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Giuseppe Lumia: Sartre

terça-feira 5 de outubro de 2021, por Cardoso de Castro

  

O «fenômeno» Jean Paul Sartre   não interessa somente à filosofia, ao teatro, ou à literatura, — é um «fenômeno» que implica com os próprios costumes. Se em um certo momento, isto é, no após-guerra, o existencialismo se tornou uma moda e ultrapassou o círculo restrito dos especialistas, criando à sua volta «uma atmosfera de curiosidade e de escândalo», deve-se isso, em larga medida, à influência de Sartre, ao interesse despertado pela sinceridade quase brutal com que ele tratou nos seus escritos, em um momento em que o público, acabada a grande tragédia, era particularmente sensível, os temas mais escaldantes da vida contemporânea. O primeiro a queixar-se desta «extensão» foi o próprio Sartre, que foi obrigado a sublinhar o caráter «austero» da sua filosofia, «destinada estritamente aos técnicos e aos filósofos». E, na verdade, as obras filosóficas de Sartre, designadamente a mais importante entre elas, L’être et le néant, publicada em 1943, precisamente no decorrer da tragédia, não se recomendam, decerto, por uma leitura fácil. Escritas no mais tradicional estilo acadêmico, caro aos professores alemães, só algumas raras páginas, em que a análise psicológica prevalece sobre a pura sedução especulativa, deixam antever algo do estilo, ao mesmo tempo incisivo e brilhante, do autor de Le mur e de La Nausée. Por outro lado, a tradição acadêmica alemã não está presente somente no estilo, inspira também profundamente todo o pensamento de Sartre, ao qual fornece alguns dos motivos condutores mais importantes da sua obra. Nenhum discípulo de Husserl   se ressente tanto da influência do mestre como Sartre, que esteve em contato com a fenomenologia durante a sua permanência em Berlim entre as duas guerras. Na verdade, foram de índole declaradamente fenomenológica os primeiros ensaios sobre L’imagination e L’imaginaire, publicados respectivamente em 1936 e 1940, como «Essai d’ontologie phénoménologique» é o sub-título de L’etre et le néant. Da fenomenologia extrai Sartre a teoria da intencionalidade da consciência, segundo a qual, como é sabido, a consciência não pode explicar-se sem ser dirigida a um fim, sem ser «compreendida» em direção a um objeto, sem ser «consciência de qualquer coisa». Sartre chama à consciência être-pour-soi, e être-en-soi, ao seu objeto: o mundo, os outros. O ser que é presente para a consciência é o fenômeno, mas Sartre acrescenta, de seguida, que nada existe além do fenômeno, isto é, as coisas apresentam-se-nos tal como são.

O être-en-soi não é nem possível nem necessário. Não é (simplesmente) possível, porque é; não é necessário, porque poderia não ser. Nem mesmo se pode dizer se é passividade ou atividade, porque estas noções têm um significado puramente humano, não tendo sentido algum excluída a referência ao homem. Do être-en-soi pode dizer-se que é simplesmente pura contingência, inércia, opacidade, não-sentido, gratuidade absoluta.

Em face do ser-em-si, a consciência, o être-pour-soi, só pode constituir-se negativamente; dela se pode somente dizer que não é o mundo, é a negação do mundo. A consciência é a negação do ser, é o não ser, é o nada. Entre o ser e o nada que é a consciência nenhuma relação é possível. Toda a obra de Sartre, filosófica e literária, é a demonstração da impossibilidade desta relação. O ser é qualquer coisa de maciço e de impenetrável, de inimigo, de supérfluo, de absurdo para a consciência. Sartre exprime esta ideia dizendo que, para nós, o ser «é demais» e que o sentimento que experimentamos perante ele é de profunda e radical «náusea». A náusea está no centro da experiência existencial de Sartre. Ela é o desgosto que nos vem das coisas, é, literalmente, estímulo ao vômito, necessidade de expeli-las, dado que não conseguimos de modo algum assimilá-las.

