O Journal Métaphisique de Gabriel Marcel foi publicado em 1927, o ano em que apareceu na Alemanha o Sein und Zeit de Heidegger, mas as primeiras anotações contidas nele remontam exatamente a 1914. O pensamento de Marcel (1889) desenvolveu-se por isso independentemente do existencialismo alemão e, mais que de Kierkegaard e de Husserl, extrai os seus motivos da tradição intimista francesa filiada em Pascal, e do irracionalismo de Bergson. Dramaturgo e crítico militante, Marcel inicia aquele encontro de filosofia com literatura que é uma das características mais significativas do existencialismo francês. Os seus diários permitem-nos seguir quase dia a dia o desenvolvimento e a estruturação do seu pensamento filosófico, põem-nos a par das suas meditações, das suas reconsiderações, das suas perplexidades. Os seus dramas colocam em cena as situações típicas, reveladoras, em que o pensamento se nos apresenta como «incarnado» em situações exemplares. Marcel despreza não só o espírito do sistema — o eterno inimigo da filosofia, anichado no seio dela — como ainda a própria sistemática expositiva: às «summae», em que a matéria é perfeitamente distribuída por seções, capítulos e parágrafos, prefere ele o diário, por melhor exprimir o caráter imediato e a intimidade de um autêntico pensamento existencial; ou o breve ensaio que, de quando em vez, na medida em que um particular interesse o reclamar, afronte e ilustre um ou outro aspecto do problema, ou melhor, do mistério do ser. Sem dúvida que isto confere à sua obra um especial poder de atração, embora ponha o intérprete perante a não fácil tarefa de ordenar um pensamento exposto de forma completamente assistemática e fragmentária.
É fácil identificar o motivo central da filosofia de Marcel na contraposição dos conceitos de ser e ter, que dá o título à sua obra sem dúvida mais importante. Esta, publicada em 1935, contém a continuação do Journal dos anos de 1928 a 1933, e alguns dos seus ensaios mais significativos. Como todos os existencialistas, também Marcel distingue entre o plano da objetividade e o plano da existência autêntica, articulando e especificando esta distinção pela contraposição de indagação e pesquisa, problema e mistério, ser e ter, traição e fidelidade, rejeição e invocação.
Para Marcel a pergunta «que é o ser?» só tem sentido quando acompanhada da outra pergunta: «que sou eu?». A primeira delas instaura uma indagação (enquête) sobre o ser, como objeto colocado diante de nós; a segunda uma pesquisa (quête) de sei que o sujeito faz no seu próprio íntimo, e em que ele mesmo está empenhado. Na indagação estamos perante um «problema» que tende a despersonalizar o indagador; na pesquisa aflora, pelo contrário, o «mistério» da nossa participação no ser. «O problema é qualquer coisa que nós encontramos, que barra o caminho: está todo diante de mim. Pelo contrário, o mistério é algo em que me encontro empenhado, cuja essência é, portanto, não estar todo diante de mim. É como se neste setor a distinção entre o que está em mim e o que está diante de mim viesse a perder o seu significado».
À distinção metodológica entre problema e mistério corresponde a distinção ontológica entre ter e ser. «No fundo — escreve ele — tudo se reconduz à distinção entre aquilo que se tem e aquilo que se é. Só que é extremamente difícil exprimi-la em forma conceituai». A esfera do ter é a esfera da objetividade, da alienação, do possuído, da ciência e da técnica, em que o homem se degrada a simples objeto. Pelo contrário, a esfera do ser é a esfera da intimidade, do metaproblemático, do inobjetivável, em que o homem se reencontra a si mesmo, recupera o sentido da própria existência.
