cibernético ou ciberespaço. Seguindo Lévy, entendemos que cada espaço pode ser caracterizado por sua identidade, sua semiótica, suas figuras de espaço, suas figuras de tempo, seus instrumentos de navegação, seus objetos, seus sujeitos, seus suportes e suas epistemologias.

O espaço da terra, como primeiro grande espaço de significação, aberto por nossa espécie, repousa sobre três pilares: linguagem, técnica e formas complexas de organização social. A idéia de cosmo, e de uma relação ordenada de todos os seres, tendo por base a terra que vivemos sob nossos pés, fundamenta este primeiro espaço, do imaginário ao prático; os modos de conhecimento originais se expressam como mitos e ritos, a partir da identidade do ser humano com uma cosmologia, que dá sentido à aliança com outros humanos.

O espaço do território se institui e se constitui com a agricultura, a cidade, o Estado e a escritura; recobre progressivamente o espaço da terra, embora ainda de forma parcial, ao qual submete e domestica, pelo processo de sedentarização da humanidade. A propriedade, a posse da terra e sua exploração, são privilegiadas, ao mesmo tempo que os modos de conhecimento deixam de lado o oral e passam a se fundamentar no desenvolvimento da escrita. Como tal se caracteriza pelo inicio da história e dos saberes de tipo sistemático, teórico ou hermenêutico. A existência humana articula-se assim na ligação a uma entidade territorial (pertença, propriedade, etc.), definida por seus limites, suas fronteiras, outorgando às instituições sob as quais vivemos, de certa maneira, uma territorialidade, nem que seja normativa, pela imposição de hierarquias, burocracias, sistemas de regras, lógicas de pertinência e de exclusão.

O espaço das transações, pari passu com a fundação do espaço territorial, ganhou sua expressão maior com os descobrimentos, sendo seu princípio organizador as redes e os fluxos de qualquer espécie, sobre as mesmas, como: matérias primas, energias, mercadorias, capitais, mão de obra, informações, etc. Por sua própria natureza, o processo de constituição do espaço das transações subverte e subordina o espaço territorial. Começa assim a desterritorialização, ou melhor, uma incessante “des/re-territorialização”. O espaço das transações motoriza e recobre de velocidade os espaço anteriores segundo Paul Virilio   (1993).

A riqueza não vem mais apenas do domínio dentro de fronteiras mas do controle dos fluxos que permeiam o território; neste sentido, reina soberana a industrialização, no sentido geral de tratamento da matéria, da energia e da informação. Por outro lado, o modo de conhecimento passa a se fundamentar na combinação de técnica e de ciência, a tecnociência, sendo a clássica parceria entre teoria e experiência, ameaçada pelo potencialização da modelização e da simulação digital, mais recentemente.

A identidade do ser humano no espaço das transações é auferida pela participação no processo produtivo e nos serviços associados às trocas econômicas, na condição de ocupação de uma posição nos nós das redes de fabricação, de transação, de comunicação; em resumo, trata-se de uma identidade artificial, definida por um “posto de trabalho” e, por conseguinte, um “posto de consumo”, no Sistema Mundo como denomina wp-pt:Wallerstein.

Pierre Lévy lembra que o próprio curriculum-vitae indica esta combinação dos espaços terrestre, territorial e transacional, ao indicar de partida: o nome (identidade terrestre da pessoa), o endereço (sua identidade territorial) e a profissão (sua identidade na espaço transacional).

Por último, o espaço cibernético vem se imiscuindo de forma acelerada, sobre os demais espaços, beneficiando a principio um pequeno estrato de humanos, a elite dos “bem sucedidos”, geralmente os melhores posicionados nos espaços territorial e transacional. Constituído pela inserção estratégica de tecnologias da informação e da comunicação no espaço das transações, tecnologias originalmente concebidas e voltadas para o exercício das funções de armazenamento, controle, e transmissão de dados, o ciberespaço começa a oferecer aqui e ali um novo espaço antropológico, que vem sendo maciçamente promovidos como indispensável à comunicação e ao saber, e até mesmo à vida.