Mas não só as nossas relações com as coisas se situam, segundo Sartre, sob o signo da impossibilidade, pois o mesmo se passa com as relações com os outros homens. O homem não pode de modo algum renunciar aos outros — demonstra-o a sua natureza essencialmente sexual — e todavia não pode estabelecer com eles nenhuma relação positiva de compreensão e de amor. Às relações com os outros dedica Sartre toda a terceira parte de L’être et le néant, bem como algumas obras literárias, como Le Mur (1937), uma coleção de novelas, e Huis clos, um drama de 1945, que podem considerar-se das páginas, ao mesmo tempo, mais penetrantes e mais desconcertantes saídas da pena do homem de letras-filósofo francês.

A presença do outro, explica ele, introduz uma nova perspectiva no meu mundo, faz com que este não seja mais o «meu» mundo, mas seja também o mundo do outro. Quer dizer, a simples presença do outro tem o efeito de me espoliar. «Estou em um jardim público. Perto de mim estende-se um prado e na orla deste há alguns bancos. Um homem passa perto dos bancos. Eu vejo este homem, apercebo-me dele como um objeto e ao mesmo tempo como um homem... Se devesse pensar que não é mais do que um fantoche, e só isso, aplicar-lhe-ia as categorias que me servem para agrupar as «coisas» espaço-temporais. Isto é, tê-lo-ia apercebido como qualquer coisa perto dos bancos, a dois metros e vinte centímetros do prado, qualquer coisa que exerce uma certa pressão sobre o terreno... Em suma, nenhuma nova relação surgiria, por sua causa, entre as coisas do meu universo... Apercebê-lo como homem é, pelo contrário, colher uma relação não indicativa, é registrar uma organização sem diferença das coisas do meu universo em torno deste objeto privilegiado». O universo que eu construíra segundo o meu ponto de vista, mantém-se, mas agora sofre uma orientação diversa, porque é construído de um centro diverso. Eu posso apreender a relação espacial entre o verde do canteiro e aquele homem, mas não saberei nunca como aquele verde se lhe apresenta. Qualquer coisa, portanto, me escapa. Um elemento de desagregação entrou no meu mundo e espoliou-me. «Todas as coisas estão no seu lugar, tudo existe sempre para mim, mas tudo é percorrido por uma fuga invisível, encaminhada para uma novo objeto. O aparecimento de outros no mundo corresponde, portanto, à manifestação do resvalar de todo o universo».

Mas não só a presença do outro me rouba o meu mundo, como também ela tende a reduzir-me a mero objeto: «para o outro eu estou sentado como este tinteiro está sobre a mesa; para o outro estou curvado (a olhar), como esta árvore está inclinada pelo vento». A simples presença do outro, o seu simples «olhar» tende a negar-me como sujeito e a reduzir-me a um objeto do seu mundo. Sentimentos como o pudor, a vergonha, a humildade, a discrição, exprimem, para Sartre, a defesa instintiva do eu que tem a preocupação de subtrair o maior campo possível de si mesmo ao olhar alheio.

«O meu pecado original — diz Sartre — é a existência do outro». Eu não posso defender-me do outro senão tentando, por minha vez, reduzi-lo ao meu poder. Entre mim e o outro não pode existir senão conflito: ou eu esmago o outro, torno-me o seu senhor e tento destruí-lo, ou o outro me esmaga e me destrói. O «bellum omnium contra omnes» que Hobbes   colocava no princípio e fora da civilização, é para Sartre a condição normal da humanidade: «o conflito é o sentido original do ser-para-os-outros».

De dois modos eu posso defender-me, segundo Sartre, do outro: ou conquistando a sua liberdade, ou seja, apoderando-me do outro como sujeito, ou suprimindo a sua liberdade, isto é, apoderando-me dele como objeto.

A primeira via é a do amor. No amor eu tento constituir-me como objeto privilegiado, mesmo absoluto, da liberdade do outro. Amor não é mais do que desejo de fazer-se amar, é querer ser o objeto único da vontade do outro; não destruir, portanto, esta vontade, mas fazer sim que não «queira» senão a nós. Esta tentativa está destinada ao insucesso, porque também o outro pretende ser amado do mesmo modo, isto é, quer capturar, do mesmo modo, a minha subjetividade. Enquanto eu procuro fazer perder o outro, também eu me perco na mesma exata medida.

