Filosofia – Pensadores e Obras

experiência

VIDE aisthesis empeiria

(do lat. experire, experimentar; experientia, experiência).

1.° Conhecimento adquirido pela observação e não pela razão. É da experiência e só dela, que o empirismo (Locke, Hume) faz provir todos os conhecimentos humanos; a essa doutrina opõe-se o racionalismo clássico (Descartes, Kant), para o qual a experiência sensível, ainda que indispensável, não é suficiente, e nada seria sem o pensamento, permitindo-nos este apreender e ordenar a experiência concreta. Desse ponto de vista, opõe-se a experiência à razão (“E a tudo o que é inato”).

2.° No plano moral, conjunto do adquirido que se constitui ao longo da vida de um indivíduo ou de toda a humanidade. Nesse sentido, o homem que tem experiência, simultaneamente porque viveu e porque conhece a história dos homens, dela tirando ensinamentos, é um “sábio”, apto a dar, segundo Kant, “conselhos de prudência” capazes de nos trazer felicidade. O “savoir-faire”, que se baseia na experiência e no conhecimento dos homens, pode também desenvolver em nós a “habilidade” capaz de “fazer-nos vencer” na vida. Entretanto, a moral propriamente dita é totalmente independente da experiência; baseia-se num sentimento que é independente de qualquer experiência e nos ordena, de maneira absoluta, que tenhamos determinada conduta, quaisquer que sejam a situação e as circunstâncias particulares que envolvem nosso ato (Kant). Pode haver empirismo em negócios ou na política, mas não há empirismo na moral. [Larousse]


Em linguagem corrente (1), experiencia designa, de ordinário, o conhecimento obtido pelo convívio reiterado com homens e coisas, em oposição ao saber adquirido nos livros. A acepção filosófica é mais vasta. Segundo ela (2), experiência denota geralmente toda percepção simples produzida por uma impressão externa. Como esta só é naturalmente possível mediante a ação de corpos exteriores sobre os órgãos sensoriais, a experiência, em sentido próprio, é característica da alma unida ao corpo, o que não quer dizer que seja necessariamente algo de pura natureza sensível (cf. mais abaixo). (Quando se fala de “experiência mística” suscitada por uma ação imediata de Deus sobre o espírito, trata-se de uma ampliação da acepção usual). Dando ao vocábulo sentido mais restrito, Aristóteles não considera experiência a percepção isolada, mas a experiência (3) (empeiria) segundo ele é constituída pela reunião de muitas percepções e recordações de casos análogos, na qual se fixa o comum numa imagem esquemática. Outros dão o nome de experiência (4) ao juízo formulado à base da percepção, ao juízo de experiência. Para Kant o conceito de experiência (5) é ainda mais restrito; para ele, nem todo juízo de percepção é experiência, mas só aquele em que entra um conceito a priori do entendimento e que, por isso, goza de valor universal (criticismo).

Distinguimos entre experiência externa e experiência interna. “Experiência externa” significa percepção de objetos e processos corpóreos mediante os sentidos externos (Conhecimento sensorial); “experiência interna” designa o viver conscientemente os estados e operações internas (psíquicas) próprias (consciência); também esta última é experiência no sentido antes descrito, e não pura visão intelectual da essência e dos atos da alma, visto ser essencialmente condicionada por influxos que de fora se exercem sobre a alma. — Sob outro ponto de vista, distinguimos a experiência corrente, usual, pré-científica, e a experiência científica; esta última é ou observação planejada dos processos naturais por si mesmos decorrentes, geralmente com o auxílio de instrumentos especiais, ou experimentação, tentativa, na qual as condições de observação são artificialmente determinadas.

O conteúdo da experiência (“dado” nela) é, por vezes, caracterizado como puramente sensível. Tal maneira de se expressar deve ser evitada, se com isso se pretende negar todo conteúdo intelectualmente apreensível no dado (intelligibile in sensibili). De fato, apreendemos, na experiência interna imediata, não só nossos próprios atos espirituais e neles o nosso “eu”, como também — decerto dentro de limites estreitos — a essência dos objetos dos sentidos (conhecimento da essência), unicamente cognoscível pela inteligência. Nossa experiência humana é, portanto, de natureza sensitivo-intelectual. Sem dúvida, ao que na experiência se apreende só por meio dos sentidos aplica-se, de preferência, o qualificativo de (puramente) “empírico”. Em todo caso, a experiência dá sempre somente fatos particulares, não objetos universais e necessários. — Não se deve superestimar à ligeira a importância da experiência. Dela procedem todos os nossos conceitos primitivos (formação do conceito), de sorte que todo pensar está ligado a ela. Nomeadamente todo conhecimento existencial estriba na experiência imediata ou se infere dela. No entanto, a experiência não é, como o empirismo pretende, a única fonte primordial do conhecimento, porque ela não logra explicar os princípios do conhecimento (princípio do conhecimento) universalmente válidos e necessários, nem fundamentar exclusivamente o valor do conhecimento indutivo (indução). — De Vries. [Brugger]


