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Inwood (DH) – fenomenologia heideggeriana

quarta-feira 13 de dezembro de 2023, por Cardoso de Castro

  

Heidegger   comparou Husserl   a Descartes   (GA17, 254ss). Ambos admitem a suprema importância de um certo conhecimento da verdade, da verdade teórica encontrada primariamente na matemática e nas ciências naturais, que eles desejam fundamentar. Ambos buscam a certeza dentro de si mesmos, na consciência. Ao contrário de Descartes, Husserl não quer excluir nenhuma ciência nem o "mundo-da-vida" cotidiano de seu espaço de jogo. Ele reconhece a intencionalidade e desenvolve a fenomenologia, considerando invariavelmente os fenômenos e a ciência na sua relação com a consciência; não possui uma fórmula teológica. No entanto — contra o espírito da fenomenologia — Husserl herdou em demasia as teorias tradicionais de Descartes e de outros filósofos acerca do ego cogito ou consciência, com seu ideal de certeza e de ciência "rigorosa" à custa do mundo-da-vida onde começa a ciência, das ciências "inexatas" tais como a história, e de um filosofar mais perscrutador, reflexivo, "não-científico" e holístico. O conceito de intencionalidade de Husserl também é teórico. O amor baseia-se na representação de alguém como uma entidade física   à qual significação e valor são atribuídos. Uma mesa é vista primeiramente como res extensa, coisa extensa, isolada, não como algo ao qual se está para comer, muito longe da janela etc. (GA63, 88-92). Para Husserl, "tudo o que me afeta, como um ego ‘desenvolvido’, é percebido como um ‘objeto’, um substrato de predicados" (MC  , 79). Esta explicação, permeada de conceitos tradicionais, distorce tanto minha consciência de uma mesa quanto a de uma brisa leve ou a de o que eu vejo pelo canto do olho. A intencionalidade torna tudo muito agudo e explícito, ignorando a formação da qual eu estou tacitamente consciente (GA17, 318). A explicação cartesiana dos entes dada por Husserl conforma-se à sua visão do sujeito. Ele focaliza o puro ego, introduzindo o corpo e o ser-no-mundo como meros pensamentos posteriores. Desta forma, descreve coisas tais como a mesa, do ponto de vista de um espectador visual. O ego é, para Husserl, existente "por si mesmo em evidência contínua" (MC, 66). Na realidade, eu em geral dificilmente tenho consciência de mim mesmo, mas estou absorto em uma tarefa; eu normalmente sou inautêntico, e faço e penso coisas porque isto é o que se faz e se pensa.

Não somos tão perspicazes com relação a nós mesmos quanto Husserl supõe. Nós nos interpretamos mal, tanto porque não podemos ver o que está debaixo de nossos narizes, quanto porque sucumbimos à tradição. Um remédio é examinar nossa situação filosófica e a tradição que a denuncia. Husserl observou a história da filosofia à procura de antecipações da sua própria " filosofia científica". Ele permaneceu preso à tradição que explorou inadequadamente. Heidegger trava um debate com a tradição para poder dela libertar-se. Considerou a sua fenomenologia como hermenêutica — extraindo o significado de um texto como um todo, um texto obscurecido por interpretações passadas. Heidegger frequentemente denigre Husserl: "Alunos de Husserl chegaram a passar todo um semestre discutindo o aspecto de uma caixa de correio. [...] Se isto é filosofia, então eu sou pela dialética!" (GA63, 110). Ele questiona os conceitos básicos da fenomenologia husserliana: eu, ego, consciência, objeto. Ainda assim, sua análise de dasein, ser-no-mundo e temporalidade, é reconhecidamente um empreendimento fenomenológico, comparável à obra de Husserl, que passa então a sofrer a sua influência. Ele tenta revelar o inconspícuo sem torná-lo conspícuo. O próprio Dasein deve ser capaz de discernir os aspectos atribuídos a ele pelo filósofo. Mais obstinadamente que Husserl, Heidegger procura motivações dentro da vida cotidiana para a atitude filosófica. Ele encontra uma versão da epoche: a angústia despe o mundo de significação predeterminada e prepara-o para o filósofo. Mais tarde, quando o ser como tal (em contraste com o " ser dos entes") substitui Dasein como seu interesse principal, a fenomenologia é suplantada pela "história do ser" (N2, 415/ENDPHILO, 14s). "Fenomenologia" é dessas palavras da moda que SZ, uma situação-limite de transição para coisas mais elevadas, inevitável mas equivocadamente, utilizou (GA49, 28). [DH]


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