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Fernandes (FC:156-161) – identificação – consciência-inconsciência

domingo 10 de outubro de 2021, por Cardoso de Castro

  

Ora, o falso sempre é dualidade — dizemos que ele “gera” dualidade apenas porque estamos num jogo de luz. Essa falsidade se chama “Identificação”, e esta é a primeira dualidade: de um [156] lado, “isso que se identifica”; de outro, “aquilo com que isso se identifica”. Mas não havia, no nosso jogo, no sentido próprio de “havia”, um “eu”: nosso objeto de investigação, desde o início, foi a consciência. Sendo o pensamento e a palavra já artifícios, estamos movimentando uma estrutura simbólica, como se descêssemos uma escada para inspecionar um porão. (Será que poderemos, depois de chegar lá embaixo, jogá-la fora? Não! Não pretendo “jogar fora” nenhum “degrau “ da fenomenologia da experiência consciente, exceto pseudo-objetos, ou impossibilia, do tipo “quadrados redondos”). Agora há um “eu”, que aparece no jogo, ou seja, o objeto, o “eu” que vai desmaiar etc. (Pois já compreendemos que o que “desmaia” sou eu, não a consciência.) Mas em lugar de que aparece esse “eu”? Não pode ser no lugar da consciência, ou seja, agora, da transparência, pois a transparência é imutável. Lembre-se de que substituímos a Luz pela transparência, o que é coerente. Mas seria violar as regras do jogo, como se ele fosse um “vale tudo”, substituir a transparência pelo “eu”.

Este segundo movimento parece incompleto: falta um elo na cadeia, um degrau na escada. Ainda não chegamos ao porão. Repito: se, por um lado, essa investigação é fenomenológica, por outro, é trans-fenomenológica. Não tente o leitor descobrir o que quero dizer com isto nos seus arquivos mentais de cultura filosófica. Estou inventando mesmo. Por isso lhe pedi, já no Prefácio, que me emprestasse sua atenção, ao invés de me conceder a honra de uma “atitude”. Vamos tentando descobrir o que é isso, juntos. Investiguemos.

Enquanto “fenomenólogo”, tenho a última palavra sobre o que me parece: basta usar os famosos parênteses, ou operar a (na verdade insustentável) suspensão. Mas enquanto filósofo, não submisso a nenhuma tirania metodológica, aquela “última palavra” não tem para mim infalibilidade papal. Penso falsamente que perderei a consciência; compreendo que não posso perdê-la; compreendo que, no lugar dela, o que perderei é o “eu”, que “apaga”. A consciência como tal é transparência imutável, logo não é ela que tem objeto. “Eu” posso “visar” um objeto. Meu “estado mental” tem objeto: “a perda da minha consciência”. Mas quando o compreendo, o objeto muda: de “minha consciência”, torna-se “eu”, a perda de “mim mesmo”. (É isto, o Falso: aquilo que, compreendido, nunca é o que era). É esse “eu” que vai, digamos, “mudar de estado”, não a consciência. [157]

Temos, na estrutura do mito, os seguintes elementos: a consciência como transparência imutável; a mente inconsciente, ou, quiçá, “intencionalmente consciente”; um pensamento, um juízo, portanto uma identificação; o Falso; um “eu” que não é imutável, que pode perder-se. Será que estamos diante de uma “jogada” de luz em que a translucidez é “esquecida” e substituída por outra coisa? Mas qual delas? Se alguma coisa ocupou o “lugar” da consciência, então foi a “inconsciência”, como já vimos. Mas “inconsciência” é algo meramente negativo: “ausência de consciência”. E já sabemos que não pode haver ausência de consciência. Não pode haver inconsciência real sem que se pressuponha um “quem” e um “de que” (seria trivial dizer que uma pedra é inconsciente). Pode haver inconsciência em quem erra, ilude-se, ignora, correspondendo então esta inconsciência à “consciência” intencional, fenomenal, de uma ilusão. (Já sabemos que as ilusões podem ser mais ou menos irresistíveis aos “atos” intencionais ou ao “conhecimento” teórico — lembre-se o leitor das linhas de tamanhos, ou diferentes, ou iguais, do Capítulo precedente). A inconsciência é irreal. Em última análise, é ilusória. Deve ser um “efeito de luz”, já que o jogo é de luz. Mas, como compreendê-lo?

