Filosofia – Pensadores e Obras

idealismo

VIDE Idealismo

Etimologicamente, idealismo é aquela concepção que assinala às ideias, ao ideal e, por conseguinte, ao espírito a posição dominante no conjunto do ser: o ser, em última instância, determinado desde as ideias, desde o espírito. Assim compreendido, o idealismo não implica oposição ao genuíno realismo mas unicamente ao materialismo. O primeiro ser é, na realidade, o Ser puramente espiritual de Deus, no qual se identificam completamente ser e conhecer espiritual e conforme com as ideias do qual é formado todo ente não divino; assim sendo, todo ente está, desde sua origem penetrado pela luz do espírito, sendo, portanto, “verdadeiro” e cognoscível (verdade). Este genuíno idealismo faz parte também do patrimônio inalienável da filosofia escolástica.

Mas o idealismo incorre, ao mesmo tempo, na mais flagrante oposição ao realismo, não menos decididamente professado na escolástica, quando de algum modo equipara o Espírito, o Pensamento, do qual depende todo ser objetivo, ao pensamento humano. Chegamos assim ao idealismo epistemológico, que encerra em si uma interpretação completamente diferente, não só da essência do conhecimento humano, como também do ser em geral. Segundo ele, o conhecimento humano significa, não uma assimilação ao ente como objeto previamente dado, mas uma produção do objeto; como todavia o pensamento sozinho não pode pôr nenhuma coisa em si, o verdadeiro ser, objeto do conhecimento, aparece como puro conteúdo mental, como ser puramente ideal; quando em certas formas de idealismo, elaboradas em linha menos rectilínea e consequente, se admite ainda uma realidade independente do pensamento, esta é irracional ou absolutamente ou, ao menos, para nós. A interrogação, em cuja resposta se dividem as diversas formas de idealismo, é a seguinte: qual é a natureza do “pensar’’, da “consciência”, do “sujeito” que põe toda a objetividade? Segundo o idealismo empírico (psicológico) é a consciência do individuo como tal que fundamenta o objeto; o ser nada mais é que o conteúdo consciencial do individuo (esse est percipi). Este “ponto de vista consciencial” (consciencialismo), levado às suas últimas consequências, conduz ao solipsismo, ou seja, à concepção de que só o próprio eu (solus ipse) é cognoscível. Berkeley subtrai-se a ele restringindo a tese do idealismo empírico ao mundo corpóreo, cuja existência independente do pensamento nega pura e simplesmente (idealismo acosmístico). O idealismo empírico não é admitido como genuíno idealismo pela maioria dos idealistas, porque descai num pleno subjetivismo e relativismo e não logra explicar a validade universal da ciência, independente de toda experiência individual contingente. Por isso Kant admite que não é o sujeito individual com todas as suas contingências que determina o objeto, mas sim um “sujeito transcendental”, ou seja, um sujeito, cujas formas, universais e a priori da intuição e do pensamento em face das sensações mutáveis, são lei incondicionalmente válida para todo ser pensante igual a nós (idealismo transcendental ou crítico). O sujeito transcendental, cuja índole permanece indecisa em Kant, encontrou subsequentemente várias interpretações. Se, como em J. F. Fries, ele é concebido como sendo a natureza psíquica peculiar do homem, então somos levados a uma espécie de psicologismo e à supressão da validade incondicionada do conhecimento. Se esta validade se deve manter a salvo dos princípios idealistas, então o sujeito transcendental deve ser pensado como consciência absoluta, divina. Assim se origina o idealismo metafísico, o qual implica o panteísmo. (Todavia pode a expressão “idealismo metafísico” designar também o genuíno idealismo, de que atrás falamos). No idealismo alemão, em Fichte, Schelling e Hegel, encontramos o idealismo metafísico elaborado de maneiras diversas. — Por último, o idealismo lógico, principalmente tal como foi elaborado no neokantismo, considera as formas do pensamento, não já como conteúdos conscienciais de um sujeito pensante real, mas como fundamento auto-suficiente de toda validade. Muitas vezes, descarta ele a questão relativa ao sujeito último de ditas formas, concentrando unicamente a atenção na articulação lógica dos conceitos mentais. O idealismo lógico, negando um sujeito pensante real, incorre, segundo N. Hartmann, no absurdo de um “subjetivismo sem sujeito”. — As expressões “idealismo subjetivo” e “idealismo objetivo” nem sempre são tomadas no mesmo sentido. Umas vezes entende-se por idealismo subjetivo o psicológico, que converte em norma a consciência empírica individual; outras vezes, todo idealismo que afirme que o objeto procede do sujeito (como em Fichte), ao passo que recebe o nome de idealismo objetivo o que defende a identidade inicial de sujeito e objeto (como em Schelling e Hegel). Em acepção muito restrita, é idealismo objetivo o idealismo puramente lógico, no qual a questão relativa ao sujeito pensante passa inteiramente para plano do fundo.