Dada a multiplicidade de sentidos do termo experiência, descreveremos vários sentidos capitais do vocábulo através da história da filosofia, sublinhando pelo menos um destes dois: a) a experiência como confirmação, ou possibilidade de confirmação empírica (e muitas vezes sensível) de dados, e b) a experiência como fato de viver algo dado anteriormente a qualquer reflexão ou predicação. Na filosofia platônica, a distinção entre o mundo sensível e o mundo inteligível equivale, em parte, à distinção entre experiência e razão. a experiência aparece como conhecimento daquilo que muda, como uma opinião mais do que como um conhecimento propriamente dito. Em Aristóteles, a experiência fica mais bem integrada dentro da estrutura do conhecimento. Para ele, a experiência surge da multiplicidade numérica de recordações; a persistência das próprias impressões é o tecido da experiência à base do qual se forma a noção, isto é, o universal. A experiência é, pois, a apreensão do singular; sem esta apreensão prévia, não haveria possibilidade de ciência. Além disso, só a experiência pode proporcionar os princípios pertencentes a cada ciência; devem observar-se, primeiro, os fenômenos e ver o que são para proceder, depois, a demonstrações. Mas a ciência propriamente dita só o é do universal, o particular constitui o material e os exemplos. Tal como Platão, Aristóteles destaca a importância da experiência na prática.

Para muitos autores medievais, predominam dois sentidos de experiência: como amplo e extenso conhecimento de casos, que dá lugar a certas regras e a certos conhecimentos gerais, e como apreensão imediata de processos internos. Pode dizer-se que o primeiro sentido alude a uma experiência científica, e o segundo a uma experiência psicológica. No primeiro caso, a experiência é, como em Aristóteles, o ponto de partida do conhecimento do mundo exterior. No segundo caso, pode ser ponto de partida do conhecimento do mundo interior, mas também base para a apreensão de certas evidências de caráter não natural. Assim a experiência pode designar a vivência interna da vida, da e, em última análise, da vida mística. Por outro lado, no que se refere aos objetos naturais, distingue-se entre uma experiência vulgar e uma experiência propriamente científica.

Na época moderna, sobressai Francis Bacon pela sua insistência em defender que a experiência é não só o ponto de partida do conhecimento mas também o fundamento último do conhecimento. “A melhor demonstração consiste, até agora, na experiência, sempre que não ultrapasse a experimentação efetiva”, afirma numa das suas fórmulas mais conhecidas (Novum Organon).

A noção de experiência desempenha um papel fundamental na teoria kantiana do conhecimento. Kant admite, com os empiristas, que a experiência constitui o ponto de partida do conhecimento. mas isto quer apenas dizer que o conhecimento começa com a experiência, não que procede dela. A experiência aparece como a área dentro da qual se torna possível o conhecimento. Segundo Kant, não é possível conhecer nada que não esteja dentro da “experiência possível”. A crítica da razão tem precisamente como objeto examinar as condições da possibilidade da experiência, que são idênticas às condições das possibilidades dos objetos da experiência (Crítica da Razão Pura). O exame das condições a priori da possibilidade da experiência determina como podem formular-se juízos universais e necessários sobre a realidade como aparência. Apoiando-se em Kant, os idealistas julgaram que a tarefa da filosofia é dar razão de qualquer experiência ou, se se quiser, dar razão do fundamento de qualquer experiência.

Segundo Fichte, (primeira introdução à teoria da ciência), “na experiência estão inseparavelmente unidas a coisa, aquilo que deve estar determinado independentemente da nossa liberdade e pelo qual deve dirigir-se o nosso conhecimento, e a inteligência, que é aquela que deve conhecer. O filósofo pode abstrair de uma das duas e então abstraiu da experiência e elevou-se acima dela. se abstrair da primeira, obtém-se uma inteligência em si, isto é, abstraída da relação com a experiência; se se abstrair da última, obtém uma coisa em si, isto é, abstraída do que se apresenta na experiência; uma ou outra como fundamento explicativo da experiência. O primeiro processo chama-se idealismo; o segundo, dogmatismo”. Há, pois, dois modos de dar razão da experiência; adoptar um deles é decidir-se por um deles. O filósofo que prefere a liberdade à necessidade decide-se a favor do modo de dar razão da experiência que se chama idealismo. Para Hegel, se a experiência é o modo como o Ser aparece enquanto surge na construção da ciência e se constitui por meio desta. A noção de experiência não é, pois, subjectiva nem objetiva; trata-se da experiência absoluta.

No nosso século, procurou averiguar-se, entre outros problemas ligados à experiência, se há algum tipo de experiência que seja prévio a todos os outros. Note-se que quando Bergson admitiu a existência de “dados imediatos da consciência” aceitou a possibilidade de uma experiência do “imediatamente dado”. Esta experiência primária é a “intuição”. É uma experiência análoga àquilo a que anteriormente se chamara a “experiência interna”, mas não é só experiência de si mesma mas também de tudo o que é dado sem mediação. Husserl admitiu também uma experiência primária, anterior à experiência do mundo natural: é a experiência fenomenológica. Há, em Husserl, um tipo de experiência que por vezes se identificou com o fato de os objetos individuais (experiência e razão) serem dados com evidência. Mas nenhuma experiência é isolada; qualquer experiência está, por assim dizer, metida num “horizonte de experiência”. [Ferrater]


L. Experientia.

Como o francês expérience, a palavra portuguesa experiência é empregada em sentido abstrato e geral, que corresponde ao It. Esperienza, ao I. Expérience e ao A. Erfahrung. Em sentido concreto (ato de experimentar, de praticar uma experiência, experimentação), corresponde ao It. Esperimento e ao I. e A. Experiment.

