VIDE dialética transcendental
A alma, o Universo e Deus. Em primeiro lugar, estes objetos, essas coisas em si, à conquista das quais se encaminha a metafísica, não nos são dadas na experiência sensível; não há nenhuma coisa no espaço e no tempo que seja isto que chamamos alma; porque quando nós inspecionamos nossa própria vida psíquica para ver se descobrimos a alma, não descobrimos mais do que uma série de vivências, e a cada uma dessas vivências acompanha a representação de estar referida ao eu; mas o eu mesmo, alma, não o descobrimos em parte nenhuma. Não há, pois, uma percepção sensível da alma, que seria uma das condições fundamentais do conhecimento. Em segundo lugar, quando a metafísica fala do mundo, do universo, esse conceito de “universo”, é também um conceito construído, mas que não está dado na experiência sensível. Não há nenhuma percepção de uma coisa que se chame universo; há a percepção desta lâmpada, daquela cadeira, daquela árvore, do céu, das estrelas, da terra; mas essa totalidade chamada universo não é objeto de uma percepção sensível. Em terceiro lugar, não é necessário esforçar-nos muito para ver que tampouco de Deus temos percepção sensível. Então, como chega a razão a formar estes objetos: alma, universo, Deus? A razão chega a estes objetos porque, como vimos nas lições anteriores, a razão é um poder sintetizador; é o poder de sintetizar impressões, de formar sínteses, unidades sintéticas entre algo e algo. Esse poder sintético da razão se manifesta essencialmente, como vimos em lições anteriores, no juízo. O ato de julgar é o ato pelo qual uma coisa A e outra B ou um sujeito A e uma determinação B, se unem na fórmula do juízo que diz: A é B . Nossa razão é essencialmente uma faculdade de síntese, de união, juízo é, pois, uma função sintética da razão
Pois bem: essa faculdade de união, de síntese, é perfeitamente legítima quando recai sobre o material dado pela experiência (aquele segundo grupo de elementos que eu contrapunha sob o nome de material ao grupo dos elementos formais). Mas eis que a razão faz funcionar sua capacidade de síntese incansavelmente. Fá-la-á funcionar não somente sobre os dados sensíveis que a experiência lhe traz, mas continuamente e cada vez mais; e a faz funcionar ultrapassando os limites da experiência; e não se contenta com umas quantas sínteses que chamamos coisas, substâncias, o calor, a eletricidade, o magnetismo, os corpos, mas também quer fazer uma síntese de sínteses; e quando fez uma síntese de sínteses, ainda quer fazer mais sínteses, até chegar a unidades que abranjam absolutamente a totalidade do sintetizável, do unível. Então essas uniões totais, essas sínteses totais, são os objetos tradicionais da metafísica. Aquilo que chamamos alma é a síntese que realiza a razão de todas nossas vivências na unidade da alma, da qual cada uma dessas vivências aparece como sendo uma modificação. Do mesmo modo no conceito do universo a razão fez a síntese total de tudo quanto pode contrapor-se ao eu pensante, todo objeto a conhecer: fez a síntese de tudo quanto existe. E em Deus fez já a suprema síntese, a síntese em cujo seio está contida radical e germinalmente a última suprema razão não somente das coisas que existem, do mundo, do universo, mas também de minhas vivências e de minha própria alma.
Pois bem; a essas unidades supremas, a essas unidades totalitárias que se chamam a alma, o universo e Deus, Kant dá o nome de ideias. É um uso um pouco insólito da palavra “ideia”. Se se relembram de todas as lições que demos de introdução à filosofia, não será difícil recordar diferentes usos, muito díspares, da palavra “ideia”. Encontramo-la pela primeira vez em Platão e logo a encontramos nos filósofos ingleses e agora tornamos a encontrá-la em Kant; e em cada caso com sentido diferente. Em Platão a ideia significa a visão da essência das coisas nesse mundo das essências que está totalmente separado do mundo das existências sensíveis; em Platão ideia significa as unidades do mundo inteligível. Entre os ingleses ideia significou — em Locke — qualquer fenômeno psíquico, Mas em quem mais exatamente tem, entre os ingleses, um emprego terminológico é em Hume, no qual ideia se contrapõe a impressão; impressão é a vivência de algo como atualmente dado; ideia, em troca, é a vivência reproduzida, a vivência que reproduz uma impressão anterior. E agora verificamos que Kant dá à palavra “ideia” um terceiro sentido, que é o destas unidades absolutas, o destas unidades totalitárias que a razão, pulando por cima das condições do conhecimento, constrói além dos limites de toda experiência possível, ultrapassando esses limites.
Seria longo explicar por que está de certo modo justificado o emprego aqui da palavra “ideia”. Aqui Kant quis referir-se ao uso que faz Platão dessas ideias. E há uma similitude — embora longínqua _ entre o emprego que Kant faz da palavra “ideia” e aquele que ela faz Platão. Mas o importante aqui, para nós, é que estas sínteses totalitárias (a alma, o mundo ou o universo, Deus) que Kant atribui à razão na sua função incansável de unir, de unificar, estas sínteses totalitárias se fundamentam em algo, não são caprichosas; não é que a razão funcione doidamente no seu afã de sintetizar, e sim que entre as condições do conhecimento possível, e, portanto, da possível objetividade, está a condição de que tudo quanto se nos aparece como objeto a conhecer, todo fenômeno, em suma, é, de uma parte, condicionado por outro anterior, e, de outra parte, condicionante daquele que o segue. A categoria de causa e efeito, aplicada aos fenômenos, faz de cada fenômeno uma condição condicionante e ao mesmo tempo condicionada. Por conseguinte, o afã de conhecer, o ato de conhecer, vai sucessivamente passando de um efeito à sua causa; e esta por sua vez aparece como condicionada por outra causa; e esta por sua vez por outra causa, e, por conseguinte, a tarefa racional de ir de condição a condicionante e de condicionante a outro condicionante não se esgota jamais.
Pois bem: esse afã da razão de passar de uma condição a outra e a outra e a outra, revela que a razão aspira no fundo de si mesma a chegar ao incondicionado. O incondicionado não se dá nunca em nossa experiência; mas a razão quer o incondicionado. Então, em lugar de ir de condição em condição, num processo infinito, numa série infinita, salta sobre a série, toma a totalidade da série, sintetiza-a numa ideia e estatui a alma, o universo e Deus, precisamente como as unidades incondicionadas dessas séries infinitas condicionadas, como o absoluto na série relativa de cada uma das vivências e de cada um dos fenômenos físicos.
É justamente este salto do condicionado à totalidade incondicionada que a metafísica realiza em cada um dos seus trâmites para chegar aos términos a que ela quer chegar. E vamos ver agora pormenorizadamente, após estas observações gerais, a crítica que desta pretensão da metafísica nos oferece Kant. [Morente]