O idealismo, enquanto concepção complexiva do universo, repercute-se também na ética e na teoria da sociedade. Contra todo positivismo superficial, acentua com seriedade moral que as normas reguladoras da vida individual e coletiva independem de opiniões e estados de ânimo meramente tácticos; mas quando, em conformidade com os respectivos princípios idealistas, desliga da ordem essencial do ser essas normas e pretende bastá-las tm atitudes exclusivamente “formais” do “puro” sujeito e vazias de conteúdo, nesse caso desliza para um abstracionismo alheio à vida. — De Vries. [Brugger]


É bastante comum empregar este termo com referência ao platonismo, ao neoplatonismo e a doutrinas filosóficas análogas. No entanto, como do ponto de vista da doutrina dos universais, os filósofos de tendência platônica são qualificados de realistas – por afirmarem que as ideias são reais -, o termo idealismo, no sentido primeiramente apontado pode prestar- se a equívocos. Preferimos aplicá-lo a certos aspectos da filosofia moderna.

Este vocábulo usa-se também em relação com os ideais. Chama-se então idealismo a toda a doutrina – e a toda a atitude – segundo a qual o mais fundamental, e aquilo pelo qual se supõe que devem reger-se as ações humanas são os ideais – realizáveis ou não, mas quase sempre imagináveis como realizáveis. Então o idealismo contrapõe-se ao realismo, compreendido este como a doutrina – ou simplesmente a atitude – segundo a qual o mais fundamental, aquilo pelo qual se supõe que devem reger-se as ações humanas, são as realidades, os “fatos que contam e que soam”. Neste sentido de idealismo costuma-se dizer ético ou político, ou ambas as coisas ao mesmo tempo.

Ocupar-nos-emos aqui do idealismo que qualificaremos de filosófico e que costuma ter dois aspectos, em princípio independentes entre si, mas amiúde unidos, o aspecto gnoseológico e o aspecto metafísico.

A ação mais fundamental do idealismo é tomar como ponto de partida para a reflexão filosófica não “o mundo em torno”, ou as chamadas “coisas exteriores” (o mundo exterior), mas o que chamaremos eu, sujeito ou consciência. Justamente porque o eu é fundamentalmente ideador, quer dizer, representativo, o vocábulo idealismo torna-se totalmente justificado. Considerando o idealismo com particularmente o idealismo moderno, e tendo em conta que o ponto de partida do pensamento idealista é o sujeito, pode dizer-se que tal idealismo constitui um esforço para responder à pergunta: “como podem conhecer-se, em geral, as coisas?” Para o idealismo, ser significa primariamente “ser dado na consciência”, “ser contido na consciência”. O idealismo é, assim, um modo de compreender o ser. Isso não significa que todo o idealismo consista em reduzir o ser – ou a realidade – à consciência ou ao sujeito. Uma coisa é dizer que o ser ou a realidade se determinam pela consciência, o sujeito, etc e outra é manifestar que não há outra realidade que não seja a do sujeito ou da consciência. Esta última posição é só uma das possíveis posições idealistas.