Em sentido geral, devemos entender por experiência todo conhecimento obtido. E a experiência considerada como a “única fonte do conhecimento” importa em negar as “ideias inatas” e os “princípios inatos” de Descartes e seus discípulos, e também as “formas a priori” da sensibilidade (espaço e tempo) de Kant. São muitos os aspectos da experiência: o lógico, o psicológico, o das ciências físicas, químicas, biológicas, sociológicas.

Lóg.: Designa o método experimental, e assim abrange tanto a experiência como a observação. Mesmo que se trate de experiência quantitativa, o valor da experiência só tem função quando o pensamento lógico consegue interpretá-lo.

Psic.: Faculdade de conhecer os fenômenos pela experiência externa, isto é, percepção, ou pela experiência interna, isto é, consciência.

Físc: Segundo Mach, Connaissance, 212, a indagação autônoma de novas reações e de novas relações. Foi das ciências mais caracteristicamente positivas, como a física, que a experiência se transplantou para a psicologia. V. Experimentação.

— “A experiência é a fonte única da verdade: só ela ensinará alguma coisa de novo; só ela nos dará a certeza.” Poincaré, S. H., 167 a 172.

— “São vãs e cheias de erro as ciências que não nascem da experiência, mãe de toda certeza.” Leonardo da Vinci, ap. Dampier-Whetham, Ciências, 126.

— “Toda experiência é um ato de consciência.” Höffding, Esquisse, 23. [Soares]


(gr. empeireia; lat. experientia; in. Experience; fr. Experience, al. Erfahrung; it. Esperienzà).

Este termo tem dois significados fundamentais: 1) a participação pessoal em situações repetíveis, como quando se diz: “x tem experiência de S”, em que S é entendido como uma situação ou estado de coisas qualquer que se repita com suficiente uniformidade para dar a x a capacidade de resolver alguns problemas; 2) recurso à possibilidade de repetir certas situações como meio de verificar as soluções que elas permitem: como quando se diz “a experiência confirmou x”, ou então: “a proposição p pode ser confirmada pela experiência”. No primeiro desses dois significados, a experiência tem sempre caráter pessoal e não há experiência onde falta a participação da pessoa que fala nas situações de que se fala. No segundo significado, a experiência tem caráter objetivo ou impessoal: o fato de a proposição p ser verificável não implica que todos os que fazem tal afirmação devam participar pessoalmente da situação que permite confirmar a proposição p. O elemento comum dos dois significados é a possibilidade de repetir as situações, e isso deve ser considerado fundamental na significação geral do termo. Essa determinação implica que: d) esse termo não é usado com propriedade quando se fala de uma experiência “excepcional” ou até mesmo “única”, a menos que esses adjetivos sejam (como de fato muitas vezes são na linguagem comum) exageros retóricos para indicar a pouca frequência com que certa situação se repete ou a improbabilidade de que ela se repita para o mesmo indivíduo; b) esse termo não se restringe necessariamente a indicar situações “sensíveis”, mas pode indicar situações de qualquer natureza em que se possa contar com suficiente repetibilidade. Além disso, o uso desse termo no significado 2 supõe uma condição fundamental, sem a qual a experiência não pode exercer nenhuma ação de averiguação; qual seja: c) a experiência a que se recorre para a averiguação deve ser independente das crenças que é chamada a averiguar, de tal modo que as crenças não acabem por determinar a averiguação. Sem essa importante limitação, uma ilusão repetida ou repetível poderia ser assumida como prova de validade. Portanto, pode-se falar (como muitas vezes se faz na linguagem contemporânea) de “experiência religiosa” ou “experiência mística”, etc, só no significado 1) do termo, mas essas fôrmas de experiência não podem ser utilizadas para verificar as crenças de que partem, pelo fato de que são inteiramente dependentes de tais crenças e não podem ocorrer sem elas. Dos dois significados enunciados, o 2° é o comum a todas as correntes do empirismo , ao passo que o le é historicamente anterior e ainda hoje é compartilhado por algumas correntes da filosofia.

