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Fernandes (FC:76-79) – substância

quarta-feira 24 de abril de 2024, por Cardoso de Castro

  

Há muitas imitações do Ser. A mais barata é a noção de “substância”, a mais cara, a de “essência”. A de preço inestimável, origem de todo o sofrimento humano, é a imitação do Ser que chamamos de “Eu”. Mas nós vamos começar com a Substância. “O importante”, observa Chateaubriand, nosso conselheiro para assuntos ockhamianos, “não é que não deveria haver mais coisas sonhadas na sua filosofia do que há na realidade, mas que não deveria haver mais na realidade do que é sonhado na sua filosofia”. Pois então eu lhe afirmo, caro amigo desconhecido, que a noção de “substância” não faz sentido. Não consigo sequer sonhar com ela, quanto mais concebê-la como um tipo de entidade que deva entrar na constituição de algum mundo possível. O que seria “substância”? Mesmo as “imateriais”, [76] como Deus, os anjos e as almas, só poderiam ser concebidas por analogia com as “materiais”. Mas haverá alguma diferença entre os casos aos quais podemos conceber que a noção de “substância” se aplica, e os casos aos quais podemos conceber que ela não se aplica? Haverá sequer alguma aplicação “paradigmática” dessa noção?


Não faz sentido, portanto, a ideia de substância como o que permanece idêntico a si mesmo ao longo do tempo. Se considerarmos o fato de que o que chamamos de “matéria” de um corpo individual está sempre sendo substituído, a noção fará menos sentido ainda. Que quantidade de mudança material é compatível com a identidade? Tampouco faz sentido, portanto, a ideia de matéria como o que permanece idêntico a si mesmo ao longo do tempo. Evidentemente, não adianta apelar para a evidência, pois não há evidência sem critério, e andaríamos em círculos. Não se pode “perceber” matéria como tal, não mais do que se pode perceber a substância-substratum.

A possibilidade de conceber a recriação contínua do mundo, momento a momento, impede que a similaridade qualitativa e a contiguidade espaço-temporal (observação contínua) sejam condição logicamente suficiente para sua identidade. E tal recriação não é apenas concebível, pois equivale à concepção física de coisas individuais como curvas espaço-temporais. Mas se similaridade qualitativa e contiguidade espaço-temporal não são condições logicamente suficientes para identidade ao longo do tempo, tampouco há condições necessárias. Coisas transformam-se em outras e temos que decidir se estamos diante da mesma coisa transformada, ou de uma outra coisa diferente: lagarta e borboleta, uma casa reformada, um artigo revisto, são contra-exemplos para o critério de similaridade qualitativa; bicicletas desmontadas e remontadas, a divisão de uma ameba em duas, um gato que desaparece de vista e depois reaparece, são contra-exemplos para o critério de contiguidade espaço-temporal; fazer um pote de café com os cacos de uma jarra quebrada é um [78] contra-exemplo para o critério de matéria “próxima”. Isto para não falar do navio de Teseu.

Não se trata absolutamente de ceticismo acerca da possibilidade de identificar substâncias, mas de que não faz sentido essa ideia mesma. Portanto, as coisas individuais não são substâncias. São, talvez, séries de dados sensoriais, séries de objetos momentâneos, agrupamentos espaço-temporais de qualidades. O critério para identificação de séries desses tipos é, afinal, o de pertinência a uma classe.


Ver online : Sergio L. C. Fernandes


FERNANDES, Sérgio L. de C.. Filosofia e Consciência. Uma investigação ontológica da Consciência. Rio de Janeiro: Areté Editora, 1995