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Fernando Gil (ME:22-26) – a sugestão
segunda-feira 11 de outubro de 2021, por
Será então preciso recorrer a Deus para assegurar a realidade do mundo? A leitura de Rosa Alice Branco sugere, é caso de o dizer, que a percepção contém dentro de si, na sua finitude, recursos suficientes para instituir a realidade de que precisa a inteligência humana, tal qual ela é (por isso não faz no fundo sentido chamar-lhe finita, ectípica e não arquetípica [1]) e sem tão-pouco [22] precisarmos de nos arrimar à inteligibilidade biológica das pregnâncias thomianas, evocadas por Rosa Alice Branco. Elas vêm por certo a propósito, enquanto princípio regulador da sobrevivência. Mas talvez os elementos da percepção bastem, «constitutivamente», para estabelecer o mundo. Poremos então Berkeley perto de Leibniz lido de uma certa maneira (Deus é vantajosamente substituível pelos princípios arquitectónicos, que filosoficamente o dispensam), e certamente de Kant e Fichte . Transformando o sinal menos, a ilusão, em sinal mais, a fabricação do mundo, dir-se-á então que a sugestão da realidade não pode deixar de produzir-se pois acompanha o poder de construção positivo e primitivo da imaginação. Esta positividade primeira manifesta-se cognitivamente e ontologicamente. Cognitivamente, à maneira de Kant. Anuncia-se in nuce em Berkeley, embora noutros termos, a função transcendental da imaginação que torna possível a afinidade dos fenômenos: a conexão é o modo mais geral, menos marcado, da afinidade. Tal função é ela própria tomada possível por um princípio de continuidade, exposto na Siris no modo de um Agente e de um fluido imaterial penetrando as aparências; ele equivale à continuidade arquitectónica de Leibniz. Em Fichte a primitividade da imaginação tem efeitos ao mesmo tempo cognitivos e ontológicos. A imaginação habita já a percepção ou intuição —não há por isso lugar para o esquematismo como questão autônoma — e pela imaginação o eu põe o não-eu, ine-lutavelmente. É efectivamente à maneira de Fichte que o parágrafo 13 da Teoria da Visão Defendida e Explicada funda a exteriori-dade. As ideias sensíveis não são causas de si mesmas e nós não somos a sua causa (também a fenomenologia fichtiana da consciência constata que há no eu representações que se apresentam como não derivadas dele). Nesta medida as ideias sensíveis devem ter uma qualquer outra causa eficiente «distinta delas e de nós», que em Berkeley se chama ainda Deus. Mas a análise da representação bastaria para estabelecer o não-eu enquanto resistência ao eu. A dúvida sobre a sua realidade seria hiperbólica e a dúvida hiperbólica não é pertinente no registo da finitude.
Naturalmente, para não cair num realismo banal a coberto desta finitude entendida como condição natural do entendimento, requerer-se-á articular a inelutabilidade da passagem do eu ao não-eu — e outro não é o objecto da Doutrina da Ciência fichtiana que, conforme se lê na versão de 1798-1799, se destina a responder à pergunta «como podemos sair de nós?». Também a resposta de Fichte assenta na imaginação e num pensamento [23] «realizante» (reales). Graças a uma projectio per hiatum, como Fichte escreve em 1804, o percepto coisifica-se, ou seja, a percepção alucina a coisa [2]. Na conceptualização berkeleyiana, isto equivale a procurar o lugar de origem da compenetração imaginária da vista e do tacto — e Berkeley não só abordou a questão como a considerou o «nó» e o «ponto principal de toda a teoria óptica» (Teoria da Visão Defendida e Explicada, § 52). A indissolubilidade imaginária da correlação vista-tacto tem como sede a neurofisiologia da percepção, ela apreende-se na raiz, através do enigma que a inversão das imagens retinianas representa. Com efeito, como explicar a disparidade das imagens da retina, «supostas serem os objectos próprios e imediatos da vista», relativamente aos objectos de que são as imagens, os quais «parecem contudo estar direitos e na sua posição natural» (§ 49)?
