Filosofia – Pensadores e Obras

realismo metafísico

A filosofia de Parmênides de Eleia representa uma façanha intelectual de extraordinária magnitude, não somente por aquilo que no seu tempo significou de esforço genial para dominar o problema metafísico, mas sobretudo pela profundidade incalculável da penetração que levou este filósofo a formular ideias, pensamentos, direções, que Imprimiram a toda a filosofia europeia uma marcha que desde então continuou ininterrupta com a mesma orientação.

Das linhas gerais da filosofia de Parmênides podemos tirar as duas bases fundamentais em que se assenta todo o sistema. Essas duas bases fundamentais são: primeiramente, a identificação do ser com o pensar; em segundo lugar, a aplicação rigorosa das condições do pensar à determinação do ser.

Essas duas bases fundamentais do sistema eleático poderiam induzir, e muitas vezes induziram, ao erro de considerar o eleatismo como a primeira forma conhecida de idealismo. Alguns historiadores da filosofia pensaram encontrar na filosofia de Parmênides a forma primária do idealismo filosófico. Visto que — como se tem dito — Parmênides identifica o pensamento e o ser, visto que estabelece que o pensamento e as condições do pensamento são a única diretriz que nos pode guiar através de nossa procura empós do ser; esta identificação constitui o núcleo mesmo da filosofia que os modernos chamam Idealismo.

Todavia, esta interpretação está radicalmente errada. Nem todos os historiadores da filosofia a compartilham, nem de longe. Mas alguns, levados por um afã que poderíamos qualificar de intimamente sistemático, acreditaram podê-lo interpretar assim. Refiro-me principalmente com estas palavras à tendência recente dos filósofos que se agrupam em torno do professor Hermann Cohen, em Marburgo na Alemanha, os renovadores do kantismo na Alemanha. Esses filósofos, preocupados em sistematizar intimamente, propendem a ver a história da filosofia de uma maneira falsa, porque, como colocam no centro do pensamento filosófico universal o sistema kantiano, resulta que tudo o mais, que aparece no panorama histórico da filosofia, desde o seu nascimento na Grécia até nossos dias, fica para eles subdividido geralmente em dois planos: os que se situam no mesmo plano de Kant e os que se situam fora do plano kantiano; os que de uma ou outra maneira podem eles considerar como precursores, vislumbradores, da filosofia kantiana, que são os que constituem a corrente central, segundo eles, e os que, por uma ou outra causa, se afastam da filosofia tal como Kant a entende, e traçam outros sulcos distintos do idealismo filosófico. Assim, os historiadores da escola de Marburgo viram em Parmênides um idealista. Sobretudo em Platão, sucessor de Parmênides, acreditaram vislumbrar um verdadeiro precursor de Kant. Interpretaram o eleatismo e o platonismo, Parmênides e Platão, como idealistas avant la lettre. Pelo contrário, filósofos como Aristóteles, cuja influência no pensamento humano não é possível de modo algum negar, nem sequer diminuir o mínimo que seja, aparecem para eles como fatais desvios de uma corrente que, se tivesse seguido o curso iniciado por Parmênides ou Platão, teria chegado muito antes ao pleno esplendor que recebe com Kant.

Isto é uma maneira parcialíssima de focalizar a história da filosofia. Parcialíssima e, além disso, radicalmente falsa. A filosofia de Parmênides não pode, de modo algum, ser entendida como um idealismo antes do idealismo. É certo que os dois esteios fundamentais do pensamento parmenídico (a identidade entre o ser e o pensar e a submissão do ser às diretrizes do pensar) oferecem evidentemente o flanco para que, jogando com as palavras, injetando em uma mente do século VI antes de Cristo concepções que nem de longe podem estar nela, se tirem conclusões que abonam uma interpretação idealista de Parmênides. Mas Isto é um abuso. Na realidade, Parmênides não é um idealista. Eu me atreveria, pelo contrário, a assentar com um pouco de paradoxo, um pouco paradoxalmente, com um matiz de paradoxo, a afirmação contrária, a saber: que Parmênides é o filosofo grego que estabelece as bases do realismo filosófico. Porque é claro que existe no pensamento de Parmênides esta identidade entre o ser e o pensar; mas a interpretação dessa identidade dependerá do lugar em que nós coloquemos o acento. Podemos colocar o acento no “pensar” e dizer que o ser se reduz a pensar, e então é claro que teremos algo parecido com o idealismo; mas coloquemo-lo ao inverso: coloquemos o acento no “ser”, e concluímos que o ser é quem recebe as determinações do pensar, que o pensar não é mais que aquele que injeta no ser suas próprias determinações. Então, colocando o acento sobre o ser, aparece esta filosofia com um aspecto completamente diferente.

Na realidade, na mente de Parmênides não se dilui, nem por um só instante, o ponto de partida efetivo do seu pensamento; e o ponto de partida efetivo é a análise da coisa. Parmênides parte na sua metafísica da realidade das coisas; de que as coisas são reais; de que essas coisas que vemos, tocamos, sentimos, temos diante de nós, possuem a plenitude do ser. Porém, pergunta imediatamente a si mesmo: em que consiste esse “ser” dessas coisas? Como podemos “pensar” fosse ser sem contradições? Como podemos chegar a ajustar, a identificar o nosso pensamento com esse ser? Pois não podemos fazê-lo mais que analisando esse ser, analisando as coisas e limpando-as de tudo aquilo que encontremos nelas de contrário às condições do pensar.

Uma das condições fundamentais de todo pensamento é que o pensamento concorde consigo mesmo, que o pensamento seja coerente, ou, como dizemos vulgarmente e com uma expressão imprópria mas corrente, que o pensamento seja lógico. Quer dizer, que o pensamento não afirme agora uma coisa e um momento depois o contrário, porque não pode ser verdade que uma coisa seja certa e que imediatamente depois o contrário dessa coisa seja também certo.

Pois se uma das condições do pensar é essa e temos aí o ser, então é impossível que o ser que temos aí seja realmente contraditório e cheio de incoerências. Tiremos do ser que temos aí suas incoerências de vulto, aparentes, visíveis, essas incoerências notórias; digamos que essas incoerências não pertencem ao ser porque não podem pertencer a ele, já que são impensáveis, já que não concordam entro si; e o que ficar depois de ter feito essa limpeza do ser, isto será o que verdadeiramente é. E dentre essas incoerências, que temos que tirar de diante de nós, está a multiplicidade de seres, está a mutabilidade daquilo que temos diante. Vemos que muda; mas como mudar é ilógico, é irracional, digamos que acreditamos que muda: porém, que na realidade não muda. A mobilidade do ser é outra dessas incoerências.

Temos, pois, que para Parmênides a realidade continua a ser fundamentalmente uma coisa, uma coisa que não admite outra ao seu lado, porque seria contraditória; que não admite o movimento, porque seria contraditório; que não admite a mudança, porque seria contraditória. Todavia

o primeiramente existente para Parmênides é res, coisa; e por isso, eu me atreveria a dizer que Parmênides é, na realidade, o primeiro fundador do realismo metafísico, embora na expressão isto resulte paradoxal. [Morente]