Costuma-se considerar como idealistas autores como Descartes, Malebranche, Leibniz, Kant, Fichte, Schelling, Hegel. Em geral, o idealismo moderno coincide com o racionalismo – embora dentro deste haja autores como Espinosa, que não são propriamente idealistas, ao mesmo tempo que no empirismo há autores como Berkeley, que são claramente idealistas.

Em Descarteschamado às vezes “o primeiro idealista”, em todo o caso “o primeiro idealista moderno” – o idealismo consiste primeiramente em arreigar toda a evidência do cogito. Não nega a existência do mundo exterior, mas sim apenas que o mundo exterior não é simplesmente um dado do qual se parte. O mundo exterior é posto entre parêntesis para ser exteriormente justificado. Como isso tem lugar mediante o rodeio de Deus, pode dizer-se que o idealismo cartesiano é apenas relativo. Embora a ideia de Deus apareça na consciência e no sujeito, aparece neles como a realidade.

Em Leibniz, o idealismo aparece sob forma monadológica. A natureza da mónada é representativa, e como, além disso, apenas as mónadas são reais, há que suster a idealidade do espaço e do tempo, e, em geral, de muitas das chamadas relações. de certo modo, o idealismo de Leibniz é menos óbvio que o de Descartes. Em todo o caso, não é um idealismo subjectivo, nem sequer no sentido cartesiano de “sujeito”. Em contrapartida, o idealismo é subjectivo e, de certo modo, empírico, em Berkeley, enquanto a realidade se define como o compreender e o ser compreendido. Kant formula o seu próprio idealismo, o único que pensa aceitável: o idealismo transcendental. Este sublinha a função do posto no conhecimento. O idealismo transcendental kantiano distingue-se do que Kant chama “idealismo material” no fato de não ser incompatível com o “realismo empírico”, antes chega a justificar este. Não se afirma, portanto, que os objetos externos não existem ou que a sua existência é problemática; afirma-se unicamente que a existência dos objetos externos não é cognoscível mediante percepção imediata. O idealismo transcendental kantiano não fundamenta o conhecimento no dado, mas em todo faz do dado uma função do posto.

O idealismo alemão pós-kantiano oferece variadíssimos aspectos nos seus grandes representantes: é caraterístico de todos eles o ter prescindido da “coisa em si”. Por isso se pensa às vezes que o autêntico idealismo coincide com o idealismo alemão pós-kantiano. Em tal idealismo o mundo é equiparado com “a representação do mundo”, o que não significa a representação subjectiva e empírica. De fato, logo que de uma representação, trata-se de um representar, quer dizer, de uma atividade representativa que exerce o seu sujeito e que desse modo condiciona o mundo.

O idealismo contemporâneo – compreendendo pelo menos as correntes idealistas a partir das duas últimas décadas do século dezanove – adoptou diversas formas, mas na maior parte dos casos baseou-se num dos tipos de idealismo manifestados durante a época moderna. [Ferrater]


Diz-se de toda doutrina cujo princípio interpretativo fundamental é ideal. Assim há tantas posições idealistas quantas maneiras de considerar a acepção do termo ideal. O termo idealismo surge no séc. XVII para nomear a teoria das ideias (formas) arquetípicas de Platão e, também, a concepção gnosiológica de Descartes e Locke, os quais consideravam as ideias objetos diretos da apreensão, como possuídos subjetivamente. Deste ponto de vista surgiu a dúvida sobre a existência real do mundo exterior, de modo que foi usado como sinônimo de acosmismo (vide), que afirma que o mundo exterior é apenas uma projeção dos nossos pensamentos, e o imaterialismo que negava a existência real da matéria.

