Filosofia – Pensadores e Obras

metafísica leibniziana

A metafísica é a busca do uno, de um princípio a que se possa reduzir tudo. A distinção cartesiana entre a substância pensante e a substância extensa havia estabelecido uma separação perfeita entre o pensamento e a extensão, mas não conseguira mais reuni-los. Leibniz e Spinoza se empenharão em reduzir essa dualidade. Ambos querem chegar a uma substância primeira e única real. A maneira diversa como a entendem, é o que assinala muito bem Renouvier: “Ao passo que a substância de Spinoza continua sendo uma espécie de todo indivisível, Leibniz reconhece a existência de uma pluralidade de substâncias. Para Spinoza não há senão um único ser; para Leibniz, uma infinidade deles. Em resumo, Descartes admite duas espécies de realidades enquanto Spinoza só reconhece uma, mas essa realidade forma um único ser. Leibniz, como Spinoza, não reconhece senão uma espécie de realidade, mas esta realidade está, por assim dizer, fragmentada numa infinidade de seres.” Numa palavra, um desmembra o Infinito, o outro faz do todo o Infinito.

A este Uno-Parcela denomina Leibniz Mônade. “A Mônade nada mais é”, diz ele, “do que uma substância simples que entra nos compostos; simples, isto é, sem partes.” “Ora, onde não há partes”, acrescenta, “não há nem extensão, nem figura, nem divisibilidade possíveis. Essas mônades são os verdadeiros Átomos da natureza, numa palavra, os Elementos das coisas.”

Compreendamos bem, e compreendamos desde logo que não existe possibilidade de compreender. Como é que essas substâncias tão radicalmente simples poderão entrar num composto e formá-lo, de que modo o que não tem “nem extensão, nem figura, nem divisibilidade” poderá suscitar o extenso, o figurado e o divisível? Onde se marcará a diferença entre essas partículas cuja única qualidade nos parece ser a de não terem qualidade alguma?

Trata-se, diz ainda Renouvier, de “unidades de Força”. “Em toda parte onde os nossos sentidos nos fazem perceber um corpo extenso, nossa razão deve admitir apenas a existência de um agregado de mônades inextensas. As partículas materiais que, para a nossa representação sensível, compõem esse corpo, são meros fenômenos e não possuem nenhuma existência absoluta. Mas a cada uma dessas partículas, descendo até o infinitamente pequeno, corresponde, no mundo real que escapa aos nossos sentidos, um princípio de resistência e de ação. Todo ponto físico não é, por assim dizer, senão a expressão fenomenal dum ponto metafísico.”

Seria impossível resumir de maneira mais admirável a doutrina. Todavia, por meio de que qualidades e de que propriedade agem essas mônades, únicas existentes, embora nada haja nelas do que constitui para nós a existência? Pois é necessário que as possuam para agir, ou quando mais não fosse para se distinguirem uma das outras: essa Força é força de quê? É uma força espiritual fragmentada ao infinito, e a cada parcela sua corresponde uma parcela da matéria que ela anima. Tem tudo de si ou em si e nada recebe de fora. “As mônades não têm janelas pelas quais possa entrar ou sair alguma coisa.” Cada uma difere das outras, pois não existem seres idênticos na natureza; são, além disso, princípios de mudança e de movimento. Não têm partes, mas “uma pluralidade de afecções e de relações”.

Cada mônade corresponde a um corpo, e assim a mônade é propriamente a nossa alma — ou, podemos dizer com Leibniz e eom a Escola, a nossa “enteléquia”. Por outro lado o nosso corpo, que é a expressão do universo com o qual permanece em estreita conexão, não passa de uma “representação” da mônade; é, conforme a expressão do próprio filósofo o “ponto de vista” da mônade, que só é capaz de se representar o universo através dele e não tem, assim, concepções “claras” senão sobre um ponto. O universo se acha pois multiplicado ao infinito e numa escala infinitamente reduzida em cada mônade; o macrocrosmo é figurado, ou melhor, reproduzido em sua essência no microcrosmo.