A objetividade é a «rejeição» das possibilidades que a existência nos oferece, é a negação, a traição do ser. Nela se perde o sentido da existência, que pelo contrário se recupera mediante um processo de «recolhimento», que, através de experiências cada vez mais ricas, revela a presença do ser em mim e a minha participação no ser. Já na sensação, para aquém da distinção problemática entre subjetivo e objetivo, nós sentimos o mistério da nossa participação com a coisa possuída; «sentir não é receber, diz Marcel, mas participar imediatamente», é apreensão mística do real. A sensação mais reveladora é a que eu tenho do meu corpo: sinto que tenho um corpo, mas sinto também que é o meu corpo; não me identifico com o meu corpo, e no entanto não sou sem ele. A corporeidade participa do ter e do ser; é ao mesmo tempo problema e mistério. Na sensação que tenho do meu corpo, sinto a minha participação no ser do universo. «O mundo existe para mim… na medida em que eu estabeleço com ele relações do tipo das que estabeleço com o meu corpo, isto é, na medida em que sou incarnado». A incarnação «é o dado central da metafísica»: ela é constitutiva da minha existência e, em certo sentido, constitutiva do mundo. Mas no mundo eu faço experiência de outros seres semelhantes a mim, e nesta experiência tenho o sentido da participação do «tu» no «mim» em uma comunhão amorosa. E finalmente, do sentimento da presença do tu atinjo a experiência do Tu absoluto, como presença em mim de Deus, como participação minha no Ser eterno em uma mística comunicação.
Este processo de «recolhimento» — que é o oposto da «reflexão», geradora dos problemas que decompõem artificialmente os dados imediatos da experiência — não pode todavia atingir o seu cume divino sem ser amparado e sustentado por três sentimentos fundamentais, correspondentes às virtudes teologais da tradição cristã: o amor, a esperança e a fé. O amor transpõe a barreira entre o eu e o tu, e eleva-nos a Deus numa relação de invocação. A esperança é não-desespero, disponibilidade da alma ao Ser. A fé é o nosso empenho para com Deus, é fidelidade a uma promessa feita a Ele, confiança na sua graça, afirmação da sua presença.
Como se vê, em Marcel a rejeição da razão é total. À razão problematizante contrapõe ele, e antepõe, o sentimento, que para aquém de qualquer distinção entre subjetivo e objetivo, nos faz sentir, experimentar, viver como realmente presentes em nós próprios o mundo, os outros, Deus. A existência autêntica é a experiência do mistério.
A filosofia de Marcel é a filosofia do sensível, e mesmo do sensual. 0 seu misticismo, como todo o misticismo, não é mais do que a transposição do empirismo no plano da metafísica, a tentativa — ou a pretensão — de apreender Deus em uma espécie de contato sensível para além de qualquer mediação da razão, de focá-lo, senti-lo, comunicar com ele, «prová-lo». Também como todo o misticismo, cede perante a dificuldade, ou antes, a impossibilidade, de tornar «pública», isto é, válida para cada um, uma experiência que se apresenta por definição como eminentemente «privada» e inobjetivável. O que há de original em Marcel é uma espécie de plotinismo ao contrário, quer dizer, que procede não de Deus para as criaturas, mas do homem para Deus, através de um processo gradual de recuperação de uma realidade que só a razão objetivante pôde contrapor a mim, quando é certo que se encontra em face de mim em uma relação de íntima participação. Marcel julgou encontrar no cristianismo, ou antes no catolicismo, ao qual se converteu com a idade de quarenta e dois anos, a fé de que carecia para dar uma face e um conteúdo ao «mistério». Todavia, os escritores católicos mais argutos notaram quanto é perigosa e equívoca uma tal posição especulativa, fundada em um tão radical ceticismo da razão e em uma experiência pessoal tão singular, que justificam, no mesmo plano de irracionalidade, e, em última análise, de gratuidade, até experiências existenciais diversas e opostas.
Notámos que para Marcel a comunhão, como participação simpática do eu no tu, é um dos momentos essenciais daquele processo de recolhimento que leva à recuperação da minha existência na sua relação autêntica com o Ser. Mas, segundo ele, essa comunhão não se realiza nos esquemas da vida social. A sociedade está totalmente desdobrada no domínio do ter, é o reino da dispersão e da alienação. Encontramos também em Marcel a severa condenação de alguns aspectos da vida contemporânea, que é comum, como vimos, a quase todos os filósofos existencialistas. Nota ele que a nossa civilização é dominada pela técnica. Esta tende a assegurar ao homem o domínio do mundo, que deste ponto de vista «vai revestindo umas vezes o aspecto de uma simples área de exploração, outras o de um escravo domesticado. Vós não podeis ler — acentua Marcel — uma notícia de jornal por ocasião de qualquer desgraça, sem verificar que esta é considerada como uma vingança da fera que julgávamos ter sido domada». E nisto vê Marcel certa analogia com o idealismo, pois que «o homem, não já como espírito mas como capacidade técnica, aparece em tal caso como a única fonte de ordem ou de organização em um mundo que não o vale e que não o mereceu».