1) A primeira e mais evidente característica da primeira noção de experiência é constituída pela oposição entre, por um lado, arte, e ciência ou conhecimento racional, por outro. Essa contraposição foi claramente enunciada por Platão a propósito da medicina. Platão diz que os médicos dos escravos “não averiguam as doenças” e “prescrevem o que lhes parece melhor pela experiência como se tivessem uma ciência perfeita”, comportando-se “como um tirano soberbo”, O médico dos homens livres, ao contrário, “estuda as doenças, mantém os doentes desde o princípio em observação, procura a natureza do mal, estabelece relações estreitas com o doente e com seus familiares e, ao mesmo tempo, aprende com os doentes e ensina-lhes o que é possível” (Leis, IV, 720 c-d). O empirismo moderno consideraria compatível com a experiência precisamente o comportamento que, nesse trecho, Platão contrapõe à própria experiência Mas essa observação mostra a diferença que separa os dois significados de experiência aqui enunciados. Aristóteles deu forma clássica a essa doutrina no primeiro capítulo de Metafísica e no último de Analíticos posteriores. Sua tese fundamental é a redução da experiência à memória. Aristóteles diz que todos os animais têm “uma capacidade seletiva inata”, que é a sensação. Em alguns deles, a sensação não persiste; para estes, não há conhecimento fora da sensação. Outros, porém, finda a sensação, podem conservar alguns vestígios dela na alma. Nesse caso, depois de muitas sensações dessa natureza, determina-se em alguns animais uma espécie diferente de conhecimento, que é o conhecimento racional. De fato, “a partir da sensação desenvolve-se aquilo que chamamos de lembrança, e da lembrança repetida de um mesmo objeto nasce a experiência, assim, lembranças que são numericamente múltiplas constituem uma experiência. Dessa experiência ou do conceito universal que se fixou na alma como uma unidade que, estando além da multiplicidade, é una e idêntica em todas as coisas múltiplas, nasce o princípio da arte e da ciência: da arte, em relação ao devir; da ciência, em relação ao ser” (An. post., II, 19, 100 a 4). Assim entendida, a experiência contrapõe-se à arte e à ciência, ao mesmo tempo em que é condição delas. É condição delas porquanto é ela que suscita a inteligência dos primeiros princípios da arte, da ciência. “Esses hábitos”, diz Aristóteles, “não subsistem em nós separadamente, nem são produzidos por outros hábitos mais cognoscitivos, mas pela própria sensação, do mesmo modo como, p. ex., se um exército está fugindo e um soldado pára, pára também o soldado que o segue e depois o outro, e assim por diante, até o princípio da fila” (An. post., II, 19, 100 a 9). Nessa comparação, a parada do primeiro soldado é a permanência de certa sensação na memória (p. ex., do homem Cálias), a parada de outro soldado depois de várias filas já é um conceito (p. ex., homem), e a parada do princípio da fileira corresponde aos conceitos últimos e simples, que são os princípios da arte e da ciência e intuições pelo intelecto (Ibid., II, 19, 100 a 9). Note-se que o próprio uso do verbo “parar” com que Aristóteles expressa a persistência ou a estabilidade da lembrança — que constitui a experiência e por fim leva à inteligência dos princípios — corresponde àquilo que é a característica objetiva da experiência: a possibilidade de repetir as situações. Pela ação condi-cionante que a experiência exerce sobre a inteligência dos princípios, Aristóteles chega a dizer que “conseguimos reconhecer os princípios primeiros com a indução; e, com efeito, a sensação produz desse modo o universal” (Ibid., 100 b 3 ss.). Mas é claro que entre um soldado qualquer parar e a primeira fila de soldados parar há uma diferença radical: a parada da primeira fila é a inteligência dos primeiros princípios, que são necessariamente verdadeiros, independentemente de qualquer confirmação que a experiência possa dar. Eles são, aliás, indiferentes à confirmação ou à refutação e justamente por isso são objeto de um órgão específico, que é o intelecto. O reconhecimento desse órgão obviamente é sugerido a Aristóteles pela exigência de fundar a validade necessária dos primeiros princípios, ou seja, de tornar esses princípios independentes de qualquer confirmação ou refutação empírica. Esta estabelece o quase sempre, não o sempre. Portanto, em face da inteligência, que apreende os princípios, o processo preparatório que vai das sensações à experiência é puramente acidental e só apresenta a vantagem de ser o mais cômodo e óbvio para o homem. Mas para Aristóteles a experiência permanece o que era para Platão: consiste em conhecer o fato que ocorre repetidamente, mas não a razão pela qual ocorre: assim, é conhecimento do particular e não do universal, de tal modo que saber e conhecer cabem à arte e à ciência, não à experiência (Met., I, 1, 981 a 24). Portanto, em Aristóteles está totalmente ausente a noção (própria do significado 2), de experiência como possibilidade de verificação e de averiguação das verdades alcançáveis pelo homem. Aristóteles não pode, portanto, ser chamado empirista. Para ele, a experiência se reduz à repetição frequente, mas não absolutamente constante de certas situações memorizáveis.

Ao longo da história da filosofia, esse conceito de experiência permanece como uma das alternativas possíveis, cujas características às vezes também influenciam o outro conceito. Os escritores medievais, em geral, o repetem (Tomás de Aquino, S. Th., I, q. 54, a. 5; II, I, q. 40, a. 5, etc); como o repetem Spinoza (Et., II, 40, scol. 2) e Leibniz (Théod., Disc, § 65; Monad., §§ 28-29).

2) O recurso à experiência como critério ou cânone da validade do conhecimento é característico do empirismo, distinguindo-o do sensacionismo. Este consiste simplesmente em asserir a natureza intuitiva, portanto privilegiada, do conhecimento sensível, mas sem que tal conhecimento se constitua em guia e controle do conhecimento em geral. Os estoicos, p. ex., foram sensacionistas, mas não empiristas; os epicuristas, que, ao contrário, elaboraram e defenderam uma teoria da indução, foram também empiristas. No âmbito desse significado da palavra, é possível distinguir duas interpretações fundamentais, quais sejam: a) teoria da experiência como intuição, b) teoria da experiência como método.

a) A teoria da experiência como intuição considera a experiência como o relacionar-se imediato com o objeto individual, usando como modelo de experiência o sentido da visão. Desse ponto de vista um objeto “conhecido por experiência” é um objeto presente em pessoa e na sua individualidade. A tese fundamental dessa concepção é a seguinte: existem unidades empíricas elementares. A concepção leva a admitir que existem dados elementares originários aos quais é confiada em última análise a função de verificação do conhecimento. Por sua vez, a existência das unidades empíricas elementares permite estabelecer uma classe privilegiada de proposições, que são as que exprimem diretamente essas unidades.