O idealismo pode ser visualizado segundo as diversas maneiras como é proposto, pois segundo as acepções que toma o termo ideia variam as posições idealistas.O idealismo puro nega a existência do mundo exterior real, para afirmar a existência apenas das nossas ideias ou das ideias em geral. Entre os idealistas puros temos o espiritualismo, o mentalismo, o panpsiquismo, o fenomenalismo idealista, o monadismo. Subdividem-se os idealistas em personalistas e impersonalistas. Os primeiros afirmam apenas a existência das ideias na própria consciência, enquanto os segundos afirmam a existência de um mundo ideal numa realidade não consciente. Real-realismo ou realismo idealista aceita a existência de seres não ideais, mas subordinados às ideias. O ideal-realismo aceita a existência das ideias, mas admite que a sua representação em nós depende da nossa maneira de esquematizar o mundo das coisas reais e ideais, que existe fora das ideias, embora de certo modo subordinadas àquelas. Na estética chama-se idealismo a posição que afirma que a arte não é apenas uma cópia da natureza, uma imitação desta, mas a representação de uma natureza fictícia, mais desejada para o espírito.

Crítica do idealismo – Os antigos não consideravam um problema o conhecimento sensível, o dado pelo senso comum (pela conjunção das assimilações provenientes dos sentidos). Contudo contra essa objetividade surgiu entre os idealistas um movimento contrário, que começou a considerar um problema o conhecimento sensível. Eles entendiam que nossos conhecimentos das coisas sensíveis não correspondiam propriamente a entidades existentes fora dos mesmos, coisas reais extra mentis, independentemente da nossa mente, mas apenas representações mentais, aparências meramente subjetivas, objetos construídos pela nossa esquemática; portanto dependentes exclusivamente das formas a priori (independentes da experiência) da própria mente humana, que terminava por construir, como estruturas reais e objetivas, o que não passava de simples construções do nosso espírito. Alguns chegaram a afirmar que nada existia fora de nossa mente, e que a única realidade era a espiritual, como os idealistas metafísicos.

São inúmeras as posições idealistas, e elas se distinguem por pequenas diferenças. Não é possível estabelecer um quadro rigoroso das diversas doutrinas idealistas, mas só um quadro geral, onde são incluídas as principais posições, sintetizadas em duas posições polares: 1) a dos que admitem a existência do mundo exterior, independente de nossos sentidos, mas do qual apenas temos uma representação, que não corresponde à realidade do mesmo, que apenas constitui uma estrutura modelada, formada pela nossa esquemática mental; posição universalista; 2) a dos que admitem que nossas representações são meras aparências subjetivas, negando a realidade do mundo corpóreo e, afirmando apenas a do mundo espiritual ou metafísico, como o idealismo acosmístico de Berkeley. É uma posição particularista que afirma que o nosso conhecimento é apenas imanente e não reproduz realmente o que há fora de nós, nem que as coisas tenham as propriedades que nossos sentidos afirmam. Todo ser que conhecemos é o ser de nossa própria percepção (esse est percipi = ser é ser percebido).

Examinando a primeira posição encontramos uma sequência de distinções. Há os que afirmam que as formas subjetivas pertencem apenas à natureza humana, e o mundo que conhecemos é o nosso mundo, modelado antropologicamente. É o idealismo psicologista ou ideal-realista que afirma estar a realidade das ideias apenas nas ideias.

Para uns, como Fichte, estas formas estão no ego humano, ou então num ego absoluto, no Absoluto, no qual tanto se identificam o ego como o não-ego, onde a ordem real se identifica com a ordem ideal (real-idealismo), como Schelling. Para outros, estão na Ideia Absoluta que afirma a si mesma ,e outras que a si mesma, numa contínua evolução, como Hegel, ou nada mais são as ideias que meras construções das representações que temos de nossa experiência; idealismo empírico de Hume, o idealismo kantiano, o idealismo transcendental.

