Filosofia – Pensadores e Obras

filosofia e metafísica

Na terminologia filosófica nenhuma palavra supera as vicissitudes sofridas pelo vocábulo ‘metafísica’, cujo primeiro sentido foi puramente classificatório, depois se revestiu de acepção pejorativa, em seguida caracterizou uma etapa civilizatória e, portanto, negada na etapa subsequente, para terminar representando o papel de uma disciplina em certas divisões pedagógicas da filosofia. Nasceu o vocábulo no século I a. C. quando Andrônico De Rodes, ao ordenar os escritos de Aristóteles, encontrou alguns livros cuja denominação, assim como sua colocação dentro da obra aristotélica, eram problemáticas. Resolveu, então, pô-los “depois dos livros de física” (tà meta tà physikà). Posteriormente essas quatro palavras gregas se reduziram a uma só, mediante a supressão dos artigos e fusão da preposição com o substantivo. E assim surgiu o vocábulo ‘metaphysica’, de cunhagem latina apesar de sua evidente origem helênica, e sua fortuna se deve a que nunca foi entendido como uma prosaica postphysica, mas como uma reverberante, incitante e misteriosa transphysica, acepção adotada por Santo Tomas De Aquino, constituindo, em toda a tradição medieval e moderna, um saber que pretende penetrar no que está situado além ou por trás do ser físico enquanto tal.

Na polêmica contra os escolásticos, a metafísica foi envolvida sofrendo a mesma crítica da lógica medieval e assumiu um sentido pejorativo, em particular nos filósofos cientistas do século XVII, que dela se serviam para estigmatizar na escolástica uma ôca logomaquia, aparecendo sempre associada a adjetivos depreciativos. Descartes, por exemplo, no Discurso do método (IV, 1) se desculpa de que suas considerações sejam “tão metafísicas e tão pouco comuns”; o mesmo acontece com Hobbes que, em De corpore (II, 8, § 9), diz que “a maioria dos que buscam certa sutileza metafísica são extraviados pelo aspecto das palavras como fogos fátuos”. Desta depreciação resulta, afinal, o menosprezo em que caiu a metafísica no século seguinte, dedicando Voltaire, no seu Dicionário filosófico, um verbete à palavra ‘metafísica’ discretamente irônico, indo porém mais longe D’Alembert ao afirmar que o título de metafísico logo se transformaria numa injúria, “como o nome de sofista, que no entanto significava sábio”.

Em Comte, a metafísica passa a designar o modo de pensamento entre o teológico e o positivo, tendo como caracteres próprios a ontologia, o predomínio das abstrações e das explicações verbais, caracterizando-se o “estado metafísico” aquele em que o homem se esforça por explicar a natureza íntima das coisas por entidades, e no qual domina a tendência a argumentar em lugar de observar, chegando Sully Prudhomme a afirmar que “a metafísica começa onde a clareza termina”. O mesmo ocorre com o criticismo neokantiano que nega a possibilidade de um conhecimento científico do suprassensível, reconhecendo, portanto, a impotência última do saber conceituai proporcionado pela ciência.

Finalmente, a metafísica é reduzida a uma seção da filosofia, para fins pedagógicos, designando coletivamente tudo o que não cabia nas outras seções. Assim, o que não era psicologia, nem lógica, nem moral e nem teodiceia, passou a ser metafísica, como se pode ver em Paul Janet, para quem a questão fundamental da metafísica estava nas “relações do sujeito e do objeto, do pensamento e do ser”.

Não obstante essa tradição, mais confusionista que negativista, que tem sido o maior obstáculo para que a metafísica assuma um sentido que possa ser comumente aceito, hoje em dia o movimento de “retorno à metafísica” se consolida cada vez mais, graças a três grupos de motivos, assinalados por Julián Marías:

a) Os primeiros motivos são inicialmente extra-filosóficos, em particular teológicos, e significam uma vontade de reivindicar a metafísica e justificá-la, quase sempre em suas formas escolásticas e como reação contra a filosofia moderna (não só a que é especificamente adversa à metafísica, mas em sua totalidade), sobressaindo-se os nomes de Bolzano, Rosmini. Gioberti, Gratry, Brentano e os iniciadores do movimento neotomista, Liberatore, Sanseverino E Kleutgen.