Mas o triunfo da técnica não está isento de perigos. Em primeiro lugar, os técnicos tendem a encerrar-se no seu setor de especialização, a recusar-se — de fato, senão de direito — a encarar o problema da unidade do mundo e da realidade. Em segundo lugar — e isto é imensamente mais grave — também o homem se apresentará como objeto de técnicas possíveis, técnicas distintas, múltiplas, entre as quais não existem senão conexões dificilmente definíveis. Também o homem é assim «abandonado às técnicas», e considerado como um objeto qualquer. Muito longe então de ser uma fonte de claridade, um princípio iluminador, será ele também iluminado só por luz reflexa, usufruirá só de uma luz derivada dos objetos, porque «inevitavelmente as técnicas que pretenderão torná-lo objeto da sua aplicação sem dúvida hão-de ser construídas sobre o modelo das técnicas orientadas para o mundo exterior, serão as mesmas, porém transpostas e como que invertidas». Onde as técnicas prevaleçam, «só resta do sujeito, como inexpugnável- o sentimento imediato do prazer e da dor». 0 homem não aspira a mais do que a gozar a vida, o «having good time» dos anglo-saxões, e portanto, conclui Marcel, «o extraordinário aperfeiçoamento das técnicas é conexo com um empobrecimento máximo da vida interior».
Em outro passo nota Marcel como a técnica tende a reduzir o homem a função, ou antes a um «feixe de funções»: primeiro funções vitais, depois funções sociais (função de consumidor, de produtor, de cidadão, etc). Entre umas e outras há também lugar para as funções psicológicas, mas a autonomia destas será precária, e tentar-se-á sempre reconduzi-las às funções vitais ou às sociais. «Acontece-me muitas vezes interrogar-me com uma espécie de ansiedade — escreve Marcel — sobre o que será a vida ou a realidade interior de qualquer empregado, o do metropolitano, por exemplo: o homem que abre as portas ou que fura os bilhetes. É forçoso reconhecer que nele, e fora dele, tudo concorre para produzir a sua identificação com as suas funções, e não me refiro só às suas funções de empregado, de sócio de um sindicato ou de eleitor, mas até às suas funções vitais». Como em um famoso filme de Charlie Chaplin, nota Prini, o homem está preso na engrenagem das suas técnicas, até ao ponto de perder nelas o sentido do humano. E não só o trabalho, mas inclusivamente o emprego do tempo livre é regulado pelas técnicas: o higienista dirá quantas horas será preciso dedicar ao sono, ao repouso, ao divertimento. «Haverá depois disto necessidade de insistir — conclui Marcel — sobre a impressão de opressiva tristeza que se desprende de um mundo que tem por fundamento a função ? Basta-me evocar aqui a imagem desoladora do funcionário aposentado, e também aquela, que lhe é conexa, dos domingos nas cidades, em que os transeuntes dão a nítida impressão de serem aposentados da vida. Em um mundo assim, a tolerância de que o aposentado se aproveita tem qualquer coisa de irrisório e de sinistro».
Também a propriedade, em que o conceito do ter adquire a sua expressão mais concreta, é para Marcel, como a técnica, uma causa de alienação do homem. «Possuir — diz ele — significa quase inevitavelmente ser possuído». Diferentemente da opinião de origem burguesa, segundo a qual a propriedade não seria mais do que a projeção da personalidade humana sobre as coisas, personalidade que anexa a si própria parte do mundo exterior, Marcel pensa, pelo contrário, que «é o eu a incorporar-se na coisa possuída». Inspirando-se em uma observação de Spengler, Marcel põe em relevo que hoje, com a difusão das sociedades por ações, a propriedade tende a separar-se do trabalho de organização que incumbe aos dirigentes da empresa, pelo que é necessário distinguir entre dinheiro abstrato, e a posse real de, por exemplo, uma terra. Acentua ele que «aquilo que nós possuímos devora-nos», mas isto «é tanto mais exato quanto mais nós estivermos inertes em face de objetos inertes em si mesmos, e tanto mais falso quanto mais vitalmente, mais ativamente nós estivermos ligados a alguma coisa que seja… como a matéria perpetuamente renovada de uma criação pessoal, quer se trate do jardim de quem o cultiva, da herdade daquele que a trata, do piano ou do violino do músico, do laboratório do cientista». Ele reconhece que a posse «em todos estes casos tende, poderia dizer-ser não ao aniquilamento, mas antes a sublimar-se, a transformar-se em ser. Se para Marcel a condenação do capitalismo puro é, pois, irrevogável, ele parece justificar aquelas formas de propriedade em que esta se mostra imediatamente como instrumento da atividade criadora e «vitalizadora» do homem.