O que há de comum em todas as posições idealistas é a característica céptica e relativística em relação ao conhecimento humano. Consequentemente têm de afirmar que não temos uma verdade e uma certeza formal. Contudo, se se assemelham ao cepticismo num aspecto, dele divergem pela afirmação da certeza que têm da verdade da sua posição. O conhecimento é assim necessariamente humano e o mesmo para todos. Deste modo aquele que pensa segundo as normas comuns da mente humana está com a verdade, e se delas se desvia, erra. Refuta-se a posição idealista do seguinte modo: ela nega uma certeza real e formal, cuja certeza é demonstrada. Consequentemente o idealismo falha pela base. Há princípios filosóficos que não são verdadeiros apenas na nossa mente, mas também na realidade. Diz o idealista que todas as nossas cogitações representam meras aparências subjetivas, que não se conformam com as coisas. Se realmente é assim, há um conhecimento que se conforma com as coisas, que é o do idealista, pois seria conforme com a realidade que nossos conhecimentos não se conformam com a realidade, o que é contraditório afirmar. Ademais o idealista diz que não há conformidade alguma entre o nosso conhecimento com as coisas: é uma afirmativa céptica.

Porém como poderia o idealista afirmar com fundamento o seu postulado? Como pode garantir a não existência de um mundo real-real, apenas fundando-se em suas afirmações, bem como poderia garantir que nossos conhecimentos não são conformes à realidade exterior, que ele nega conhecer? E estabelecer uma adequação ou não entre dois termos quando de antemão se afirma que se desconhece um deles?

Mas o idealista retruca: para alguém saber se o seu juízo é verdadeiro, seria mister que pudesse compará-lo com a coisa vista em si mesma. Ora, tal é impossível; portanto, nunca se pode saber se o juízo é verdadeiro. E é verdadeira a afirmativa, porque a coisa que está no intelecto, nele não está como na realidade, mas apenas é uma representação. Neste caso a comparação só pode ser feita com uma representação da coisa, e não com a coisa; portanto é impossível comparar um juízo da coisa com a coisa. Mas a afirmativa da premissa maior é negada, porque o que afirma com o juízo é a existência em ato da coisa. O juízo é uma afirmação, é um julgamento. Seria tolice pensar que para ter uma ideia verdadeira de um avião necessitássemos tê-lo na mente. A existência do avião se dá em sisi mesmo , e o que a mente afirma não é a presença dele, mas a realidade dele em sisi mesmo. Não há necessidade para ser verdadeiro um juízo, que seja idêntico com o que ele afirma. Para ter a ideia do fogo não precisamos ter em combustão nem em brasas a nossa mente. Dizer-se que um ser intelectual é apenas intelectual é não compreender a sua intencionalidade. Que é um ser intelectual, quem o negaria? Mas que a intencionalidade não se refira ao que há fora da mente, pelo simples fato de estar na mente, revela uma confusão de ideias. Quando pensamos em água, referimo-nos à água que há. Não é preciso que o pensamento da água seja água, para que seja verdadeiramente uma intencionalidade daquela. Não haver compreendido essa verdade elementar do juízo, ou melhor, por nunca terem compreendido claramente a teoria do juízo, é que os idealistas cometeram tantos erros.

Outro argumento de um idealista: o ente que não é um ato cogitado é um ente em ato ignorado; ora, do ente ignorado nada sei; logo, do não cogitado não sei se existe independentemente da mente ou não existe. É certo que do ente do qual não cogitamos não podemos dizer que existe, porque então dele cogitaríamos. Mas do qual cogitamos, poderíamos dizer que não é um produto apenas da nossa mente, e que pode ter uma existência independentemente de nós.

Contudo, de todos esses idealistas, o que mais auxiliou a confusão das ideias humanas, e de onde partiram as doutrinas mais deploráveis foi, sem dúvida, Kant. Esses erros tornaram-se verdades incontrastáveis e entusiasmaram a muitos filósofos, que aceitaram sem exame e consideraram até como algo definitivo.