Falhada a tentativa de conquistar a liberdade alheia, não me resta outra alternativa que não seja suprimi-la, reduzindo o outro a pura objetividade — tentativa que se traduz no desejo sexual. Na relação sexual a consciência submete-se totalmente ao corpo, faz-se carne, e consente que o outro a possua. Eu quero possuir o corpo de outrem, na medida em que a sua consciência se identifica com ele. Mas mesmo esta tentativa está destinada ao fracasso, pois o outro faz-se carne para quem se faz carne para ele. Ainda uma vez eu me perco — e na mesma medida em que quero perder o outro.

O amor e o desejo sexual exasperam-se até ao limite, respectivamente, da atitude masoquista de quem, degradando-se e aviltando-se a si mesmo, procura fazer-se absorver pelo outro como mero objeto, como «coisa», e na atitude sádica de quem, pelo contrário, agindo cruelmente sobre o outro, tenta reduzi-lo a simples objeto do seu prazer.

Mas estas atitudes, manifestamente patológicas, não servem senão para confirmar o fracasso do amor e do desejo, uma vez que a liberdade não resulta daí inteiramente sufocada e, portanto, a redução, a objeto, de si mesmo ou do outro não é jamais completamente conseguida.

O conflito entre mim e o outro não está, portanto, destinado a resolver-se com o triunfo e com o aniquilamento de outro dos antagonistas. A presença insuprimível do outro é a minha condenação irrevogável. Este tema é desenvolvido por Sartre em um dos seus dramas mais felizes: Huis clos. Em um inferno modernamente situado em um quarto de hotel encontram-se três danados: um desertor, Garcin, uma infanticida Estela, e uma anormal, Inês. «Para cada um dos três o suplício é infligido pela presença dos outros. Garcin, de certo modo, conseguiria suportar mesmo as penas infernais, se alguém o tranquilizasse, dizendo-lhe, pelo menos uma vez, que desertando não traiu, que apenas se mostrou, com tal gesto, coerente com os seus princípios pacifistas; e Estela, que se enamorou dele, está disposta a contentá-lo para ter, em troca, um pouco de amor. Mas Inês, enamorada, por sua vez, de Estela, descobre a Garcin a crua verdade; o reconhecimento de Estela é destituído de valor porque é sugerido unicamente pelo interesse, pelo apetite carnal; cobarde em vida, sê-lo-á eternamente- e ela está ali, para recordar-lho, para fazê-lo sofrer, como Estela está ali para a fazer sofrer a ela, e ele Garcin para levar o sofrimento a Estela». O inferno, conclui Sartre, «são os outros». É esta a terrível condenação do homem : deve permanecer acompanhado, sem poder sair da sua solidão.

São estas as conclusões francamente desconfortantes a que conduz a análise existencial de Sartre do ser-para-os-outros. Deve reconhecer-se a Sartre o mérito de haver introduzido na temática filosófica o elemento sexual, que até então dela era quase totalmente excluído ,se bem que ele tenha no mundo da vida a importância que todos conhecemos. Sartre foi, como é claro, manifestamente influenciado, sobre este ponto, por Freud  , mas, ao contrário deste, desconhece as sublimações do instinto sexual em algumas daquelas que constituem as manifestações mais elevadas da alma humana. Por outro lado, e diversamente de Freud, não considera este instinto o dado primitivo através do qual se explica um certo número de fenômenos, mas considera-o, sim, um fenômeno que necessita, por sua vez, de explicação, uma manifestação secundária relativamente a um projeto primitivo, que é o de assimilar o outro. É evidente, por outro lado, como a análise sartriana, delineada para surpreender os aspectos mais materiais do amor, deixa escapar o enorme valor ideal que, no entanto, lhes é conexo. Por isso, mais penetrantes e realísticas nos aparecem as considerações de Scheller, que vê na comunhão amorosa a revelação de dois seres, um revelado ao outro, e cada um a si mesmo. Para Sartre a reciprocidade é a falência do amor como projeto de apropriação do outro. Mas não se apercebe de que na reciprocidade, ao contrário, o ato sexual se resgata no reconhecimento da dignidade do outro, pelo que o outro cessa de ser o simples instrumento do meu prazer, para ser reconhecido como fim-em-si, como pessoa.

