Filosofia – Pensadores e Obras

visão de Deus

É possível ver a Deus? A inteligência humana é, pois, aberta à totalidade do ser. Segue-se daí que possa ter um conhecimento direto e :mediato do ser divino? Este, certamente, estando perfeitamente em ato, é absolutamente inteligível. Impõe-se, por outro lado que haja uma certa proporção entre a potência e seu objeto. E aqui o objeto é evidentemente infinito, enquanto a potência, que pertence à ordem do ser criado, é evidentemente limitada (cf. Ia Pa, q. 12, a. 1, obj. 4)

“sendo o conhecido a perfeição do cognoscente, é necessário que haja entre esses dois termos uma certa proporção; ora, não há nenhuma proporção entre o intelecto criado e Deus, estando ambos separados por uma infinita distância; é portanto impossível que o intelecto criado tenha a visão da essência divina”.

Certamente não há nenhuma objeção de princípio a que uma inteligência limitada obtenha um certo conhecimento da essência do ser divino a partir de seus efeitos criados. Mas o que parece ir além das possibilidades de uma tal inteligência, é ter desta essência uma visão direta e imediata, facial, como se diz. Em sentido contrário está a afirmação da cristã que atesta ser uma tal visão o termo mesmo da vida humana.

Assim está colocado o problema da possibilidade da visão da essência divina, problema eminentemente teológico, mas que igualmente interessa ao filósofo no que concerne à determinação dos limites naturais da inteligência humana. Pode a razão estabelecer esta possibilidade afirmada pela ? Tal é a questão que se nos coloca.

Doutrina de Tomás de Aquino. O Doutor angélico expôs seu pensamento em diversos textos célebres nos quais, para justificar a possibilidade da visão, funda-se na existência em nós de um desejo de ver a Deus em sua essência (cf. particularmente: Cont. Gent. IV, c. 25; Comp. Theol., c. 104-105; Ia. IIae q. 3, a. 8; S. Th. Ia Pa, q. 12, a. 1) . Eis o esquema deste famoso argumento:

– há no homem um desejo natural de conhecer a causa quando descobre um certo efeito, e tendo a inteligência sido feita para ir até à essência das coisas, este desejo dirige-se até ao conhecimento da essência da causa;

– se, portanto, frente aos efeitos criados, captássemos de Deus apenas sua existência, restaria vão o desejo natural que temos de conhecê-Lo como causa. Ora, isto não pode ser admitido: é preciso, pois, que nossa inteligência seja radicalmente capaz da visão de Deus. Eis o argumento na formulação mais concisa da Prima Pars (q. 12, a. 1)

“Inest enim homini naturale desiderium cognoscendi causam, cum intuetur effecutm; et ex hoc admiratio in hominibus consurgit. Si igitur intellectus rationalis creaturae pertingere non possit ad primam causam rerum, remanebit inane desiderium naturae”.

Superficialmente considerados, textos como estes levariam a crer que para Tomás de Aquino a visão da essência de Deus não somente é possível para um intelecto criado, mas lhe é conatural, respondendo a uma inclinação positiva de nosso ser. Assim teríamos, segundo nossas próprias possibilidades, o poder de ver a Deus. Uma tal exegese esbate-se contra dificuldades bem graves. Além da dificuldade precedente da infinita distância entre a potência e o objeto, encontra as afirmações categóricas da : nossa elevação ao sobrenatural e à visão beatífica é um efeito não da natureza mas da graça. Só o intelecto divino é proporcional, de si, ao próprio ser subsistente. Assim, poderá Tomás de Aquino concluir em termos aparentemente opostos aos precedentes: (Ia Pa, q. 12, a. 4)

“Relinquitur ergo quod congnoscere ipsum esse divinum sit connaturale soli intelectui divino, et quod sit supra facultatem naturalem cujuslibet intellecti creati . . . Non igitur potest intellectus creatus Deum per essentiam videre, nisi in quantum Deus per suam gratiam se intellectui creato conjungit, ut intelligibile ab ipso”.

Impõe-se, evidentemente, uma melhor colocação do sentido exato do argumento do desejo natural.

A significação do desejo natural de ver a Deus.

Sobre esta questão cf. A. Gardeil, La structure de l’âme et l’expérience mystique, t. I, p. 268-348.

Para um certo número de teólogos, à frente dos quais é habitualmente colocado Scoto, a visão de Deus seria, de algum modo, positivamente exigida pela nossa natureza. Certamente, e como não o reconhecer, visto que os meios para atingir esse fim nos faltam e a graça é necessária. Mas poder-se-ia falar de uma inclinação natural inata, embora ineficaz, ao sobrenatural. Uma tal concepção é certamente estranha a Tomás de Aquino que, falando do desejo natural, nunca entendeu fosse ele uma inclinação de natureza ou um apetite inato. Um tal apetite nada mais é que a expressão das virtualidades efetivas de uma natureza: dizer que se tem um apetite inato da visão da Deus, é pretender que a visão de Deus nos seja conatural. E, por outro lado, relegar a graça à ordem dos meios, enquanto a natureza conservaria a ordem dos fins, é cair na incoerência.