A posição kantiana é falsa por muitas razões: 1) Que o espaço e o tempo são formas a priori é improcedente, como se demonstra na cosmologia; 2) Que a experiência não nos dá o universal, nem pode explicá-lo, revela apenas desconhecer o em que consiste a abstração humana, como a expôs Aristóteles e os escolásticos; 3) Negar ao intelecto intuições próprias desmente-se pela intuição das próprias intuições e do próprio eu, e das espécies impressas no mesmo, pois é ele tanto ativo como passivo; 4) Segundo a posição kantiana não se podem dar juízos sintéticos a priori; 5) Todas as suas exposições da doutrina escolástica são fundamentalmente erradas e demonstram que não a conhecia; 6) Desconhecia a doutrina dos juízos virtuais; 7) Suas alternativas (e divisões) são falsas, pois deixa de considerar uma terceira possibilidade como se vê no referente ao conhecimento a priori e a posteriori, e em muitas outras divisões; 8) Entra em muitas contradições, como a de afirmar que jamais a mente humana é capaz de saber o que é a coisa em si e, no entanto, admite que ela se dá. Ademais afirma que há causalidade ao declarar que o númeno causa em nós o fenômeno, e depois conclui que a existência da causalidade é meramente subjetiva; 9) Ao afirmar que nossos conhecimentos são meramente subjetivos e meras aparências, cai no idealismo absoluto; 10) Afirma que o númeno só é aceito pela . E como então admitir que ele nos dá conhecimentos?

A obra de Kant promoveu o advento de uma série de doutrinas errôneas e prejudiciais como o positivismo, o agnosticismo, o idealismo, o intelectualismo, o pragmatismo, o vitalismo, o voluntarismo, o panteísmo, o relativismo psicológico e provocou o ficcionalismo.

Lamentável tem sido o erro daqueles que julgam que, por não termos a possibilidade de alcançar uma verdade absoluta, exaustiva, consequentemente, tudo quanto sabemos é falso. Ora, nada podemos saber desta porta porque não a captamos em si, em toda a sua pujança de ser. Mas esquecem que as perfeições in indivisibili e as in divisibili distinguem-se entre si por não estarem as primeiras sujeitas a graus, enquanto as segundas o estão. Assim, ou isto é uma porta ou não é; contudo pode ser mais alta ou mais curta, tecnicamente mais bem feita ou não. A substância, por exemplo, não está sujeita a mais ou menos. Um ser humano, enquanto ser humano, não é mais como espécie do que outro ser humano. Basta que nosso esquema mental se adeque ao que a coisa é para que seja ele verdadeiro. Ademais que seria a porta em si? Em si ela é apenas um artefato que tem uma determinada função e nada mais que isso. Ademais, já não é a porta, mas a matéria que a compõe, etc. A coisa em si que Kant falava era apenas um fantasma que ultrapassaria a toda experiência, e como a colocava fora de toda experiência, seria ela consequentemente, previamente inatingível. Conseguia, assim, com algumas ideias verdadeiras, construir estruturas filosóficas falsas, e lançava a dúvida total à capacidade humana de conhecer, pelo simples fato de que ela não conhecia o que ele pretensamente tornava de antemão incognoscível. Quando dizemos que este objeto é uma porta, dizemos que este fato do mundo exterior se adequa especificamente ao conceito (que significa a ordem dos objetos, que têm uma determinada lei de proporcionalidade intrínseca, logos) que nomeamos porta e se adequa a este objeto do mundo exterior. [MFSDIC]


Prioridade da teoria do conhecimento no idealismo.

A atitude idealista no problema metafísico é realmente tão difícil, tão insólita, tão fora dos caminhos habituais de nossa apresentação ante o mundo, que convém novamente insistir sobre a necessidade de acomodar nossa maneira de pensar a essa insólita, difícil e antinatural atitude.