O recurso à experiência, quando formulado pela primeira vez no plano filosófico, no séc. XIII, foi um recurso à intuição. “Sem a experiência”, dizia Roger Bacon, “nada se pode conhecer suficientemente. Os modos de conhecer são dois: a argumentação (argumentum) e a experiência. A demonstração conclui e nos faz concluir a questão, mas não dá certezas e não remove a dúvida, já que a alma não se aquieta na intuição da verdade se não a encontrar por via da experiência” (Opus Maius, VI, 1). Essas palavras de Bacon já incluem o recurso à experiência como averiguação e norma da verdade humana. Mas também incluem o conceito intuitivo da experiência. É verdade que, para Bacon, a intuição não é somente sensível: ao lado da experiência sensível, que é fonte ou critério das verdades naturais, Bacon admite uma experiência “interna” ou sobrenatural, devida à iluminação divina e que é a fonte das virtudes sobrenaturais. Mas o caráter intuitivo da experiência permaneceria mesmo depois que a experiência sobrenatural foi posta de lado pelo desenvolvimento ulterior do empirismo. Segundo Ockham, a experiência, que é “o princípio da arte e da ciência”, é o conhecimento intuitivo perfeito, que tem por objeto as coisas presentes, diferenciando-se por isso do imperfeito, que tem por objeto as coisas passadas (In Sent., II, q. 15, H; Prol., q. 1, 2). Intuitivo é o conhecimento “era virtude do qual se pode saber se uma coisa existe ou não. Se existe, imediatamente o intelecto julga que existe. Além disso, intuitivo é o conhecimento mediante o qual se sabe que uma coisa inere em outra, que um lugar dista de outro, que uma coisa tem certa relação com a outra ou, em geral, uma verdade contingente qualquer, especialmente a respeito do que está presente” (Ibid., Prol., q. 1, Z). Ockham considera que se pode ter conhecimento intuitivo não só das coisas exteriores, mas também dos estados internos do homem, como as intelecções, as volições, a alegria, a tristeza e semelhantes, de que o homem pode ter experiência em sisi mesmo, mas que não são sensíveis para nós” (Ibid., Prol. q. 1, HH). Essa segunda espécie de conhecimento intuitivo corresponde exatamente à reflexão de Locke. No espírito do ockhamismo, Jean Buridan declarava imperfeita a arte “doutrinal”, ou seja, a que despreza a experiência; essa arte, notava ele, não conhece o significado dos seus princípios, nem das suas conclusões, sendo perfeita apenas a arte que conhece pela experiência tanto os princípios, que a arte doutrinal se limita a pressupor, quanto as conclusões particulares a que eles conduzem (In Met., I, q. 8). A limitação da experiência à intuição sensível foi reforçada, a partir do Renascimento, pelo anti-racionalismo. Como as verdades pretensamente válidas, sem verificação ou averiguação, eram atribuídas à “razão”, a exigência de averiguação implícita no recurso à experiência parecia só poder voltar-se para a intuição sensível. Esta aparecia como fonte de verdades ou de procedimentos independentes da. razão, logo capaz de exercer uma ação de freio ou limite sobre as pretensões da razão. A partir do séc. XVI, o recurso à experiência passa a ter significado claro de limite ou negação das pretensões da razão. Telésio justificava o sensacionismo identificando “o que a natureza revela” com “o que os sentidos testemunham” (De rer. nat., proêmio), argumentando que a natureza se revela à parte do homem que é natureza, ou seja, à sensibilidade. E Leonardo da Vinci afirmava que “a sabedoria é filha da experiência” e que a experiência nunca engana, apesar de poder enganar-se o juízo sobre ela (Cod. Atl., foi. 154 r). Mas tanto em Leonardo da Vinci quanto em Galilei, ao lado da experiência sensível aparece outro fundamento ou cânon do conhecimento humano: o raciocínio matemático. Ao lado da “sensata experiência”, Galilei colocava explicitamente as “demonstrações necessárias” da matemática como outra via através da qual a natureza se revela ao homem (Carta à Grand. Cristina, em Op., V, p. 316). Essa já era uma limitação importante à interpretação da experiência como intuição sensível, pois as demonstrações matemáticas não transcendem o domínio da natureza (que, segundo Galilei e Kepler, está escrita inteiramente em caracteres matemáticos), sendo portanto constitutivas da experiência natural. Aliás, é significativo que o verdadeiro fundador do empirismo moderno, Francis Bacon, não seja de modo algum sensacionista e que, para ele, o guia do conhecimento humano não é a simples experiência, que procede ao acaso e sem diretrizes, mas o experimento, que é a experiência guiada e disciplinada pelo intelecto (Nov. Org., 1,82). A interpretação intuitiva da experiência deveria, porém, prevalecer no empirismo setecentista graças a Locke e Hume. A teoria da experiência de Locke pode ser resumida nos seguintes pontos: 1)’redução da experiência à intuição das coisas externas (sensação) ou dos atos internos (reflexão); 2S resolução da sensação e da intuição em elementos simples, entendidos cartesianamente como ideias, 3) uso da noção de experiência como critério ao mesmo tempo limitativo e fundamentador do conhecimento humano, já que este não pode ir além da experiência que lhe fornece as ideias e, ao mesmo tempo, recebe da experiência, com o material indispensável e com os nexos que esse material apresenta, o critério da sua validade (Ensaio, IV, cap. 3-4). Esse último aspecto é enfatizado por Locke inclusive como norma limitativa das pretensões cognoscitivas do homem porque assumido como limite da possível extensão do conhecimento humano. Na realidade, se considerarmos o fato de Locke ter imposto esse limite não só ao domínio do conhecimento, mas também ao da política, da moral e da religião, campos em que o conceito de relação direta com o objeto não tem sentido, deveremos concluir que, no conjunto de sua filosofia, ele realizou uma atitude empirista que vai além de sua teoria da experiência. Com Locke, delineou-se a concepção de experiência como totalidade do mundo humano, ou seja, como conjunto de sistemas de averiguação instituíveis nele, que é a característica da concepção metódica da experiência. Mas está claro que em Locke também se encontra, pela primeira vez, a definição das unidades empíricas elementares, que são as ideias e as relações imediatas entre as ideias. A mesma assunção, com outras palavras, encontra-se na teoria de Hume. O ponto de vista deste filósofo está expresso com toda clareza nas últimas frases de Investigação sobre o intelecto humano: “Se tomarmos um volume qualquer, como p. ex. de teologia ou de metafísica escolástica, perguntaremos: contém algum raciocínio abstrato sobre quantidades ou números? Não. Contém algum raciocínio experimental sobre questões de fato ou de existência? Não. Então, ponha-o no fogo, pois só contém sofismas e ilusões.” De fato, para Hume, todos os objetos da investigação humana dividem-se em duas grandes classes: as relações entre as ideias e as coisas de fato. As relações entre ideias “podem ser descobertas com uma operação pura do pensamento, sem depender de coisas que existem em algum lugar do universo. Ainda que não existisse nem sequer um círculo ou um triângulo na natureza, as verdades demonstradas por Euclides conservariam certeza e evidência” (Inq. Conc. Underst., IV, 1). Portanto, as verdades dessa natureza (que constituem a geometria, a álgebra, a aritmética e, em geral, a matemática) não precisam de averiguação, mas sua verificação está à disposição