Num mundo em que o homem está reduzido a um feixe de funções e é devorado por aquilo que possui, a sociedade só pode ser o reino da alienação e do «ter». Num mundo funcionalizado, salienta Marcel, «o indivíduo tende a subordinar-se a fins sociais que o superam infinitamente», mas isto é só ilusão. Para ele, é um sofisma a pretensão dos sociólogos de que no todo há alguma coisa a mais do que na soma das partes: a verdade é que há qualquer outra coisa, «mas segundo toda a aparência resolve-se em um débito, exprime-se com o sinal menos». Ele não vê «porque é que uma sociedade de inconscientes, cujo ideal individual consiste em pular nos dancings, e excitar-se com filmes sentimentais ou policiais, não seria também em si mesma uma sociedade inconsciente».
A posição de Marcel constitui um repúdio da redução pura e simples do homem ao horizonte da vida social; não é a sociedade que transcende o indivíduo, mas o indivíduo que transcende a sociedade. Como se vê, estamos aqui nos antípodas da concepção hegeliana: enquanto para Hegel a eticidade se realizava concretamente nos institutos da vida social, para Marcel o valor absoluto reside na pessoa humana, cuja riqueza criadora não se esgota no âmbito da sociedade, e que portanto não pode estar inteiramente subordinada a esta.
É evidente que não é em uma tal sociedade que pode realizar-se aquela comunhão simpática do eu e do tu, constitutiva de uma existência autêntica. A comunhão é para Marcel um fato «privado», o encontro de dois indivíduos que se dá fora das relações sociais institucionalizadas, é a presença do outro «que se revela imediatamente e de modo irrecusável em um olhar, um sorriso, uma inflexão, um aperto de mão». A prova de que a comunhão nada tem que ver com a sociedade constituída, está no fato de aquela poder até prolongar-se para além da vida, e constituir-se em relação aos mortos, pois «depende de nós, de certo modo, que os mortos vivam ou não na nossa recordação». Há para Marcel uma comunidade, diferente da sociedade, na qual os seres, sem se aglomerarem mecanicamente, constituem, pelo contrário, um todo que os transcende, e esta comunidade é a igreja, já que a religião «é exatamente o contrário de uma técnica». Uma tal comunidade é possível só porque alguns indivíduos «conseguiram preservar em si próprios aquela espécie de paládio a que toda a técnica como tal se opõe, e que só podemos designar por alma». Não explica Marcel se a igreja de que fala é uma igreja puramente ideal, vivendo «in interiore homine», ou a igreja confessional histórica, com estruturas jurídicas definidas, com os seus dogmas, os seus ritos, a sua hierarquia. Mas não sofre dúvida, no entanto, que ele contrapõe a uma civitas terrena, reino mundano do ter, uma civitas Dei, reino do Ser e do mistério. Também aqui, portanto, uma concepção rigorosamente dualística, que não admite acordo ou compromissos. De um ao outro estádio não há desenvolvimento gradual, passa-se sim mediante um salto qualitativo. Neste mundo, na sociedade histórica, não há salvação para o homem contra a «exorbitância da ideia de função», para que tende a civilização atual. Só dentro de si, na intimidade da consciência, o homem pode conservar a sua liberdade espiritual, e só fora das relações e das instituições sociais, em um encontro direto entre indivíduos, ele pode estabelecer com os seus semelhantes relações de comunhão autêntica.
Nalgumas obras posteriores — Homo viator, de 1944, e Le déclin de la Sagesse, de 1953, sem se afastar da linha já traçada, Marcel prossegue o combate contra a hipertrofia das técnicas, reivindicando a proeminência dos valores mais refinadamente humanos, que emergem da capacidade criadora inesgotável do espírito do homem. E é difícil negar que se trata de um combate justo.