Já vimos que precisamente por ser antinatural, por ir contra as inclinações espontâneas do homem, é uma atitude que não pôde ser tomada nos começos da história do pensamento humano, mas teve que sobreviver como reação perante a atitude natural. E assim essa reação substituiu a forma ingênua de lançar-se sobre o ser das coisas, sendo aquela reação uma forma reflexiva, uma cautela, uma prudência que faz com que antes de colocar propriamente o problema metafísico de: quem é o ser? nos vejamos obrigados a certos trâmites prévios, a certos esclarecimentos prévios com referência à própria atitude que estamos tomando.

Essa atitude reflexiva, que é o idealismo, consiste, pois, em deter a marcha espontânea do pensamento, que anseia por lançar-se sobre as coisas para captá-las, defini-las e voltar o pensamento sobre si mesmo. E por que sobre si mesmo? Eis porque o “si mesmo” do pensamento é o mais imediato que o pensamento tem. O mais imediatamente “mesmo” é o pensamento mesmo. Por isso a atitude idealista consiste em afastar a vista das coisas e em pousá-la sobre o pensamento das coisas. Visto que às coisas não chegamos senão através do pensamento, o pensamento delas é para nós mais próximo; não somente mais próximo, mas é nós mesmos pensando. Isto é o que expressávamos nas lições anteriores, fazendo ver que a dúvida cartesiana pode impunemente fazer mossa com toda tranquilidade sobre os objetos do pensamento; porém, que uma vez detida na metade do caminho, antes de chegar aos objetos; uma vez concentrada no ato mesmo de pensar, a dúvida já não pode fazer entalhe nesta nova realidade e tem que se render, e então o imediato do pensamento aparece como o existente em si. Mas, como entre o pensamento e o eu não existe, ao que parece, nenhum interstício diferencial, a atitude idealista há de começar necessariamente pela afirmação da existência do eu pensante.

Qual é a consequência dessa insólita atitude, deste giro do pensar sobre si mesmo, deste estilo que não sem razão foi comparado com o barroco nas artes? A consequência é que os objetos do pensamento se tornam agora problemáticos; tornam-se problemas. O que antes, no realismo, era dado — as coisasagora já não são dadas, já não são postas; agora se tornam problemas, propostas, questões e esforços que o pensamento faz para sair de si mesmo.

Todas essas reflexões, todo esse conjunto de trâmites prévios, consideremo-los agora, por assim dizer em bloco e de fora. E que impressão nos produzem? Pois nos produzem a impressão inevitável de que aí, em todos esses trâmites prévios, se escondem questões de psicologia. Em todos esses trâmites, em todas essas reflexões, trata-se umas vezes do pensamento como vivência do eu; do eu como aquele que vive os pensamentos. Isto é psicologia pura. Outras vezes se trata do objeto pensado pelo pensamento e da existência ou não do objeto pensado pelo pensamento; se o pensamento que pensa é verdadeiro ou não é verdadeiro; se esse pensamento, considerado esta vez não como vivência do eu, mas como enunciação de algo, é um pensamento que se refere a um objeto real ou não se refere a objeto real nenhum. Neste segundo caso são questões de lógica e ontologia as que estão propriamente fundidas em todas estas reflexões.

Por conseguinte, se sairmos desse complexo em que nos encontramos e olharmos um pouco de fora, que haveremos de dizer? Haveremos de dizer que a posição, que a atitude idealista implica necessariamente em que a filosofia se inicia por uma reflexão lógica e psicológica acerca dos pensamentos e dos seus objetos. Mas tudo isto podemos expressá-lo muito mais brevemente: todo pensamento que pensa um objeto pretende expressar aquilo que o objeto é, ou seja, pretende conhecer o objeto. Nossos pensamentos dos objetos são conhecimentos deles. Por conseguinte, diremos que na raiz mesma, na definição mesma da atitude, da posição idealista, está implícito necessariamente que ela tenha de começar por uma teoria do conhecimento. Esta teoria do conhecimento poderá ser mais predominantemente psicológica ou mais preponderantemente lógica; atenderá talvez preferencialmente aos pensamentos como vivências do eu, ou aos pensamentos como enunciados do objeto. Mas, em todo caso, sempre o idealismo anteporá a qualquer outra questão ulterior uma teoria do conhecimento.

