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Fernandes (SH:9-12) – Ser Humano

domingo 10 de outubro de 2021, por Cardoso de Castro

  

Em que consistiria, para qualquer coisa (organismos individuais da nossa espécie, robôs, etc.), ser ou não ser humana — “verdadeiramente” humana — pode parecer óbvio para todos nós, pelo menos em nossos estados de espírito menos reflexivos, mas basta pensar mais um pouco a respeito do assunto e a questão se revela enigmática. Na verdade, permanece um enigma, após milênios do que se conhece como história ou civilização. É o que se chama, entre pesquisadores, filosóficos ou científicos, de um “problema em aberto”.

A questão que me interessa aqui — o Ser Humano —, se for submetida a qualquer exame não meramente convencional, por exemplo, que não pressuponha de maneira não crítica a autoridade, seja da Ciência, seja de uma dogmática religiosa, seja de alguma mitologia, ou ainda, do senso comum, torna-se uma questão que, no mínimo, carece de resposta incontroversa. “No mínimo” porque, em primeiro lugar, nem convicções pessoais ou consenso, ou mesmo unanimidade, seriam garantia de verdade. E, em segundo lugar, porque pressupor a existência de uma “essência real” do ser humano “em si mesmo”, no sentido forte de alguma espécie de realismo “metafísico”, a essa altura do desenvolvimento histórico da Filosofia e da Ciência, parece, a quase todos os filósofos e cientistas que conheço, pressupor demasiado. Dentre as exceções científicas, destacam-se os sociobiólogos, notadamente E. O. Wilson; dentre as filosóficas, se procurarmos por alguma que goze de algum prestígio, tenha alguma audiência, ou simplesmente esteja na moda, seria como procurar agulha num palheiro.

Em Teoria do Conhecimento ou Epistemologia, costuma-se distinguir a fonte do conteúdo conhecido. Então tomemos primeiro a fonte da resposta. Seja qual for essa fonte da resposta à pergunta sobre Quem, ou o Quê nós somos, um mínimo de atenção ao conteúdo da questão nos levaria a hesitar indefinidamente: Quem seria essa autoridade? Quem sabe?! “Nós mesmos?” Novamente, sob qualquer exame não meramente convencional, lá sabemos, realmente, quem somos? Será que conheceríamos realmente qual é a nossa... “verdadeira natureza” ? Ainda que pensássemos que soubéssemos, não seria um círculo vicioso, uma petição de princípio, se o que chamamos de “nós” ou “eu” fosse a própria fonte da resposta? A muita gente parece óbvio que temos completo acesso cognitivo (“consciência” ?) ao que chamamos de “nós mesmos”, mas isso é altamente discutível. E, ainda que pudéssemos conhecer completamente a nós mesmos (ou tomarmo-nos a “nós mesmos” completamente como objetos), qual das nossas “faculdades”, ou então qual de nossas “habilidades”, seria a fonte do conhecimento de nossa verdadeira “essência” ? A “razão”, a “inteligência”, a “sensibilidade” ? Seria a poiesis, aqui no sentido de uma “auto” -produção do nosso próprio Ser? Seria a práxis (saberíamos... “na prática” ([sic])? Ou seria a “arte”, já que se fala tanto da “vida como obra de arte” ? Mas... e lá conhecemos realmente em que consiste a “verdadeira natureza”, agora dessas coisas?

A fonte estaria escondida na Mitologia? Por mais preciosas que sejam as sugestões das diversas Mitologias, a expressão “é um mito” foi — infelizmente! — adotada pelo uso comum como equivalente a “não é a verdade”. E, no entanto, o senso comum tem sido questionado, e frequentemente “desmentido”, seja pela Ciência, seja pela Filosofia, seja pela “vida prática”.

Poderia a fonte ser... a “Ciência” !? Mas todas as ciências — se descontarmos o que dizem os cientificistas, ou seja, os que tomam a Ciência como autoridade máxima, ou “absoluta” — estão literalmente perplexas diante da questão (Capítulo 2, adiante).

E no que diz respeito à “religião” ou às religiões? Poderia a religião ser a fonte da resposta? Mas em que sentido? Em algum dos misteriosos sentidos de “fé” (pois fé não é crença)? No sentido de que teríamos um Criador e Ele — absolutamente distinto de nós mesmos (em todo e qualquer aspecto?!) — nos daria a conhecer a resposta verdadeira? Ou no sentido de uma “experiência” sui generis, dessas que costumam ser chamadas de “místicas” ? Mas, ainda que assim fosse: experiência... de Quem? E de Quê?

Seja como for, eis uma verdade que poderia ser expressa de maneira lapidar: não seria a fonte de uma resposta que a tornaria verdadeira; é ou não é uma conquista moderna da humanidade a “descoberta” de que “autoridade não é argumento” ?

Consideremos agora, ao invés das fontes, as respostas em si mesmas, venham de onde vierem, tomadas como que objetivamente em seus conteúdos e méritos intrínsecos, independentemente de suas procedências ?- abstração que, por sua vez, daria margem a longas discussões —, e a situação parece piorar, pois a variedade de respostas é tão desorientadora que poderíamos buscar indefinidamente por um critério seguro para avaliá-las quanto à sua verdade. Numa longa lista, que iria de “animal racional”, “corpo”, “mente”, “alma”, “ideia divina”, homo-isso, homo-aquilo, até “máquinas orgânicas”, artefeitas por acaso e necessidade ao longo de bilhões de anos e, em certos sentidos, muitíssimo obscuramente identificáveis pelos seus respectivos genomas, as teses a respeito de nossa “verdadeira natureza” nos deixam — na falta de alguma misteriosa “intuição” — boquiabertos, indecisos, incrédulos.

No caso das respostas, felizmente, não se precisa procurar longe para começar a busca: há um filósofo brasileiro contemporâneo (é tentador mesmo, no meu entender, dizer: o único brasileiro que reconheço como sendo verdadeiramente um filósofo), autor de uma obra original, sistemática, arquitetônica e monumental, que pretende responder precisamente (!?) à nossa pergunta. Trata-se do padre Henrique C. L. Vaz, S. J. Concordo em alguns pontos com a sua resposta, mas discordo dela em questões demasiadamente fundamentais. Ou melhor: concordar com a sua resposta in totum requereria, para mim, pressupor demasiado. Por meio de uma elaborada dialética hegeliana (o leitor verá que sou extremamente avesso à dialética), Vaz julga poder conciliar o que a meu ver é inconciliável, ou seja, dentre outras coisas, integrar ou harmonizar os pontos de vista de Platão e de Aristóteles acerca de nossa verdadeira natureza, como se pudessem ser complementares (o leitor verá que penso muito mal da obra de Aristóteles) — integrar, ou harmonizar, de fato, quase toda a história da filosofia —, numa Antropologia Filosófica compatível com o catolicismo — o que não considero um defeito! —, mas que, infelizmente, toma a Ética como fundamental. (O leitor verá que, para mim, reconsiderar completamente a problemática da “Ética”, até mesmo como legítimo objeto de investigação filosófica, é condição sine qua non para a articulação teórica de uma Antropologia Filosófica que sequer se pareça com a verdade.) De modo que, embora julgue indispensável o reconhecimento da obra de padre Vaz, e desde já, no Prefácio, prestar-lhe uma homenagem, por mais admiráveis que sejam seu poder de síntese e sua fantástica erudição, sua Antropologia Filosófica — hélas! — não me exime de escrever este ensaio.


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