Já constatamos que a filosofia nasceu como libertação do logos em relação ao “mito” e à fantasia. Os sofistas fizeram um uso funcional (alguém disse “iluminista”, ou seja, “racionalista”) do mito. Sócrates condenou até mesmo esse tipo de uso do mito, exigindo fosse ele tratado com procedimento rigorosamente dialético. Platão, inicialmente, participou com Sócrates dessa posição. Entretanto, já a partir do Górgias, passou a atribuir ao mito um novo valor, que passaria a usar de forma constante, conferindo-lhe grande importância.
Como explicar esse fato? Por que a filosofia voltava a assumir o mito? Representa isso uma involução, uma abdicação parcial de suas próprias prerrogativas por parte da filosofia, uma renúncia à coerência ou, talvez, um sintoma de desconfiança em si mesma? Em breve, qual o significado do mito em Platão?
Extremamente diversificadas foram as respostas oferecidas a esse problema. Soluções diametralmente opostas derivaram de Hegel e da escola de Heidegger.
Hegel (e seus seguidores) viu no mito platônico um obstáculo ao pensamento, uma certa imaturidade do logos, que ainda não conquistara a liberdade plena. Por outro lado, a escola de Heidegger pensava representar o mito a expressão mais autêntica do pensamento platônico. De fato, o logos capta o ser, mas não a vida; assim, o mito vinha colaborar exatamente para a explicação da vida, que o logos não tinha condições de captar.
Mas a verdade reside no meio termo. Platão passa a atribuir valor ao mito a partir do momento em que começa a valorizar algumas teses fundamentais do orfismo, juntamente com aspectos religiosos de seu próprio pensamento. Para Platão, mais do que expressão de fantasia, o mito é expressão de fé e de crença. Na verdade, em muitos diálogos, a partir do Górgias, a filosofia de Platão relativa a certos temas se configura como fé racionalizada: o mito procura clarificação no logos e o logos busca complementação no mito. Em síntese, ao chegar a razão aos limites extremos de suas possibilidades, Platão confia à força do mito a tarefa de superar intuitivamente esse limites, elevando o espírito a uma visão ou, pelo menos, a uma tensão transcendente.
Além disso, importa observar particularmente o seguinte: o mito de que Platão se serve metodicamente, em essência, é diferente do mito pré-filosófico, que ainda não conhecia o logos. Trata-se não apenas de um mito que, como dissemos, constitui mais expressão de fé do que assombro fantástico, mas também de um mito que não subordina o logos a si, mas funciona como estímulo paralele, fecundando-o no sentido anteriormente explicado. Por isso, representa um mito que, no momento em que é criado, sofre a sua própria demitização, sendo despojado pelo logos de seus elementos fantásticos para que se preservem apenas seus poderes alusivos e intuitivos. Eis a exemplificação mais clara do que afirmamos em uma passagem do Fédon que se segue imediatamente à narração de um dos mais grandiosos mitos com que Platão procurou representar o destino das almas no além: “Certamente, não convém a um homem dotado de bom senso sustentar que as coisas se passem exatamente como eu as descrevi; sustentar, entretanto, que algo de semelhante deva acontecer no que diz respeito às almas e às suas moradas, a partir do fato de que se conclui que a alma é imortal, me parece perfeitamente legítimo, sendo interessante correr o risco de acreditar, porquanto o risco é belo! É importante que, com tais crenças, nos encantemos a nós mesmos; é por isso que eu, desde há algum tempo, continuo sustentando o meu mito.”
Consequentemente, se quisermos entender Platão, devemos preservar a função e o valor do mito, ao lado e juntamente com a função reservada ao logos, nos moldes do que ficou acima explicado. Por conseguinte, está enganado tanto quem pretende cancelá-lo em benefício exclusivo do puro logos como quem busca conceder-lhe prioridade em relação ao logos a ponto de representar a sua superação (mito-logia). [Reale]