Pode censurar-se ainda a Sartre que não é possível reduzir ao esquema do conflito a infinita variedade das relações sociais, as quais nos mostram, não só formas de conflito, mas também formas de colaboração. Sartre responde que mesmo estas últimas são subsumíveis às por ele configuradas. Examina, em particular, a consciência de classe e mostra que ela se forma unicamente como solidariedade em relação a um terceiro (o patrão ou o senhor feudal, o burguês ou o capitalista), que «nos olha». É a mesma solidariedade que, por um momento, faz esquecer ao par amoroso o seu íntimo conflito e o impele, solidário, contra o indiscreto que o olha. Trata-se de uma solidariedade-contra. «A unidade da classe operária não pode afirmar-se senão em relação à classe que exerce a opressão, perante a qual ela não é mais que um «nós-objeto». Sartre não nega que possa existir também uma solidariedade que não seja solidariedade contra alguma coisa ou alguém, e cita o exemplo dos passageiros que percorrem juntos os corredores do metropolitano, mas acrescenta que uma tal experiência não tem mais do que um valor psicológico, privada, no entanto, de significado metafísico. Assim, o burguês, diz ele, não tem consciência de pertencer a uma determinada classe, antes nega, por princípio, a existência de classes, atribuindo as tomadas de posição do proletariado às manobras de agitadores ou a injustiças que podem ser reparadas segundo providências adequadas; faz apelo à solidariedade de interesses entre capital e trabalho e opõe à solidariedade de classe uma solidariedade mais vasta, a solidariedade nacional que suprime o conflito. Ele não faz isto por baixo cálculo político ou por mera incapacidade de ver as coisas sob a sua verdadeira luz, mas sim porque não consegue realizar a sua comunidade de ser com os outros membros da classe dominante. Só quando uma classe oprimida se revolta, o burguês presta atenção à solidariedade com a sua classe, mas é uma solidariedade-contra, é um ser-nós-objeto em face do «olhar» vingador dos oprimidos. Não se pode negar que a conclusão de Sartre não seja, efetivamente, certa, ao revelar que entre os homens a solidariedade se estabelece mais facilmente quando existe um inimigo comum para combater — e a história política oferece-nos repetidas confirmações. Mas também é verdade que, em face do número infinito de exemplos que tiramos da nossa experiência quotidiana, parece pelo menos apertado reduzir todas as formas de solidariedade que se estabelecem em vista de fins coletivos de elevação social e moral, à banal medida da multidão anônima que em certas horas se apressa como um rebanho de ovelhas pelos ascensores e corredores do «metro». Vê-se claramente que toda uma importantíssima gama da experiência humana escapa à análise existencial de Sartre.

O conceito da negatividade da consciência é estreitamente conexo com o da sua liberdade. O homem não tem, na verdade, uma essência definida, define-se vivendo — o homem é pura possibilidade, liberdade infinita. Repetindo um conceito comum à temática existencialista, mas que tem origem no Renascimento, Sartre diz que no homem, mas somente no homem, a existência precede a essência. Significa isto que o homem é aquilo que ele mesmo se faz, é a totalidade dos seus atos; só vivendo, e a pouco e pouco, ele se define, permanecendo a definição sempre aberta, razão porque não se pode dizer o que um homem seja antes da sua morte, nem o que seja a humanidade antes do seu fim. O homem é o que ele escolhe ser. Isto não significa, certamente, que o homem não esteja por algum modo condicionado pela situação em que se encontra na vida depende, porém, dele o comportamento a seguir relativamente à situação. «Quando dizemos, explica ele, que um desempregado é livre, não queremos dizer que ele pode fazer aquilo que lhe agrade e transformar-se em um instante em um burguês rico e tranquilo. Ele é livre porque tem a todo o instante a possibilidade de aceitar a sua sorte com resignação ou de se revoltar. Sem dúvida, ele não conseguirá evitar a miséria; mas, do fundo dessa miséria que o envolve, pode escolher lutar contra todas as formas de miséria, em seu nome e no de todos os outros, pode escolher ser o homem que recusa aceitar que a miséria seja o destino dos homens».