b) Os segundos, cujo antecedente inicial se encontraria em Bolzano e sua plenitude em Brentano, significam a reconquista da objetividade: através de Marty, Meinong, Von Ehrenfels e, sobretudo, Husserl, se deságua numa filosofia que, ao superar todo subjetivismo e todo psicologismo, enfrenta-se novamente como tema de realidade.

c) O terceiro grupo de motivos é particularmente sutil: trata-se do descobrimento de certas realidades ou aspectos da realidade cujo caráter geral é a irredutibilidade: o “fato primitivo” de Maine De Biran, a “existência” em Kierkegaard, a tríplice realidade do “sentido” em Gratry, a “vida” e a “história” em Dilthey. Estas realidades, que de certo modo provocam uma crise irracionalista na filosofia, fazem-na transcender dos supostos cientificistas, explicativos e positivistas, e atiram-na ante problemas radicais.

Seu primeiro problema, adverte Julián Marías, é o da definição da metafísica. A metafísica não pode ser definida previamente por seu conteúdo, pois isto a invalida automaticamente com referência à sua pretensão; a única definição possível consiste em determinar sua função, o que dela reclamamos. Ora, o homem, para poder viver, necessita de uma certeza fundamental, e não de certezas particulares ou parciais. Na medida em que o homem não tem essa certeza fundamental, busca-a, já que não lhe é dada mas tem que fazê-la. A essa tarefa a que o homem, em determinadas situações, se vê forçado, chama Julián Marías “fazer metafísica”; portanto, a metafísica é o que nessa tarefa se faz, ou seja, uma certeza fundamental e última que o homem tem que fazer porque não se encontra nela e necessita-a para viver. Disto resulta que a metafísica não é uma certeza em que “se está”, mas uma certeza a que “se chega”.

Assim, a metafísica pode ser definida, ainda que apenas de modo provisório, como o saber teórico, possível ou efetivo, “do que é em si” como o “absoluto”, objeto supremo da metafísica, o ser das coisas e seu sentido. Daí ser a metafísica a investigação científica da realidade em suas relações mais gerais e em seus fundamentos supremos; seu fim é a aquisição de uma concepção homogênea do mundo, caracterizando-se, por um lado, por sua tendência universalista, e por outro identificando-se com a filosofia. Isto porque, por exemplo, enquanto as ciências naturais e culturais, como ciências particulares da realidade, se ocupam só de certos setores parciais desta realidade, a metafísica, como ciência geral do real, ocupa-se do mundo em sua totalidade, da realidade íntegra. Neste sentido compreende também as partes, não como tais, mas em relação com o conjunto. Por isso nos fatos e fenômenos há sempre uma referência metafísica, ainda que residual, que está sempre presente em qualquer manifestação do pensamento filosófico, mesmo naqueles momentos larvados do apogeu do positivismo, quando então ocorria o que se poderia chamar de metafísica dos antimetafísicos.

Quem melhor exprimiu essa ambivalência foi Dilthey que, não obstante se opor frequentemente à metafísica enquanto pretende ser um saber rigoroso do mundo e da vida, essa oposição jamais significou negar o fato da necessidade metafísica sentida de modo constante pelo homem. Para Dilthey a metafísica é, ao mesmo tempo, impossível e inevitável, pois o homem não pode permanecer num relativismo absoluto nem negar a condicionalidade histórica de cada um de seus produtos culturais. Daí a grande antinomia entre a pretensão de vali-dez absoluta que tem todo pensamento humano e o fato da condição histórica do pensar efetivo. Esta antinomia se apresenta antes de tudo como uma contraposição “entre a consciência histórica atual e todo gênero de metafísica como mundividência científica”. É a metafísica, pois, uma pesquisa onde o problema “usurpa” — no dizer de Jean Wahl — aquele mesmo que o propõe. Ou, consoante Heidegger, “nenhuma questão metafísica pode ser proposta sem que o proponente, como tal, deixe de envolver-se, a si mesmo, nessa questão”, interpretando-se a inquietude metafísica, ao ver de Gabriel Marcel, “como certa recusa em abdicar, quando o objeto é precisamente aquilo diante do que abdico”. [LWVita]