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Giuseppe Lumia: o existencialismo teológico - Berdjaev

terça-feira 5 de outubro de 2021, por Cardoso de Castro

  

Se para Chestov o pecado original é a ciência, para Berdjaev   é a objetivação. Berdjaev faz a sua crítica de Dostoievski   à «mentalidade euclídea» que pretende constranger a infinita criatividade da vida nos esquemas de uma lógica formal e abstrata. Mas, e diferentemente de Chestov, Berdjaev não condena o saber em geral, mas somente o saber intelectualístico que pretende reduzir o homem a mera atividade raciocinante, esquecendo quanto os fatores emotivo e volitivo influem profundamente na sua existência. Como já para Bergson   e para Chestov, a razão move-se na direção oposta à da vida, e só apreende o que nela existe de objetivo, de exterior e de superficial, deixando escapar o que nela há, pelo contrário, de mais íntimo e de mais rico. O termo «vida», empregado por Dilthey  , é substituído por Berdjaev pelo de «existência», explicando que enquanto a vida é uma categoria biológica, a existência é uma categoria ontológica. Para Berdjaev a existência emerge da objetividade e constitui-se como pessoa. A pessoa é atividade, unidade, subjetividade. Em nome desta sua concepção personalística, Berdjaev opõe-se tanto ao idealismo transcendental como ao positivismo  . Ao primeiro censura o ter submergido a intimidade do sujeito na «consciência em geral», ao segundo o haver reduzido o sujeito a mera passividade em face das «coisas» e dos «fatos». O saber autêntico é, pelo contrário, para Berdjaev participação, comunicação do existente com o mistério do ser, atividade que se exerce no interior daquele ser no qual o filósofo sente que existe.

Ao problema das relações entre a pessoa e a sociedade Berdjaev dedica a terceira e a quinta das suas Cinq méditations sur l’existence, publicadas em 1936. A objetivação da vida social é para Berdjaev a «socialização», termo com o qual não procura aludir a qualquer sistema econômico, mas somente denunciar os perigos .que se originam para o indivíduo na moderna civilização de massas. Berdjaev, na sua juventude, aderiu ao marxismo, no qual viu sobretudo um apelo ao concreto contra as pretensões do saber abstrato. A sua atitude para com o marxismo tornou-se sempre cada vez mais crítica, até ao afastamento total, embora conservando assaz viva a exigência de uma verdadeira justiça social que liberte o homem da escravidão da necessidade. A crítica que faz à sociedade contemporânea é válida tanto para as sociedades organizadas em formas coletivistas, como para as burguesas-capitalistas. Reprova à civilização contemporânea o esmagar o homem sob o peso de ídolos, como são a sociedade, a nação, o estado, que não são mais do que produtos de um mundo objetivado e decadente. Tais ídolos tendem a sujeitar o homem, a sufocar a sua individualidade, a roubar-lhe a iniciativa em nome de conceitos abstratos, como sejam a ordem, a autoridade, a lei. O nosso mundo é dominado pela técnica, mas esta não é senão «a extrema forma da objetivação humana», volvida para a multiplicação dos bens materiais e ignorante das necessidades do espírito. Decerto a técnica torna mais fácil a comunicação entre os homens, mas poderá dizer-se que ela favorece, na verdade, a «comunhão»? E não é a opinião pública, exposta à sugestão dos mais aperfeiçoados instrumentos de publicidade e de propaganda, o reino do genérico e do nivelado? E não se tende, na própria arte, a diluir o ímpeto criador nas convenções e nos gostos de um dado ambiente cultural? Na multidão o eu nem sequer é capaz de aperceber-se da própria solidão, porque cessa totalmente de ser um eu.

Também o direito e o estado se colocam para Berdjaev sobre o plano da objetividade, ou seja, de uma existência inautêntica. Os institutos do direito, mesmo aqueles que parecem maiormente ser criados para proteção do indivíduo e do seu mundo afetivo, na realidade sufocam-no e tornam-no estéril o ímpeto erótico, institucionalizado no matrimônio, perde nele o que existe de vivo e de espontâneo e cai na mera atividade biológica; a vocação paterna torna-se no instituto da família nada mais do que uma série de direitos e obrigações. Se, no entanto, o direito é ainda uma espécie de ética inferior, o estado, pelo contrário, é a expressão da violência». «O estado pertence ao mundo pecador». «O princípio do estado é, acima de tudo, a força, que ele prefere ao direito, à justiça, ao bem... O estado é a esfera da cotidianidade social, na qual se introduz uma demoníaca vontade de poder». Mesmo quando aparece como defensor dos direitos, o estado degrada a personalidade humana, tratando-a como uma entidade abstrata e não como uma unidade vivente, escravizando-a, frequentemente, sob o pretexto da ordem e da autoridade. Nem mesmo a vida religiosa se subtrai a este processo de objetivação. A Igreja, como instituição social, embora necessária para garantir a unidade espiritual e a continuidade das gerações cristãs, arrefece o sincero ímpeto religioso, esgotando-o em um convencionalismo ritual que frequentemente não é nada mais do que imitação e hábito.