Se o homem não é, mas se faz, ele assume a responsabilidade da sua escolha. E a esta escolha não pode subtrair-se, porque ele não é senão a sua liberdade: a liberdade é a sua condenação. A consciência da responsabilidade e do perigo da própria decisão é angústia. Fazendo-se, o homem escolhe, não somente por si, mas pelos outros; ele, diz Sartre, assume a responsabilidade de toda a espécie. Cada um dos nossos atos põe em jogo o sentido do mundo e o lugar do homem no universo. À angústia alia-se o desespero, isto é, o conhecimento que tem o homem de não poder contar com nenhum outro, mas só consigo mesmo, de ser só, sem remissão, sem ponto de apoio, sem guia algum. Uma vez que a ideia de Deus, segundo Sartre, é contraditória, não existe nenhum valor, nem moral alguma, que nos sejam dados a priori e que possam justificar a nossa conduta. Não existe outro fim para o homem que não seja aquele que ele determinou; não existe outro destino que não seja aquele que ele próprio forjar sobre a terra.

Sobre este ponto, pareceria que Sartre pretende construir uma moral autônoma de tipo kantiano, afirmando o valor exemplar dos nossos atos. Uma vez que a responsabilidade consiste na consciência de legiferar para a humanidade inteira, uma vez que nós fixamos com a nossa escolha o valor do bem e do mal para nós mesmos e para todos, surge espontâneo o apelo a um valido imperativo categórico que nos mande agir de modo que a máxima da nossa ação possa valer como lei universal. Mas Sartre recusa-se, claramente, a esta consequência. O imperativo categórico tem para as suas narinas o odor demasiado pronunciado de Deus; ora, Sartre, pelo contrário, decidiu-se a tirar todas as consequências da célebre proposição que Dostoevsky   põe na boca de Ivan Karamazov: «Se Deus não existe, tudo é permitido». Na verdade, se bem que o homem não possa subtrair-se à responsabilidade da escolha, esta escolha é inútil e absurda, pois todas as escolhas se equivalem, sendo tudo inútil na insignificância do todo. «Não recairei sob a tua lei», diz Orestes a Júpiter no terceiro ato de Les mouches, «eu estou condenado a não ter outra lei que não seja a minha. Não voltarei à tua natureza: mil caminhos há traçados que conduzem a ti, mas eu não posso seguir outro caminho que não seja o meu. Porque eu sou um homem». Crestes escolhe o caminho do crime. Mas neste, ele não vê tanto o meio para vingar o pai e libertar os habitantes de Argos da tirania de Egisto, mas o ato existencial autêntico que dê um conteúdo à sua liberdade, que a concretize, que o faça «existir». «Eu pratiquei o meu ato», diz ele, «e este era bom. Trazê-lo-ei sobre os meus ombros como um atravessador de rios carrega os viajantes... Quanto mais custoso de levar ele for, mais eu estarei contente porque é ele a minha liberdade». Mas a sua escolha é gratuita, porque tudo é gratuito. «Orestes sobrecarregou-se com um crime, mas poderia antes ter carregado o cachimbo. Nem por isso se modificaria o seu tecido existencial». Se o valor de um ato depende unicamente da escolha, nós não podemos escolher senão o bem, porque o bem é-o simplesmente porque nós o escolhemos. Orestes decidiu assassinar a mãe e este ato é, portanto, bom. Mas teria podido também escolher não matar e também esta escolha teria sido boa. Orestes não revela nenhum remorso. «Eu não sou culpado», clama ele após o crime; o mais vil dos assassinos é aquele que tem remorsos». A verdadeira culpa para Sartre, não é o crime, mas o remorso. O crime é bom pelo simples fato de ter sido escolhido. O remorso é, pelo contrário, culposo, pois é a negação de si-mesmo, deserção diante das próprias responsabilidades. Por isso Orestes reivindica a titularidade do seu crime, com o qual, agora, a sua existência se identifica. Necessidade e gratuidade da escolha: são estes os dois polos entre os quais é «constrangida» a nossa existência. Não existe razão para escolher, e, no entanto, não podemos deixar de escolher: a liberdade é a nossa maldição. Pois que Deus não existe, tudo é absurdo. A consciência não é mais do que a «doença do ser» e o homem não é mais do que «uma paixão inútil».