A mônade percebe, embora não perceba senão em si mesma o objeto da sua percepção. Tem percepções obscuras que não chegam até a consciência e tem percepções distintas, que são sentimentos; possui, no homem, princípios de raciocínio que são princípios de conhecimento: o princípio de razão suficiente e o princípio de contradição. Este permite distinguir o verdadeiro do falso e aquele, elevar-se a uma razão última das coisas que é Deus, “substância suprema… única, universal e necessária…”

E que vem a ser esse coroamento ou essa derradeira mecânica explicativa do sistema, que Leibniz chama a harmonia preestabelecida?

É, para começar, uma solução da grande dificuldade cartesiana, um meio de reunir, harmonizando-as, a substância pensante e a substância extensa. Como estabelecer uma relação de causalidade entre duas realidades heterogêneas e de natureza tão radicalmente diversa? Como pode a alma agir sobre o corpo, ou este sobre aquela? Responder-se-á doravante substituindo ou completando a causalidade pela simultaneidade. Entre o corpo e a alma se estabelece um paralelismo de movimento que faz com que sempre, e por uma disposição invariável, a cada modificação de estado de um deles corresponda uma modificação de estado do outro. Assim sendo, as duas substâncias não têm ocasião de agir propriamente uma sobre a outra, pois Deus lhes impôs um acordo incapaz de falhar, estabelecendo destarte entre as diversas partes do mundo uma harmonia prévia que o acompanha no seu curso.

Parecia, pois, não haver mais necessidade de formular o problema com uma concepção como a leibniziana, em que se via desaparecer a dualidade e as duas substâncias reduzirem-se a uma só, essencialmente espiritual e detentora única de toda realidade. Mas ele se esquivava, por assim dizer, para voltar com as próprias mônades. Entre a substância pensante e a substância extensa havia um acordo necessário, mas não entre esses múltiplos átomos da substância pensante. Cada um percebe, representa-se ou pode representar-se o universo, mas a seu modo e tirando-o de si mesmo. Vejo uma pessoa e ela me vê: como é possível que nos vejamos, uma vez que só olhamos para dentro de nós e a nossa mônade não pode ver o que está fora dela? Ainda aqui é preciso haver uma concordância preliminarmente estabelecida e que a mesma vontade, o mesmo poder que havia, por uma operação extrínseca, unido as duas substâncias cartesianas, execute a mesma operação no tocante às infinitas e ínfimas parcelas da substância de Leibniz.

Não se deve ver aí uma pura imaginação engenhosa ou simples evasiva. É a viga mestra do sistema e corresponde a uma concepção do mundo visível e do mundo invisível, derivando-os de uma infinidade que é a própria infinidade de Deus.

A letra de semelhante sistema parece às vezes difícil e ele incide também em dificuldades ou em contradições de que nem sempre consegue desvencilhar-se, mas seu espírito é claro: é um idealismo, isto é, uma concepção que só confere realidade ao pensamento, à ideia, convertendo-se o sensível numa simples aparência que se desvanece. A originalidade do idealismo leibniziano consistiria em ser ao mesmo tempo um atomismo e, por uma ousada oposição nos termos, um atomismo, idealista. Pois como é possível conceber uma substância sem partes, e que escapa portanto à quantidade, multiplicada em partículas infinitas? Reaparece aqui a impossibilidade do absurdo problema filosófico, quer se confira realidade ao material ou ao espiritual, quer se tente conbiná-los, e sempre se baseando no equívoco dessa noção de real. Isso não impede, todavia, que a construção de Leibniz seja genial e conduza a considerações ou deduções as mais fecundas. Se é arriscado falar de uma harmonia estabelecida por decreto, ainda que se trate de um decreto divino, quem deixará de reconhecer no Cosmos, como no espírito ou no interior das consciências, harmonias e concordâncias pelas quais se revela uma realidade ordenadora que ultrapassa toda realidade? Isto quanto ao conjunto; um outro exame nos permitirá entrar em algumas riquezas de pormenor. [Truc]