Se um dos nossos elementos é um juízo, então um dos nossos elementos é uma identificação. Como vimos no Capítulo precedente, as identificações materiais são verdadeiras quando seus dois termos projetam um ente, uma realidade, uma existência, fora do Ser, fora dos fenômenos. Estes são momentâneos, instantâneos, não tem duração, por isso estão fora do tempo e do espaço. Aquelas, as “realidades”, as “entidades”, as “existências”, estão no tempo e no espaço. Mas “estar no tempo e no espaço” é, paradoxalmente, só poder ser percebido como objeto-momentâneo, jamais enquanto ente temporal e espacial — estes são “inesgotáveis” em suas determinações, ou seja, no que os individua. São as intensões da intencionalidade. Perceber — instantaneamente — é projetar algo como permanecendo, durando, no tempo; de algum modo, portanto, “idêntico a si mesmo”. Nossa lista de “quadrados redondos” ou impossibilia, já verá o leitor, vai aumentar. Além da impossível “consciência de estar perdendo a consciência”, havemos de acrescentar à lista a impossível “consciência de si”. [1] [158]

O tempo, o espaço e a realidade são virtuais [2]. Não terá o leitor se dado conta da “enormidade” do que investigamos no Capítulo precedente?! Nada mais estamos fazendo, nesses últimos parágrafos, que colher o que lá semeamos. Pace Platão, não podemos ter consciência intencional de entes enquanto entes, mas somente enquanto objetos-momentâneos, ou “fenômenos”. Pace Platão, os entes, ainda que ideais, é que estão — são concebidos como estando — no tempo e no espaço. Se temos consciência deles, então essa consciência deve ser alguma forma de “consciência não-intencional” — pode-se ter consciência intencional da “brancura”, da “humanidade” etc.? Só se for “não-preenchida”, mas essa “jogada” não vale, por tudo que já disse sobre os estratagemas ad hoc de que se urde o noema husserliano. Pace Aristóteles  , não é possível ter consciência intencional de uma essência real, ou de um indivíduo (substância primeira) enquanto ente. Se para isso fosse preciso um intelecto agente, então nosso intelecto não seria “agente”. Se a predicação essencial nos dissesse o que um fenômeno seria se existisse, então ela pode errar, além de poder “acertar” quando o fenômeno não existe (Papai Noel é um ser humano etc.). Pace Descartes  , acabamos de ver que nem todo estado mental é “consciente” (intencionalmente), e que a consciência mesma não é um estado, ou não tem estados; que nem todos os estados da “forma de inconsciência” que chamamos de “consciência intencional” são intencionais. Pace Husserl  , além do que já dissemos sobre o seu erro fundamental, podemos acrescentar que a “intencionalidade” foi por ele mal concebida e que, de qualquer modo, não há maneira de concebê-la que a fizesse por-nos em contato com “essências”.

Perguntávamos pela última “jogada”... falsa; e pelo que nos acontece sob o nome de “inconsciência”. Afinal, estamos, o leitor e eu, conscientes disso tudo, se é que estamos investigando juntos o que chamávamos de “consciência”. As pistas são diversas: non confundar in aeternum! (Estamos juntos nisto: não escrevo para lhe ensinar alguma coisa). O que “nos” acontece sob o nome de “inconsciência” é, em si mesmo, ilusório, não é real. A pista mais forte chama-se “Identificação”. Mas a “jogada” que estamos tentando enxergar na estrutura do mito não pode consistir numa identificação material vulgar, a = b. Não havia “ninguém” lá, na translucidez. Portanto, não há ninguém para pensar, errar, julgar falsamente que a = b, expulsando assim do Ser uma existência. [159]

