Estes Novos ensaios são, como já dissemos, uma resposta ao Ensaio sobre o entendimento humano de Locke. Foram escritos em francês e o texto revisto por Hugony e Barbeyrac. Desde o começo Leibniz patenteia a sua intenção e a sua inspiração.
“Concebi um novo sistema — assim faz falar o personagem a quem empresta a sua palavra, pois se trata realmente do seu sistema — o qual parece aliar Platão com Demócrito, Aristóteles com Descartes, os escolásticos com os modernos, a teologia e a moral com a razão. Dir-se-ia que ele toma o lado melhor de cada um, indo depois mais longe que qualquer deles. Encontro aí uma explicação inteligível da união da alma e do corpo… Encontro os verdadeiros princípios das coisas nas unidades das substâncias que este sistema introduz e na harmonia dessas unidades, preestabelecidas peia substância primitiva. Encontro uma simplicidade e uma unidade surpreendentes, podendo-se dizer que é em toda parte e sempre a mesma coisa, variando apenas os graus de perfeição… Assim se denunciavam os seus propósitos de ecletismo e os princípios que deviam presidir à sua construção.
Quanto ao princípio da construção de Locke, princípio aliás em que este devia introduzir gradações sutis, era o da “tabula rasa” e a rejeição de qualquer ideia inata na alma. Tudo provinha dos sentidos para se ordenar em seguida na alma; desaparecia todo inteligível, pelo menos todo inteligível prévio, e chegava-se desta forma a um empirismo puro. Leibniz não repelia de todo uma tal concepção. Admitia que as ideias chegassem à alma pelos sentidos, mas colocava também nesta alma ideias primeiras, ainda obscuras ou obscurecidas, e que germinavam ou se desenvolviam à proporção que crescia o próprio ser — princípios que não dependiam, quanto à origem, das circunstâncias a que deviam o seu desenvolvimento. Assim eram reinstituídos o inteligível e a ideia pura, que não eram talvez claramente visíveis no composto humano mas jaziam nele como que sepultados, à espera de frutificar, e constituíam-lhe o fundo essencial. Isto era expresso pela célebre fórmula, emenda capital da de Locke: Nada existe no intelecto que já não tenha estado nos sentidos, exceto o próprio intelecto (nihil est in intellectu quod nom fuerit in sensu, excipe nisi ipse intellectus). A que se ajuntavam as seguintes especificações do próprio Leibniz: “Ora, a alma encerra o ser, a substância, o uno, o mesmo, a causa, a percepção, o raciocínio e uma quantidade de outras noções que os sentidos não poderiam fornecer…” e ainda a observação, que o próprio Locke era forçado a admitir quando levado a procurar “uma boa parte das ideias na reflexão do espírito sobre a sua própria natureza”.
Vemos, pois, que Leibniz não se jactava em vão de ter ressuscitado Platão e ouvimos aqui o eco de uma voz bem longínqua. A teoria da “reminiscência” outra coisa não era — sob uma forma menos precisa e mais poética — senão a das ideias inatas. A alma platônica, caída no mundo sensível, guardava a obscura lembrança do mundo inteligível, das ideias que lá pudera contemplar e dessas realidades primeiras e soberanas que eram o Belo e o Bem; sua única aspiração era para lá voltar após o circuito terrestre. Sabemos igualmente que a realidade una ou as realidades múltiplas de Leibniz são de ordem inteligível e que embora sejam precisadas, tenham denominações mais abstratas que as de Platão e pareçam de ordem especulativa — substância, uno, causa, raciocínio — continuam a ser de natureza ou de origem inteligível, e que as môna-des e a Mônade suprema, Deus, são realidades — as únicas realidades — duma ordem puramente ideal.
Estuda Leibniz deste ponto de vista as noções inatas, as ideias, as palavras, o conhecimento. A matéria é uma consequência, uma produção, uma criação; é segunda e não poderia ser um princípio; nada pode provir dela apenas; além disso, não pensa: quem pensa é a substância pensante. O pensamento pode, sem dúvida, passar pela matéria; na nossa condição humana, é-lhe anterior e está incluído nela. São essas ideias inatas depositadas na matéria antes de qualquer experiência, essas percepções confusas que pouco a pouco se aclaram, que constituem o pensamento e o desenvolvem.
Isso ocorre, todavia, sempre de acordo com o nosso estado de composto: não somos anjos ou substâncias separadas; o nosso corpo não pensa, mas nós pensamos com ele. Cada coisa na natureza, “com exceção dos milagres”, possui sua virtude própria e age de acordo com ela: “Deus não dá, arbitrária e indiferentemente, tais e tais qualidades às substâncias; jamais lhes dará senão aquelas que lhes forem naturais, isto é, que puderem ser derivadas da natureza delas como modificações explicáveis.”
Podemos muito bem chegar ao pensamento de maneira gradual, mas em sua essência ele é primordial e serve de fundamento à evidência e à certeza. A própria intuição é insuficiente para isso, pois somente em Deus existem verdades intuitivas: faz-se necessária a razão. “Por mais experiências particulares que tenhamos de uma verdade universal, a simples indução não nos poderia dar uma certeza definitiva dessa verdade; para isso, é preciso a razão.” A experiência cotidiana que temos do nascer e do ocaso do sol não nos revela o segredo desses fenômenos: sucessão não é causalidade. “E no fundo se pode dizer que a ideia do absoluto é anterior, na natureza das coisas, à dos limites que traçamos.” Do mesmo modo Descartes e Malebranche queriam que, em certo sentido e nessa própria “natureza das coisas”, o geral precedesse o particular e o universal, o individual.
Estas indicações bastam para precisar o sentido, ao mesmo tempo, da doutrina e do método. O que Leibniz quer estabelecer contra Locke é a insuficiência radical da experiência e a necessidade de um princípio pensante para explicar o pensamento. Sabemos que ele encontra este princípio não no sensível, que de tal é incapaz, mas no inteligível, apresentado aliás como única realidade. Todavia, o sensível permanece estreitamente ligado aos exercícios da inteligência humana, e se Leibniz rejeita em metafísica a ideia de uma “substância” extensa, para ele puramente fenomenal, torna contudo a introduzi-la no seu estudo do composto alma e corpo, estudo a que ele procede dentro de um espírito todo cartesiano. Ao falar da realidade do conhecimento, dirá o seguinte: “O fundamento da verdade das coisas contingentes e singulares está na feliz ocorrência de se encadearem os fenômenos dos sentidos justamente como o exigem as verdades inteligíveis.” Esta ideia de encadeamento é, com efeito, a chave e a característica do conhecimento humano. Sabemos o obstáculo com que ela se choca em todo sistema idealista, onde precisamente a transcendência radical da ideia torna impossível qualquer acordo entre a realidade ideal e a realidade sensível. E já vimos como Leibniz julgou afastar a dificuldade mediante essa outra hipótese, que nos apresenta como uma certeza, da harmonia preestabelecida. [Truc]