Mas como Berdjaev não condena o saber em geral, mas apenas o saber intelectualístico objetivante, fechado às razões do coração, que tão elevado lugar têm por vezes na concreta realidade do homem integral, a condenação da sociedade que ele formula em uma análise tão sutil como meditada, não exclui que a comunicação entre os homens possa elevar-se a autêntica comunhão. No entanto, essa comunhão só pode realizar-se em um plano puramente existencial, fora das relações e das instituições sociais. «A comunhão — escreve ele — não é possível senão entre o meu eu e um tu, e não com a sociedade-objeto... Ela só é realizável na ordem da existência e com um seí existente... porque em nenhum dos planos da comunicação este mundo sabe que coisa seja a união de uma alma com outra alma». Nas obras posteriores — na verdade, mais de inspiração política do que filosófica — Berdjaev atenua muito esta sua rígida tomada de posição, admitindo que uma verdadeira comunhão possa realizar-se no plano da sociedade pelo concurso de um socialismo autêntico com um cristianismo não menos autêntico. Observa ele como a democracia oscila continuamente entre um liberalismo formal, insensível às concretas necessidades do homem, e um coletivismo nivelador que pretende reduzir todo o homem ao mero fato econômico. É necessário abandonar a alternativa: ou a liberdade sem pão, ou o pão sem a liberdade, procurando assegurar a todos os homens o pão e a liberdade. Berdjaev sublinha que a justiça social, antes mesmo de ser uma reivindicação econômica, é um dever moral, e escreve incisivamente que «se o pão é para cada um uma preocupação material, é para os outros uma preocupação espiritual». Acusa a Igreja de se haver aliado aos ideais e aos interesses da burguesia, mas imputa ao marxismo o haver reduzido o anseio de uma superior justiça social a um fato meramente econômico. O comunismo é por si mesmo, segundo Berdjaev, uma exprobação para a Igreja, «a prova evidente de um. dever não cumprido, de uma missão do cristianismo não realizada». O ideal de Berdjaev é o de um socialismo personalístico e cristão, que realize a justiça social na liberdade e no respeito da pessoa humana, transformando a mecânica exterior «comunicação» em uma íntima e espiritual «comunidade».

Para que uma tal tarefa seja realizável, não bastam apenas as armas da racionalidade, mas importa fazer apelo à fé. Somente através da fé o homem pode conquistar a verdadeira liberdade, que não é a liberdade da verdade, a qual conduz à revolta do super-homem e ao crime de Raskolnikov, mas a liberdade na verdade, no bem, na justiça. Em uma visão escatológica da história, Berdjaev indica, assim, à humanidade a meta última da instauração na terra, por virtude da fé e do amor, do evangélico «reino de Deus».

Desta sumária exposição resulta como a posição de Berdjaev se coloca em um plano bem diverso dos de Barth e de Chestov. O irracionalismo destes dois é absoluto, e conclui em ambos por uma negação sem remédio dos valores da civilização que a humanidade tem vindo a constituir e a realizar na sua tormentosa história, e além disso da possibilidade que a humanidade mesma tenha de constituir tais valores. O irracionalismo de Bierdjaev tem outra natureza e um bem diverso significado. Ele é antes um anti-intelectualismo, e tem por fim, não já negar em bloco a validade dos valores humanos, mas formá-los sobre um plano mais sólido, e, em definitivo, mais alto do que aquele que comporta uma concepção da realidade meramente intelectualística. Este é um plano de concretização e de verdade histórica que tenha em conta que o homem não se consome na mera atividade raciocinante, que a vontade e o sentimento concorrem potentemente para desenhar-se a personalidade concreta. Em Berdjaev não existe a total desvalorização de todos os valores humanos, mas somente daqueles que se referem a uma concepção unilateral do homem como res cogitans, e que deixam escapar, por consequência, toda a riqueza de uma vida espiritual que não pode reduzir-se à pura «mentalidade euclídea». Assim, as críticas que ele faz à organização social, não abrangem qualquer sociedade possível, mas procuram ferir unicamente alguns aspectos mais claros e mais preocupantes da vida contemporânea, que ele, com justeza, vê dominada por uma tendência de despersonalização do homem, pela sua redução a simples elemento numérico da massa anónima e opaca. Não é a sociedade expressão de um mundo decadente e corrupto, mas esta sociedade em que temos a ventura de viver, e é contra ela que Berdjaev pronuncia a sua vigorosa e apaixonada acusação, denunciando os perigos que dela nascem para uma humanidade que corre o risco de perder o sentido mais profundo da sua missão. E a fé, à qual Berdjaev nos exorta, não é a fé de Barth e de Chestov, fé absurda em um Deus absurdo para quem é nula e vã a obra do homem e os valores da sua civilização; é sim o instrumento catalizador do imenso esforço ao qual o homem de hoje é chamado se quiser encontrar, na intimidade de si mesmo e na comunhão com os outros, o significado profundo da sua presença no mundo. Entre os pensadores inspirados pelo cristianismo, Berdjaev é, sem dúvida, o que se encontra mais próximo do catolicismo.