do homem a qualquer momento e sem recurso a confirmações experimentais. No que concerne aos conhecimentos da realidade de fato, ao contrário, o seu único fundamento é a relação entre causa e efeito. Mas, por sua vez, o fundamento dessa relação é a experiência, e se perguntarmos qual é o fundamento das conclusões tiradas da experiência, a resposta a ser dada, segundo Hume, é que esse fundamento nada tem de racional, mas é simples instinto. De fato, “todas as nossas conclusões experimentais fundam-se na suposição de que o futuro será conforme ao passado. Mas buscar a prova desta última suposição com argumentos prováveis ou referentes à existência deve ser, evidentemente, um círculo vicioso, e tomar por admitido o que é duvidoso” (Inq., cit., IV, 2). Portanto, o que nos resta é o instinto, a aconselhar-nos a aceitar como boa uma inferência — a do passado para o futuro — que não pode ter justificação racional nem empírica. O fundamento dessa crítica é a redução da experiência às impressões e à relação entre as impressões, relação que também é intuída, ou seja, percebida aqui e agora, portanto, desprovida de qualquer significado ou referência que transcenda a instantaneidade das impressões. Hume operou a mais radical redução da . experiência à intuição, porque reduziu a intuição a intuição instantânea, que nada significa fora de si. Desse ponto de vista, a construção de procedimentos ou de esquemas de previsão é impossível: como censurou Kant, Hume tornava impossível a formação de uma ciência qualquer. Todavia, foi justamente a teoria da experiência de Hume que, através de Mach, tornou-se o pressuposto do neo-empirismo contemporâneo. Mach resolvera o fato empírico em elementos considerados últimos e originários: as sensações. Um fato físico ou um fato psíquico não passa de um conjunto relativamente constante de elementos simples: cores, sons, calor, pressão, espaço, tempo, etc. Desse ponto de vista, a diferença substancial entre o físico e o psíquico desaparece. “Uma cor”, diz Mach, “é um objeto físico enquanto considerarmos, p. ex., sua dependência das fontes luminosas (outras cores, calor, espaço, etc), mas se a considerarmos em sua dependência da retina é um objeto psíquico, uma sensação” (Die Analyse der Empfindungen, 9a ed., 1922, p. 14). Essa doutrina conferia à noção de unidade empírica elementar a forma com a qual ela exerceu e ainda exerce função central no neo-empirismo contemporâneo. Wittgenstein valeu-se dela em Tractatus logico-philosophicus (1922). Nessa obra, aceitava-se a distinção de Hume entre verdades de razão e verdades de fato, exprimindo-a na forma da oposição entre as proposições da matemática e da lógica, que são “analíticas”, “tautológicas”, “não dizem nada” (Tractatus, 6,1; 6,11), e as proposições elementares das ciências naturais que representam os “estados de coisas” (Sachverbalte) ou “fatos atômicos” (Ibid., 4, 1), os quais nada mais são do que as impressões de Hume ou as sensações de Mach: unidades empíricas elementares. Por sua vez, em Visão lógica do mundo (1928), Carnap tentava reduzir todo o conhecimento científico aos termos da experiência intuitiva, e a unidade empírica elementar a que recorria era a “Vivência elementar” (Elementarerlebnis), considerada como um elemento neutro, anterior à distinção entre objetivo e subjetivo (Aufbau, § 67), segundo o modelo da “sensação” de Mach. Mas essa concepção de experiência, precisamente como a de Hume (que, no fundo, era idêntica), impossibilitava a ciência ao impossibilitar a formulação de regras para a previsão dos fenômenos. Foi essa, justamente, a crítica dirigida a Carnap pelo próprio Círculo de Viena (cf. K. Popper, Logik der Forschung, 1934; cf. a nova edição inglesa, The Logic of Scientific Discovery, 1959). Consequentemente, Carnap modificou seu conceito de verificabilidade empírica. No texto Testability and Meaning (1936), diz ele: “Os positivistas acreditavam que todo termo descritivo da ciência podia ser definido por termos de percepção e, portanto, que todo enunciado da linguagem pudesse ser traduzido em um enunciado sobre as percepções. Essa opinião foi expressa nas primeiras publicações do Círculo de Viena, inclusive na minha, de 1928, mas hoje penso que não era de todo adequada: a redutibilidade pode ser afirmada, mas não a ilimitada possibilidade de eliminação e retradução” (“Testability and Meaning”, em Readings in the Phil. of Science, 1953, p- 67). Esse reconhecimento equivale a uma restrição da tese da verificabilidade empírica dos enunciados científicos, tese que Carnap exprime dizendo: “Todo predicado descritivo da linguagem da ciência é confirmável com base em predicados-coisa observáveis” Ubid., p. 70). A confirmabilidade, com efeito, é uma exigência mais fraca e menos rigorosa do que a experimentabilidade: um enunciado pode ser confirmável sem ser experimentável: isso ocorre, por exemplo, quando sabemos que uma observação x nos daria condições de confirmar ou invalidar o enunciado, mas não estamos em condições de efetuar a observação x. Mas essa restrição, que sem dúvida amplia o domínio dos enunciados significativos e dá à ciência o direito de empregar enunciados que não tem condições de pôr à prova, não constitui uma retificação do conceito de experiência. O complexo aparato que Carnap propõe como instrumento de redução de qualquer enunciado científico a enunciado experimentável ou, pelo menos, confirmável, apoia-se na crença de que existe correspondência estreita entre um enunciado verdadeiro e determinada experiência intuitiva. O modo como ele define o predicado observável realmente faz referência à experiência imediata, visto que Carnap declara, p. ex., que um campo elétrico não é absolutamente observável (Ibid., pp. 63-64). Em outros termos, nessa segunda fase do pensamento de Carnap, os “predicados observáveis” constituem as unidades empíricas elementares que servem de fundamento aos enunciados sintéticos. Portanto, nessa segunda fase, com a distinção entre enunciados analíticos e enunciados sintéticos, permanece ainda a noção intuitiva de experiência e, com isso, a crença na existência de unidades empíricas elementares. O que mudou foi apenas a qualificação de tais unidades elementares, que deixam de ser experiências subjetivas ou percepções, mas determinações objetivas ou qualidades sensíveis. Essa fase do pensamento de Carnap pode ser considerada como o desenvolvimento máximo da noção de experiência como intuição. De fato, o reconhecimento, por parte de Quine, dos “dois dogmas do empirismo” (natureza intuitiva da experiência e distinção entre enunciados analíticos e enunciados sintéticos) constitui a passagem para uma concepção diferente da experiência. Entrementes, é significativo o fato de a teoria da experiência como intuição ser compartilhada não só por empiristas, mas também por seus adversários, como p. ex. Husserl, que censura no empirismo a ignorância ou o desconhecimento das “essências” e julga, portanto, que o verdadeiro procedimento cognoscitivo é a “visão essencial” do matemático. Segundo Husserl, a experiência do naturalista, que, para ele, é “um ato fundamentador, que não pode ser substituído pela simples imaginação”, é apenas visão, intuição do individual (Ideen, I, §§ 7, 20). Esse conceito é confirmado por ele nas obras póstumas, onde se lê que a experiência, “no seu significado primeiro e mais pregnante”, deve ser considerada “relação direta com o individual” (Erfahrung und Urteil, 1954, § 6).

