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Gabriel Marcel: Reintegração da honra

segunda-feira 9 de setembro de 2024, por Cardoso de Castro

  

Ao voltar a casa, uma destas noites, depois de ter escutado um admirável concerto de Bach, cismava: eis aí o que nos restitui um sentimento que se julgaria perdido, mais do que um sentimento talvez, uma certeza: a honra de ser um homem. É importante notar que hoje tudo parece coligar-se para arruinar essa noção, assim como, aliás, todas aquelas que dependem de uma moral aristocrática. Finge-se acreditar que a aristocracia só pode ser uma casta e que esse é justamente um modo de existência condenado pela história. Ora, se é legítimo conceder que as castas como sistemas fechados se revelam hoje indefensáveis, em contrapartida devemos contestar em absoluto que a ideia de aristocracia, considerada na sua essência, implique algo de parecido. Devemos, aliás, notar que assistimos ao advento de uma espécie de oligarquia mundial, a dos managers, na acepção de Burnham, a dos tecnocratas Mas é muitíssimo duvidoso que tal oligarquia possa ser encarada como uma aristocracia, pois se não lobriga sobre que princípio autenticamente espiritual poderia ela ter a pretensão de assentar.

Que é essa honra cuja consciência despertava em mim, uma destas noites, à audição de alguns concertos de Bach? Certamente não é fácil precisar a sua natureza; afigura-se no entanto que, antes do mais. cumpre fazer aqui intervir a consciência imediata de uma certa honestidade fundamental; e, como sempre, em tal caso, para esclarecer propusemo-nos primeiro pensar a contrario.

O que tem de excluir-se radicalmente é tudo quanto respeite à complacência, à lisonja, e também ao equívoco, na medida em que um espírito pervertido pode ser levado a cultivá-lo. De bom grado diria que a honra está ligada à palavra, ao fato de só ter uma palavra. Mas talvez seja isso justamente o que caracteriza a aristocracia na única acepção aceitável do termo — aristocracia que pode não só ser desprovida de recursos materiais, mas também não poder vangloriar-se de qualquer origem propriamente nobre. Se o povo espanhol é tão respeitado e tão admirado por aqueles que tiveram ocasião de tratar com ele, não é justamente porque esse povo essencialmente pobre conservou aquela qualidade nativa e o pundonor que lhe anda vinculado? O pundonor não é necessariamente o orgulho, embora muitas vezes possam confundir-se. Parece-me que o pundonor está sempre ligado ao sentimento de uma independência de qualquer modo inata e, por isso mesmo, inalienável; neste sentido opõe-se estranhamente ao espírito de reivindicação que por toda a parte se manifesta nas democracias. Porque afinal não se reivindica o que se não tem, mas o que se deveria ter. Ora esta oposição não existe, em princípio, para o homem pundonoroso; afigurar-se-lhe-ia um rebaixamento reclamar de qualquer modo o que lhe é devido.

[...] O homem pundonoroso é aquele que não permite que se ponha em dúvida a sua palavra, porque tal palavra é ele mesmo; seríamos tentados a dizer que ela constitui o seu único bem, e a honra é justamente a consciência dessa qualidade que não pode perder-se, dessa invariante. Pode inferir-se daí que a honra se encontra sempre ligada a um sentido profundo e como que não desenraizável do ser, porque entre o ser e a palavra, tal como o viram Heidegger  , na Alemanha, e, na França, um pensador profundo mas pouco conhecido, Brice Parain, existe uma infrangível unidade. É claro que não seria legítimo concluir daí que a honra implique em si algo que se assemelhe a uma fé religiosa articulada. Pelo contrário, a honra pôde nos melhores anarquistas espanhóis ligar-se a um ateísmo que talvez não seja no fundo mais do que uma certa recusa: a recusa a um enfeudamento que uma teologia suficientemente elaborada poderia aliás reconhecer como incompatível com os princípios fundamentais da fé cristã, com a liberdade dos filhos de Deus. Não há problema mais grave que o de saber como o pertencer à Igreja há-de, conservando o seu valor propriamente religioso, não degenerar num enfeudamento contrário à honra.


Ver online : Gabriel Marcel


Gabriel Marcel, Les hommes contre l’humain, pp. 188-189.