E, com efeito, assim é historicamente. As primeiras meditações de Descartes, as que antecedem à demonstração da existência de Deus, são já uma teoria do conhecimento. E se refletimos que essas primeiras meditações de Descartes não são senão a exposição, em termos preferentemente populares e acessíveis a todo o mundo, de outras reflexões expostas muito mais amplamente nas Regras para a direção do espíritoobra de sua mocidade que não foi publicada até depois de sua morte —, então resulta mais evidente ainda que no próprio Descartes, o problema metafísico não é abordado senão depois de uma preparação mais ou menos minuciosa do problema da teoria do conhecimento, ou, como se costuma dizer, epistemológico. E depois de Descartes, os filósofos que o seguem sentem com uma clareza total e completa essa necessidade inerente ao idealismo de explicar-se antes acerca do conhecimento, das suas origens, dos seus limites, de suas possibilidades. John Locke, o primeiro filósofo de quem se diz que constrói uma teoria do conhecimento, no seu Tratado sobre o entendimento humano, propõe-se explicitamente a fazer uma teoria do conhecimento humano; a estudar as origens das ideias, dos pensamentos; a ver se às ideias correspondem ou não correspondem impressões e realidades efetivas; a analisar as diversas ideias complexas e ver como se derivam das simples. Todos esses problemas de teoria do conhecimento, de origem, limites e possibilidade do conhecimento humano, constituem o âmago do livro de Locke.

Mas, depois deste, outros filósofos ingleses seguem exatamente o mesmo rumo, e também antes de mais nada, antes de passar a qualquer afirmação ou negação do problema metafísico, levantam o problema do conhecimento; num sentido mais ou menos psicológico — esta é outra questão — mas o levantam. Assim, Berkeley, antes de expor sua metafísica espiritualista, levanta e resolve o problema do conhecimento; e Hume, antes de propor sua não-metafísica, sua oposição a qualquer metafísica, ou, por assim dizer, seu positivismo, também levanta e resolve os problemas fundamentais do conhecimento. Na filosofia continental ocorre exatamente o mesmo, com uma única exceção que é o filósofo Espinosa; porém, dessa única exceção poderia dar-se também causa. Os demais, Leibniz, Kant, propõem primeira e primordialmente a questão do conhecimento. Leibniz escreve seu primeiro e grande livro como polêmica e resposta ao livro de Locke sobre o entendimento humano, e os três grandes livros de KantCrítica da Razão pura, Crítica da Razão prática, Crítica do Juízo — não são senão a forma mais completa e perfeita que na filosofia moderna tomou a teoria do conhecimento.

Assim é que nos encontramos agora, em nossa excursão pelo campo da metafísica, ante a necessidade de nos determos, de pararmos. Chegamos, em nossa excursão pelo campo da metafísica, ao ponto de encontro com o idealismo. O realismo produziu tudo o que podia produzir com a metafísica de Aristóteles. Depois teve que surgir, necessariamente, por uma necessidade histórica que já expus, essa mudança de ponto de vista, essa nova atitude difícil e insólita que chamamos idealismo. Mas acontece que esta atitude necessita, para poder desenvolver-se nos problemas metafísicos, elaborar previamente uma teoria do conhecimento. Para seguirmos, pois, essas teorias1 do conhecimento, que são os pórticos de tantas outras metafísicas modernas, necessitamos de valer-nos de instrumentos que ainda não temos; necessitamos fazer uma pausa, um alto em nossa excursão pela metafísica, e antes de continuarmos nossa marcha adquirir instrumentos mentais que nos permitam entender os novos trâmites que o pensamento idealista antepõe a qualquer metafísica. [Morente]