b) A teoria da experiência como método considera-a operação (mais ou menos complexa, nunca elementarmente simples) capaz de pôr à prova um conhecimento e capaz de orientar sua retificação. Uma operação que atinge esse objetivo é repetível ou recorre a situações repetíveis, portanto nunca é: le uma atividade pessoal ou incomunicável (p. ex., subjetiva ou mental), que não possa ser repetida por qualquer pessoa; 2) intenção, imaginação ou anúncio de operação, mas a operação efetiva. Nesse sentido, “perceber” não é operação empírica quando se refere à sensação que x tem do vermelho, mas sim quando é operação tendente a confirmar ou averiguar se, p. ex., há um objeto vermelho nesta sala, desde que essa operação possa ser realizada por qualquer pessoa nas condições adequadas. Portanto, o objeto empírico não é a “sensação” ou a “impressão” de vermelho (como Carnap parece crer), mas a coisa vermelha, como p. ex. o livro ou a luz cuja presença pode ser confirmada nesta sala, seja com operações perceptivas normais (que podem ser praticadas por qualquer pessoa que tenha visão normal), seja com instrumentos (p. ex., um espectroscópio, etc). A sensação “vermelho” não é levada em conta; isso porque, mesmo não sendo diretamente acessível a alguns indivíduos (os daltônicos), um objeto vermelho não deixa de ser um objeto empírico para todos, inclusive para os daltônicos. A empiricidade de um objeto consiste no fato de ele poder ser verificado ou averiguado por quem quer que esteja na posse dos meios adequados; e o fato de existirem certos meios capazes de propiciar essa averiguação significa que eles podem ser utilizados tanto por quem crê quanto por quem não crê na existência do objeto, e que a eficácia dos meios não depende de uma ou de outra crença. Em sentido negativo, essa noção de experiência é caracterizada por: 1) ausência de distinção entre verdades de razão e verdades de fato, ou entre enunciados analíticos e enunciados sintéticos, 2) pela ausência de postulação de uma unidade empírica elementar.