Vulgarmente se pensa que “identificação” só pode ser um ato intencional, dirigido “para fora” — o policial nos interpela: “Identifique-se”; eu “identifico” um objeto etc. Mas deve haver uma Identificação Primária, inconsciente, pela qual é necessário que, ao dizer “eu”, eu não saiba o que faço, ou seja, não conheça quem o diz, não tenha consciência intencional de quem o diz. O leitor já deve ter notado que, de modo nenhum a verdadeira consciência é a mesma coisa que consciência não-intencional. Tampouco o fato de eu vir opondo a verdadeira consciência à consciência intencional, de eu vir chamando “consciência intencional” de “forma de inconsciência”, implica o inverso, ou seja, que toda consciência não-intencional seja consciência. Temos consciência não-intencional de entes, de existentes, de realidades, porque são virtualidades. Mas Husserl, por exemplo, incluiria isso que venho chamando de “consciência não-intencional”, entre os diversos “modos” ou “aspectos” não preenchidos do ato intencional que, para ele, era da consciência. O que eu estou chamando de “consciência como translucidez” não é, nem intencional, nem não-intencional. Deve ser o que nos permite compreender a ambas, se o meu “mito” se prestar a isso.

Mas deve ser necessário, eu dizia, que eu diga “eu” sem conhecer quem o diz. Já vamos investigar esse ponto. Mas podemos desde agora ver as consequências de encontrarmos resultados positivos em nossa investigação, ou seja, as consequências de ser necessário que quem diga “eu” não saiba quem fala. Caso seja necessário que eu diga “eu” inconscientemente, sem saber quem sou — não é o destino da Filosofia investigar quem sou eu; e não é a Sabedoria, que não tem destino, o compreender a investigação? —, caso seja necessário dizer “eu” sem saber quem sou, então isto não será necessário apenas nos casos em que identifico objetos “vulgares”, como quando eu digo, “Eu vejo uma estrela”, mas também deve ser necessário quando eu identifico objetos tremendamente importantes, ou mesmo sui generis, como o objeto que sou “eu”. Atenção! Não é a consciência que se reflete a si mesma: este voltar de fora para dentro a identificação é ilusório, pois me põe para fora como objeto de identificação. Eis a Identificação Primária. Mas, caso isto seja necessário, então há, em toda Identificação Primária, um paradoxo: se for necessário que eu não conheça quem eu sou para que eu conheça o que quer que seja, para que eu conheça a mim mesmo é necessário que eu não conheça a mim mesmo. Se for necessário que eu esteja inconsciente de mim mesmo para poder estar consciente de “outra” [160] coisa, então no caso de essa “outra coisa” ser eu mesmo, só poderei estar consciente dela (de mim mesmo), se, e somente se, eu estiver inconsciente de mim mesmo. Ora, já sabemos que só me aparecem evidências quando não tenho consciência (intencional) das “teorias” que as fazem aparecer (lembre-se o leitor das linhas e seus tamanhos). Não vale o mesmo para “teorias” a meu próprio respeito, ou “teorias” sobre quem sou eu? Na compreensão deste paradoxo está a resposta às nossas perguntas: como é possível o Falso (meu juízo: “vou perder a consciência”)? e como é possível a inconsciência, se a consciência é indestrutível? Responder a essas perguntas é compreender a “formação do sujeito” e a “aparição do mundo”. (No budismo, é contemplar os Doze Elos da Cadeia da Originação Dependente.) Mas, em Filosofia, responder a uma pergunta é, por sua vez, compreendê-la.


Ver online : Sergio L. C. Fernandes


[1A identidade formal a = a é um caso “degenerado” da identidade material, a = b, no mínimo porque os tokens da primeira são distintos. Aqui eu fico com Hegel, etc.

[2V. Cap.4, adiante, para minha versão mais, digamos, “científica” desta afirmação.