Na conclusão de L’être et le néant, Sartre promete uma sequência da obra para tratar das perspectivas morais da «realidade humana em situação», isto é, promete uma ética. Tal continuação ainda não apareceu, assim como ainda não foi escrita a terceira parte do Sein und Zeit de Heidegger  . O caso é que não podia aparecer porque, partindo das premissas «ontológicas» de L’Être et le néant, uma ética é simplesmente impossível. A ética importa a escolha de um comportamento derivado do dever entre tantos possíveis. Ora, quando todos os comportamentos sejam igualmente gratuitos e insignificantes, nenhum deles pode resultar de um dever senão por um mero ato arbitrário, e, afinal, injustificável.

Na verdade, Sartre em alguns escritos posteriores, sob o impulso, queremos crer, dos seus interesses políticos ( a participação na Resistência, e a adesão, na verdade muito condicionada, ao marxismo), traçou as linhas de uma filosofia política que ele definiu como «humanística», e que pressupõe o reconhecimento da liberdade dos outros como condição da nossa liberdade. Só pôde, no entanto, fazê-lo, obviamente, abandonando, ou pelo menos obliterando, as premissas «ontológicas» postas em L’Être et le néant.

Tome-se o mais significativo, e o mais conhecido, de tais escritos. É um texto de uma conferência feita em 1945 e publicado no ano seguinte com o título: L’existentialisme est un humanisme. Nele, Sartre procura definir a categoria da intersubjetividade. Diz que ela é constituída pela existência do eu, e também pelo conhecimento que o eu tem de si mesmo. Os outras, afirma, são a condição da existência do eu. O eu não pode ser nada (no sentido em que se diz que ele é espiritual, ou perverso, ou ciumento), se os outros não o reconhecem como tal : para obter uma verdade qualquer sobre mim, é preciso passar pelo outro. Nestas condições, a descoberta da minha intimidade descobre-me ao mesmo tempo o outro, como uma liberdade posta em face de mim, que não pensa e não quer senão por ou contra mim. Assim descobrimos de improviso um mundo que chamaremos da intersubjetividade, e é neste mundo que o homem decide o que ele é e o que são os outros. Tal mundo intersubjetivo revela-nos o nexo indissolúvel que liga a liberdade de cada um à liberdade dos outros. «Querendo a liberdade, escreve, nós descobrimos que ela depende inteiramente da liberdade dos outros, e que esta depende da nossa»; e conclui afirmando que somos levados assim a querer, ao lado da nossa liberdade, a liberdade dos outros.

É evidente que tais conclusões não podem de modo algum conciliar-se com a análise ontológica do ser-para-o-outro que Sartre tinha desenvolvido em L’Etre et le néant. Se a simples presença do outro, o seu simples «olhar» médusent, tende a roubar-me o meu mundo e a negar-me como sujeito, não vejo porquê eu deva querer a liberdade do outro em vez de procurar, como seria mais lógico, sujeitá-lo ou suprimi-lo. E se a liberdade não é tanto uma conquista quotidiana minha como a própria raiz «ontológica» do meu estar-aí, porquê esta liberdade deveria ficar comprometida, mesmo se eu escolhesse, por exemplo, ruere in servitutem? Afinal, também a minha servidão (e dos outros) seria o fruto de uma livre escolha. A verdade é que, em um mundo absurdo, onde tudo é gratuito, onde o homem mesmo é «demais», não é possível uma tábua de valores, não é possível um autêntico compromisso. Isto mesmo compreenderam muito bem os comunistas, para os quais a adesão de Sartre ao marxismo trouxe mais embaraço que satisfação. O «mistério» de Marcel revestiu uma face cristã, o «absurdo» de Sartre «impregnou-se» de marxismo. Trata-se, em definitivo, de duas escolhas irracionais e gratuitas e, em certo sentido, até equivalentes. A tanto conduz a rejeição da razão.