Contrariamente ao que acaba de ser sustentado, é preciso reconhecer que o desejo em questão é um desejo elícito, isto é, não uma tendência inconsciente seguindo-se imediatamente à natureza, mas uma inclinação psicologicamente discernível que se forma no espírito depois de uma apreensão determinada. Assim, no caso precedente, tendo reconhecido que Deus é a causa de todos os seres dos quais tenha percepção, sinto o desejo de ver esta causa, isto é, Deus, e não somente como causa, mas em sua natureza mesma.

É de direito perguntar como pode um tal desejo, que aparece como um simples fato de consciência, merecer ainda o qualificativo de natural? Muitas explicações foram dadas. Vamos logo à que nos parece melhor fundada (cf. Structure, p. 291, ss).

Consideremos o modo segundo o qual pode-se relacionar nosso desejo com o bem soberano ou a felicidade. Antes de tudo há uma coisa que não podemos não querer: ser feliz. A felicidade, ou o bem universalmente considerado, se nos impõe de modo absoluto. Esta inclinação incoercível nada mais é que o apetite natural inato de nossa vontade ao bem ou à obtenção de nosso fim último. É possível desejar ver a Deus segundo uma tal inclinação? Não, pois se a visão de Deus é efetivamente nossa felicidade, não temos dela uma convicção necessitante. Certos homens não parecem mesmo totalmente indiferentes a este fim? Pode-se, pois, tratar somente de um desejo condicional; um tal fim é desejável na medida em que me parece ligado ao bem universal, objeto de que necessita minha vontade. Para quem raciocina corretamente esta conclusão se impõe ou sobrevém como que naturalmente.

Assim, a visão de Deus deve ser assemelhada à classe de bens distinguidos por Tomás de Aquino, os quais são, para minhas faculdades, bens particulares, naturalmente queridos segundo uma necessidade não absoluta, mas de conveniência ou condicional (cf. Ia Pa, q. 10, a. 1). E o desejo que corresponde a esta visão será natural, não como uma inclinação inata mas enquanto surge naturalmente no curso do desenvolvimento de nossa vida racional, se esta for normal. Ora, um tal desejo, pensa Tomás de Aquino, não pode ser vão ou desprovido de fundamento. Portanto, a possibilidade da visão beatífica se nos impõe, não segundo uma percepção evidente, mas como uma verdadeira conveniência de natureza.

A esta altura, atingimos com Tomás de Aquino o que o teólogo chama de potência obediencial ao sobrenatural. Se nossa natureza pode ser elevada à visão de Deus, isto significa que tem potência para tal. Mas sabemos que neste caso não está ordenada ativamente ou de modo eficaz. Só Deus, por uma intervenção gratuita, pode tornar atual esta potência: esta potência é, pois, somente a disposição passiva, ou de pura obediência, na qual toda criatura se encontra, com relação a Deus, para tudo o que não implica contradição. Aqui tocamos evidentemente no que há de mais elevado na vida de nossa inteligência, mas como se trata da graça, convém aqui dar lugar ao teólogo.

Conclusão: faculdade do ser ou faculdade do divino?

A solução agora dada ao problema da possibilidade, para a inteligência criada, de ver a Deus, coloca-nos em estado de poder responder a uma questão que foi posta em um livro que na época teve repercussão: é a inteligência humana faculdade do ser ou do divino? (Rousselot: L’intellectualisme de Saint Thomas). O próprio Pe. Rousselot respondia: “a inteligência é a faculdade do ser porque é a faculdade do divino”.

Esta fórmula, por sua elegância sedutora, pode prestar-se a equívocos e, interpretada com seu autor, conduz a confusões. A inteligência humana, como toda a faculdade, define-se por seu objeto próprio e se a considerarmos como participação analógica do intelecto em si, define-se por seu objeto adequado. Assim, podemos dizer que é a faculdade do ser da quididade material ou, tomada adequadamente, a faculdade do ser considerado em toda a sua amplitude. Não sendo, porém, a essência divina compreendida determinadamente nestes objetos, não se pode dizer que seja formalmente a faculdade do divino. Deus é por ela apreendido somente indiretamente, na analogia das criaturas e a título de causa do ser. Uma só inteligência, a do mesmo Deus, se proporciona a este objeto supremo. Precisões estas que podemos figurar neste quadro:

intellectus divinus… obj. proprium: ipsum esse subsistens.

Intellectus humanus… obj. proprium: quidditas rei materialis.

Intellectus humanus… obj. adequatum: ens commune.

A inteligência permanece assim essencialmente a faculdade do ser e só se justifica com relação a esse objeto. Toda tentativa de fundamentar o valor objetivo do conhecimento sobre um dinamismo que pretenda ter seu ponto de apoio diretamente no próprio Deus, deve ser considerada como falsa. [Gardeil]