A teoria de Berkeley, desenvolvida entre os parágrafos 49 e 51, consiste em descobrir uma alucinação originária, em sentido próprio, que converte o táctil em visual. «No fim de contas», assevera Berkeley, a retina, o cristalino, a pupila, os raios que a atravessam para depois se refractarem e se reunirem formando imagens distintas, são «coisas de uma natureza tangível» (§ 49). O objecto próprio da vista é constituído por «pinturas» (pictures), a saber, luz, sombras e cores, enquanto que as «imagens» (images) das coisas são o objecto do tacto. A imagem retiniana é ainda tangível, é a imaginação que a constrói como visual. «As pinturas são menos pinturas do que imagens, ou figuras ou projecções —figuras tangíveis, projectadas por raios tangíveis sobre uma retina tangível (!!) — que estão tão iónge de serem os objectos próprios da vista que não são de todo percebidas por ela, pois são, no fim de contas, integralmente do gênero tangível e apreendidas somente pela imaginação, quando as supomos serem efectivamente captadas (taken in [3]) pelo olho» (§ 50). As imagens tangíveis estão «sobre a retina» e Berkeley é obrigado a «admitir» que estão invertidas relativamente aos objectos tangíveis de onde os raios partem (e a admitir também que as imagens de algum modo se assemelham aos objectos)... O problema da inversão fica na realidade sem solução, Berkeley acrescentando imediatamente: «Mas nego então que sejam ou possam ser objectos próprios e imediatos da vista» (ibid.). [24]
A imaginação percebe o táctil como visual, «durante todo este negócio, o espírito está maravilhosamente disposto a ser enganado pelas repentinas sugestões da imaginação» (§ 52). A extraordinária ficção que Berkeley institui é a tentativa impossível de representar o irrepresentável, colmatar o hiato que separa o percepto da alucinação, explicar a projecção da imaginação. A sua operação — aquela maravilhosa disposição — é um «monograma» mais profundo ainda que o de Kant. Esta doutrina não pode ser interpretada à letra, como fazem os comentadores que desesperam compreendê-la e a interpretam como um inexplicável retorno ao realismo [4]. É verdade que um primado é aqui dado às ideias tácteis (que em qualquer caso não são «coisas»), o qual parece contradizer a preeminência do visível. Mas nem isso é bem assim. Aquilo que Berkeley parece querer apontar é a indistinção originária do visível e do táctil, efeito igualmente originário de uma imaginação já activa no estrato mais profundo da percepção: a indistinção é ontológica, ela não põe em causa o primado epistemológico do visível — aliás relativo, como se depreende do escrito no seu conjunto. A imaginação faz com que não nos seja dado apreender formas, contornos, texturas, massas, «as figuras e os seus movimentos» (§ 51), sem lhes associarmos luz, cores, sombras — mas Berkeley podería ter também escrito que a percepção de luzes e sombras se desdobra eo ipso na percepção de formas e texturas. Pintura e imagem são conaturais [5]. (Freud explorará uma outra modalidade, confessadamente «mitológica», de alucinação originária. Ela conduz igualmente à indistinção do exterior e do interior e inscrever-se-ia na filogénese da espécie.) O nó alucinatório atando o visível e o táctil é inextricável, e também [25] incorrigível e impositivo — é impossível que a conexão não se produza, ela é necessária. E é ainda indestrutível, uma vez que se produz num plano a que a consciência e a vontade não têm acesso. A operação da sugestão situa-se aquém da desconstrução conceptual. Mas é mister reconhecer que a solução é complicada. O táctil é alucinado como visual, a visão sugere alucinatoriamente o táctil (e há um primado epistemológico da visão, embora todos os sentidos possam sugerir objectos de outros sentidos). Em ambos os casos a operação é inconsciente mas os planos da acção da imaginação não são os mesmos. A primeira conexão efectua-se dentro da neurofisiologia da percepção, na segunda a imaginação exerce-se sobre o capital da experiência não tematizada — individual e histórica — da raça humana. É impossível trazê-la à consciência porque a imaginação não se apercebe a si mesma como uma função simultaneamente imotivada e realizante.
Nestes termos, o perceptível não percebido, que segundo muitos intérpretes se afiguraria inconciliável com a actualidade do esse est percipi e representaria uma prótese divina (como os Diálogos com efeito sugerem), definir-se-á como o objecto próprio da imaginação. Berkeley escreve: «As ideias que se observa estarem conectadas com outras ideias acabam por ser consideradas como signos, por meio dos quais coisas não actualmente percebidas são significadas ou sugeridas pela imaginação, de que são os objectos e que só por ela são percebidas» (whose objects they are, and which alone perceives them, Teoria da Visão Defendida e Explicada, § 39, sublinhado meu; o § 9 estabelecera já que as coisas assim sugeridas não são objectos dos sentidos «pois são apenas, em verdade, objectos da imaginação»).
[1] Antes de ser kantiana, a distinção acha-se no terceiro Diálogo entre Hilas e Philonous.
[2] A análise do fetichismo da mercadoria no primeiro capítulo d’O Capital inspira-se muito provavelmente em Fichte, que o jovem Marx leu com paixão.
[3] To take in significa também enganar, burlar.
[4] Cf. G. Brykman, cit., p. 473, que consagra à questão cinco linhas.
[5] A leitura aqui proposta não põe pois em causa o imaterialismo nem a sugestão do tacto pela visão, tal como fora exposta em 1709-1710. E alguma (pouca) especulação à volta de um problema que o próprio Berkeley considera o fulcro da teoria da percepção parece preferível ao seu curto-circuito pela simples afirmação que no escrito de 1733 a apologética se substitui à epistemologia (G. Brykman, p. 473) e que Berkeley renuncia às suas posições anteriores. Não é assim, e a Teoria da Visão Defendida e Explicada começa por reiterar a tese da sugestão dos objectos próprios de um sentido por outro (cf. §§ 9-14). A sugestão do táctil pelo visível é explicitamente mantida (cf. § 14) mas como elemento da doutrina mais geral que todos os sentidos sugerem objectos de outros sentidos. Uma indistinção originária é perfeitamente consonante com o princípio de que «os objectos de todos os sentidos podem pois tomar-se objectos da imaginação, a qual faculdade representa todos os objectos sensíveis» (§ 10).