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Francis Bacon – homem intérprete da natureza e seus ídolos

segunda-feira 1º de novembro de 2021, por Cardoso de Castro

  

Novum Organum, I, 1-4

O homem, ministro e intérprete da natureza, só faz e entende na medida em que observou, pela experiência ou pela reflexão, a ordem da natureza; nada mais sabe ou pode além disso.

Nem a mão nua nem o entendimento abandonado a si mesmo podem muito; a coisa aperfeiçoa-se com instrumentos e auxílios, que não são menos necessários para o entendimento que para a mão. E assim como os instrumentos da mão excitam ou regem seu movimento, os instrumentos da mente impulsionam o entendimento ou fazem-no cauteloso.

A ciência e a potência humana coincidem no mesmo, porque a ignorância da causa priva do efeito. Pois só se vence a natureza obedecendo-a; e no que na contemplação corresponde à causa, na operação correspondente à regra.

Para obrar, não pode o homem fazer outra coisa que acercar-se dos corpos naturais e separá-los; o demais, o faz a natureza no interior.


XXXVIII

Os ídolos e noções falsas que ora ocupam o intelecto humano e nele se acham implantados não somente o obstruem a ponto de ser difícil o acesso da verdade, como, mesmo depois de seu pórtico logrado e descerrado, poderão ressurgir como obstáculo à própria instauração das ciências, a não ser que os homens, já precavidos contra eles, se cuidem o mais que possam.

XXXIX

São de quatro gêneros os ídolos que bloqueiam a mente humana. Para melhor apresentá-los, lhes assinamos nomes, a saber: Ídolos da Tribo; Ídolos da Caverna; Ídolos do Foro e Ídolos do Teatro.

XL

A formação de noções e axiomas pela verdadeira indução é, sem dúvida, o remédio apropriado para afastar e repelir os ídolos. Será, contudo, de grande préstimo indicar no que consistem, posto que a doutrina dos ídolos tem a ver com a interpretação da natureza o mesmo que a doutrina dos elencos sofísticos com a dialética vulgar.

XLI

Os ídolos da tribo estão fundados na própria natureza humana, na própria tribo ou espécie humana. E falsa a asserção de que os sentidos do homem são a medida das coisas. Muito ao contrário, todas as percepções, tanto dos sentidos como da mente, guardam analogia com a natureza humana e não com o universo. O intelecto humano é semelhante a um espelho que reflete desigualmente os raios das coisas e, dessa forma, as distorce e corrompe.

XLII

Os ídolos da caverna são os dos homens enquanto indivíduos. Pois, cada um — além das aberrações próprias da natureza humana em geral — tem uma caverna ou uma cova que intercepta e corrompe a luz da natureza: seja devido à natureza própria e singular de cada um; seja devido à educação ou conversação com os outros; seja pela leitura dos livros ou pela autoridade daqueles que se respeitam e admiram; seja pela diferença de impressões, segundo ocorram em ânimo preocupado e predisposto ou em ânimo equânime e tranquilo; de tal forma que o espírito humano — tal como se acha disposto em cada um — é coisa vária, sujeita a múltiplas perturbações, e até certo ponto sujeita ao acaso. Por isso, bem proclamou Heráclito que os homens buscam em seus pequenos mundos e não no grande ou universal.

XLIII

Há também os ídolos provenientes, de certa forma, do intercurso e da associação recíproca dos indivíduos do gênero humano entre si, a que chamamos de ídolos do foro devido ao comércio e consórcio entre os homens. Com efeito, os homens se associam graças ao discurso, e as palavras são cunhadas pelo vulgo. E as palavras, impostas de maneira imprópria e inepta, bloqueiam espantosamente o intelecto. Nem as definições, nem as explicações com que os homens doutos se munem e se defendem, em certos domínios, restituem as coisas ao seu lugar. Ao contrário, as palavras forçam o intelecto e o perturbam por completo. E os homens são, assim, arrastados a inúmeras e inúteis controvérsias e fantasias.

XLIV

Há, por fim, ídolos que imigraram para o espírito dos homens por meio das diversas doutrinas filosóficas e também pelas regras viciosas da demonstração. São os ídolos do teatro: por parecer que as filosofias adotadas ou inventadas são outras tantas fábulas, produzidas e representadas, que figuram mundos fictícios e teatrais. Não nos referimos apenas às que ora existem ou às filosofias e seitas dos antigos. Inúmeras fábulas do mesmo teor se podem reunir e compor, por que as causas dos erros mais diversos são quase sempre as mesmas. Ademais, não pensamos apenas nos sistemas filosóficos, na universalidade, mas também nos numerosos princípios e axiomas das ciências que entraram em vigor, mercê da tradição, da credulidade e da negligência. Contudo, falaremos de forma mais ampla e precisa de cada gênero de ídolo, para que o intelecto humano esteja acautelado.


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