Claude Henri de Rouvroy, Conde de Saint-Simon, havia falado de “fisiologia social”, de um “cristianismo novo” que quase nada tinha de comum com o dogma católico, e sonhado, antes de Comte, com a reorganização do mundo.
Charles Fourier imaginou os seus “falanstérios” em que os homens seriam agrupados de acordo com as suas aptidões e em que se contaria com a bondade natural deles para que vivessem em paz. Conhecem-se, a respeito, as infantilidades bastante picantes de Enfantin. Escritor genial, pensador audaz e moralista de gosto apurado, mas desprovido de senso metafísico ou verdadeiramente religioso, Proudhon bania da política a política corrente e pretendia estabelecer um socialismo que fosse acima de tudo uma administração mais judiciosa dos bens da terra, os quais não são a propriedade mais ou menos usurpada de alguns. Imaginava federações de províncias ou de estados e também ele colocava a célula social não no indivíduo, mas no casal e na família. Todo este socialismo francês, apesar das concepções engenhosas de um homem da envergadura de Proudhon, conservava o cunho da época: era oratório e sentimental e esssa mesma política corrente, quer se tratasse de motins, quer de debates parlamentares, não podia deixar de corrompê-lo. O socialismo alemão tinha outra orientação especulativa; isto porque se baseava numa filosofia diferente — que aliás contradizia em parte — e porque era construído de acordo com a mecânica hegeliana.
O que constitui a sua essência e o seu interesse para nós é o fato de colocar-se no centro e no termo do erro moderno, terminando nessa divinização do homem pela supressão de Deus que é o próprio símbolo do nosso desvario. O fato se deu onde menos era de esperar e entre os jovens hegelianos que arrastavam o velho mestre quem para a direita, quem para a esquerda, e acabavam por lhe falsear o sentido e o espirito.
Com efeito, a nova filosofia, que vai assumir uma feição toda política e social, é a filosofia de Hegel esvaziada do seu conteúdo, ou melhor, cujo conteúdo foi substituído por outro. Isto já se percebe em Feuerbach, no qual se afirmam explicitamente a supressão e a substituição. Não é mais o Espírito que se move aqui, realidade única, engendrando o real e o supremo, mas pura e simplesmente o homem, o homem concreto considerado na sua atividade, na sua sucessividade. Efetuou-se a operação decisiva, a revolução metafísica está consumada. Vai prosseguir e completar-se, noutra ordem, com Karl Marx.
Este alemão de origem judaica é, pelo caráter e pela estrutura do espírito, um lídimo representante da sua raça e do seu país, cabeça filosófica embora traindo a filosofia e metafísico apesar de suprimir a metafísica. Nasceu em Treves, em 1818, e morreu em Londres, em 1883. Professor na Alemanha, depois exilado, assinou com Engels, em 1848, o Manifesto comunista e publicou a partir de 1867 a sua grande obra inacabada, O capital.
O marxismo é acima de tudo uma filosofia, chegando mesmo a proclamar-se a única e definitiva filosofia. E é uma filosofia tão difícil nos pormenores e na estrutura quanto é simples, até simples demais, no que se refere ao princípio. Ao mesmo tempo que nega o hegelismo, é uma aplicação da mecânica hegeliana.
Foi o homem que fez a história, é o homem que se encontra na história e, por conseguinte, será a história que desvendará tanto o segredo do passado do homem quanto o do seu destino futuro. “Minhas indagações”, diz o próprio Marx depois de levar a cabo as suas imensas pesquisas, todas efetivamente de ordem histórica ou social, “levaram-me à seguinte conclusão: que as formas e os códigos políticos não se podem explicar por si mesmos nem pelo que se costuma chamar evolução do espírito humano, mas pelo contrário têm raízes na situação material, num conjunto de elementos que constituem… a sociedade burguesa… .”
Daí derivava a sua doutrina e, conforme o acertado resumo de Bréhier, “essa estranha proposição segundo a qual todas as relações morais, políticas, jurídicas e intelectuais entre os homens são determinadas numa sociedade pelo regime da produção”.
Assim é, com efeito, e é pelo fator econômico que, para Marx, tudo se define e determina; tanto a história como o destino dos homens repousa sobre este materialismo, com razão chamado “histórico”. Sua doutrina tinha ao menos o mérito de chegar a uma conclusão e de prestar-se a uma aplicação prática: partindo da existência de classes e da luta de classes, passar-se-á à supressão das classes e à paz e à felicidade dos homens, mediante a vitória do proletariado.
A política, a polêmica e essa “luta de classes”, infelizmente muito real, simplificam demais e desfiguram comumente o marxismo. Não nos compete falar aqui deste sistema senão como sistema. É evidente que, sob este ponto de vista, nos parece radicalmente falso. Não se amputa impunemente o mundo, nem o homem, de Deus e do transcendente, nem tampouco se pode reduzir o homem a si mesmo sem lançá-lo simultaneamente na confusão e no absurdo. O racionalismo e o cientificismo são formas rudimentares de pensamento e, no fundo, o marxismo não passa disso; é uma filosofia de estatístico ou de engenheiro, nunca uma filosofia de filósofo. O próprio Marx, entretanto, superou a sua concepção graças a um autêntico gênio e é possível que também ele tenha sido o que não quisera ser.
Teve intuições justas, profundas e sutis no detalhe das suas análises, mostrou-se discípulo fiel de Hegel quanto ao método e a velha ordem do mundo está longe de poder defender-se em toda a linha contra a sua acusação, ainda que demasiado sistemática ou parcial. Tem, por exemplo, acerca das relações entre a mercadoria e o dinheiro — uma a representar a qualidade, o outro a reduzi-la, como aliás reduz tudo e todos os seres, à quantidade — considerações que impressionam o moralista. Nada disso, entretanto, prevalece contra a carência inicial. Esta filosofia é realmente a deformação mais estranha da filosofia; esta metafísica, é a negação de toda metafísica. Porque temos aí de fato uma metafísica, mas a pior de todas, aquela que, ao invés de oferecer ao homem a possibilidade de sair de si, encerra-o pelo contrário em sisi mesmo de maneira irremediável, e que em lugar de transcender o mundo pretende defini-lo sem sair dele e transferir ao fenômeno uma prerrogativa exclusiva da ideia — uma metafísica da matéria, em suma, o que vem a ser uma contradição nos termos. Contradição aliás fatal, pois o espírito continua a legislar a seu modo, seja qual for a direção que se lhe imprima ou o alimento que se lhe dê, e é incapaz de fugir a si mesmo, nem tampouco ao seu destino. [Truc]