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Giuseppe Lumia: o existencialismo teológico - Barth

terça-feira 5 de outubro de 2021, por Cardoso de Castro

  

No já citado Römerbrief Barth (1886) desenvolve o conceito da diferença qualitativa entre o temporal e o eterno, entre o homem e Deus, conceito já formulado por Kierkegaard  , mas que Barth leva até às consequências extremas, acentuando ao máximo a negatividade do homem relativamente à transcendência de Deus. «Se eu tenho um sistema — escreve Barth — este consiste em ter constantemente presente aquilo a que Kierkegaard chama a diferença qualitativa infinita entre tempo e eternidade  . Deus está no céu e tu estás na terra. A relação deste Deus com este homem e, reciprocamente, a relação deste homem com Deus, é para mim o tema único da revelação e da filosofia».

«Deus está nó céu e tu estás na terra» — é nesta contraposição radical que está todo o sentido da filosofia de Barth. Deus é tudo — o homem é nada. Entre um e outro não existe relação, mas separação; não há de um para o outro passagem dialéctica, só pode existir um salto qualitativo. 0 homem é pecador, e nada pode fazer para salvar-se. Antes, o seu pior pecado é a presunção de que algo que ele faça possa servir-lhe para a sua salvação. O homem colhe o sentido do seu existir somente negando-se, aceitando o seu nada diante de Deus, observando a insignificância da sua vida e dos valores da sua civilização em face da inevitabilidade da sua morte. É este o momento da «crise», no qual Deus opera o milagre, exercendo do alto a sua ação redentora, e convertendo no «sim» da sua graça o «não» pronunciado pelo homem.

Deste esboço, necessariamente sumário, resulta claro que a teologia de Barth se apresenta como herdeira da tradição luterana e calvinista, revivida através da experiência kierkegaardiana. Para Lutero só a fé, e não já as obras, conduz à salvação. Calvino dá um passo adiante: nega valor de salvação mesmo à fé e, retomando o motivo menos válido da teologia agostiniana, afirma que Deus concede gratuitamente a graça só àqueles que no seu imperscrutável desígnio predestinou para a salvação, condenando à danação todos os outros. Esta tese foi acolhida e exagerada por Barth, que acentua até ao extremo o conceito da total negatividade do homem. Na crise, de fato, não é o homem que age, mas Deus; não é o homem que sobe até Deus, mas sim Deus que «irrompe» na vida do homem, instaurando o seu «despótico domínio».

O menosprezo pelo mundo humano e pelas instituições em que ele se articula, é completo em Barth. Encontrando-se diante do texto de S. Paulo segundo o qual «Deus retribuirá cada um segundo as suas obras», Barth dá dele uma forçada e capciosa interpretação, que por isso mesma é bastante indicativa do seu pensamento. Não é, diz ele, que as obras tenham em si um valor que as torne meritórias ou não diante de Deus — Deus é que as qualifica de um modo ou de outro, segundo o seu impenetrável desígnio. O Juízo de Deus poderia comportar «a condenação mesmo de um Francisco de Assis   e a justificação mesmo de um César Bórgia». Em uma tal concepção é indiscutível que a moral e a própria prática religiosa não têm sentido algum. Na verdade, nada que o homem possa fazer lhe consente transpor aquela «barreira da morte» (Todeslinie) que separa o homem de Deus; nem existe ato de humildade ou de devoção que possa grangear-lhe algum mérito diante de Deus. Só Deus mesmo pode conceder-lhe o dom da sua graça. Barth distingue a Igreja de todas as outras sociedades humanas, da família ao estado, daquelas que se fundam sobre interesses meramente materiais àquelas outras que, pelo contrário, se instauram sobre um mais alto vínculo cultural; recusa todavia identificar a Igreja com o «reino de Deus». Também a Igreja visível, como obra do homem, não realiza senão uma comunidade (Gemeinde), enquanto que verdadeira comunhão (Gemeinschaft) só pode existir em um horizonte ultra-terreno.

Através da crise, o homem novo substitui-se ao homem velho; fulminado na estrada de Damasco, Saul torna-se Paulo. Antes da graça ele é um puro estar-aí (Dasein), qualquer coisa que é, simplesmente, como uma pedra, ou uma árvore, ou um cão, esmagado sob o peso da carne, sujeito ao determinismo das forças históricas. É por meio da graça que ele emerge da trama dos acontecimentos temporais e toma o valor que Deus lhe atribuiu, que se torna «filho de Deus». O estar-aí adquire então um sentido, torna-se existência (Existem).

Que valor têm, então, as ações do homem, uma vez redimido pela graça? Nas obras mais recentes, e particularmente no terceiro volume da sua monumental Kirchliche Dogmatik (1932-1951), Barth tenta uma valorização positiva do homem e da sua história, enquanto santificados pela graça. E, para tal, elabora um conceito, o da «analogia fidei», que contrapõe à «analogia entis» da teologia tradicional. Entre Deus e o homem, diz ele não existe analogia alguma essencial: Deus é tudo e o homem é nada; nada é o significado da sua história e nada existe nele que possa estabelecer uma relação de analogia com Deus. Mas existe uma outra analogia — aquela que Deus mesmo estabelece soberanamente entre si e o homem tocado pela graça: é a analogia da fé. Por ela as ações do homem, embora permanecendo em si insignificantes, tomam o significado que Deus se compraz em lhes conferir, adquirem um valor que por si mesmas não têm. Também os fatos da história adquirem um sentido e podem ser reveladores do desígnio oculto de Deus. A história (Historia), mera sucessão de acontecimentos ligados entre si por um nexo de causas e de efeitos, torna-se historicidade (Geschichte), adquire um sentido divino, torna-se uma «oportunidade», um «pretexto» do qual Deus se serve para se revelar. Também em Barth existe uma tentativa de revalorização da ética mediante a contraposição de uma ética da graça à ética da consciência. Embora permanecendo certo que as obras não têm valor algum para os fins da salvação, devemos agir, afirma, «como se» (als ob) a justificação fosse uma possibilidade humana. Neste quadro também as nossas relações com o próximo podem assumir um valor positivo, não, porém, segundo a medida do nosso critério humano sobre o justo e o injusto, mas sim na medida do que é comandado ou proibido pela vontade revelada por Deus.

Que valor se pode atribuir a tal tentativa do «último Barth» para restituir um certo significado ao homem, à sua ação no mundo, às instituições que nascem de tal ação? Segundo nos parece, Barth não sai do seu niilismo ótico, uma vez que, se ele reconhece por vezes um certo valor à ação do homem, tal valor não é nunca referível ao homem, mas a Deus que lho confere por um ato seu, de mero arbítrio. Quem age é sempre Deus, enquanto o homem é somente «agido» por Deus. A tentativa demonstra, antes, como um niilismo absoluto não poderá ser aceite nem mesmo pelo filósofo mais consequente, especialmente se este tiver, como Barth, que corajosamente se opôs ao nazismo, uma vigorosa consciência moral e cívica.