Pode-se dizer que essa noção de experiência foi delineada pela própria prática da pesquisa científica desde seus primórdios. A “sensata experiência” de Galilei, que nunca estava separada do raciocínio matemático, tem esse caráter prático de averiguação e não pode ser interpretada como recurso à intuição imediata. O próprio fundador do empirismo moderno, Francis Bacon, entendeu a experiência como campo das verificações e das averiguações intencionalmente executadas. Dizia Bacon: “Quando a experiência vem ao nosso encontro espontaneamente, chama-se acaso; se procurada deliberadamente, tem o nome de experimento. Mas a experiência vulgar outra coisa não é. senão um proceder às apalpadelas como quem vaga à noite de lá para cá na esperança de topar com o caminho certo, quando seria muito mais útil e prudente esperar o dia ou acender um candeeiro para achar o caminho. A ordem verdadeira da experiência começa com acender o candeeiro, com o que se ilumina o caminho, começando-se com a experiência organizada e madura, e não com uma experiência irregular e às avessas; primeiro, deduz os axiomas, depois procede a novos experimentos” (Nov. Org., I, 82). Em outros termos, para valer como fonte de aferição dos conhecimentos, a experiência deve incluir uma ordem, que, para Bacon, é de natureza intelectual, embora depois deva servir de freio e norma ao próprio intelecto (Ibid., I, 101). A característica fundamental dessa concepção é a ausência de distinção entre verdades de razão e verdades de fato, ou seja, entre verdades que se fundam unicamente nas inter-relações de ideias e verdades que derivam da experiência. A ciência moderna, a partir de Galilei, ignora essa distinção, que tampouco é reproduzida pela distinção kantiana entre juízos analíticos e sintéticos, porque tal distinção não concerne à validade dos juízos, mas à diferença entre juízos explicativos e juízos extensivos, entre juízos que nada acrescentam ao conhecimento do sujeito e juízos que lhe acrescentam novas notas (Crit. R. Pura, Intr., 4). De fato, Kant elabora um conceito de experiência segundo o qual a experiência é irredutível à simples intuição sensível. Para Kant, a experiência é o conhecimento efetivo e, por isso, inclui a totalidade das suas condições. Kant diz: “Toda experiência encerra, além da intuição dos sentidos para a qual algo é dado, o conceito de um objeto que é dado ou aparece na intuição, por isso, na base de todo conhecimento experimentalconceitos de objetos em geral como condições a priori; por conseguinte, a validade objetiva das categorias, como conceitos a priori, dever-se-á ao fato de que só graças a elas é possível a experiência (segundo a forma do pensamento)” (Ibid., Analítica, § 14). E ainda: “A experiência apoia-se na unidade sintética dos fenômenos, numa síntese, segundo conceitos, do objeto dos fenômenos em geral, sem a qual nunca seria um conhecimento, mas uma rapsódia de percepções que nunca poderiam adaptar-se umas às outras, no contexto regular de uma (possível) consciência inteiramente unificada, portanto, nem à unidade transcendental necessária da percepção. A experiência tem, pois, como fundamento os princípios da sua forma a priori, ou seja, as normas universais da unidade da síntese dos fenômenos, normas cuja realidade objetiva sempre pode ser encontrada na experiência, como aquela das condições necessárias dela, aliás, da sua própria possibilidade” (Ibid., Analítica, II, 2, seç. 2). A experiência não é, portanto, a “rapsódia” de percepções sensíveis, mas a ordem e a regularidade do conhecimento que constituem a contraparte subjetiva (ou “formal”) da ordem e da regularidade da natureza. Justamente como tal, a experiência, ou melhor, a possibilidade da experiência, é o critério último da legitimidade de qualquer conhecimento possível. Para Kant um conhecimento que não é uma experiência possível não é um conhecimento objetivo, ou seja, autêntico (Ibid., Analítica, II, 2, seç. 2). Mas se esse é o conceito de experiência que Kant elabora nem sempre é o que utiliza ao longo de sua obra. Se, de fato, esse significado fosse rigorosamente observado, Kant não poderia dizer, como diz bem no início da Razão Pura (Intr., 1): “Se bem que todos os nossos conhecimentos comecem com a experiência, nem por isso derivam todos da experiência” O conhecimento não pode derivar nem deixar de derivar da experiência, se ele é a experiência. Donde resulta que todo o conceito kantiano do a priori como o que éindependente da experiência” deriva do uso ambíguo desse termo, que, ao contrário da definição explícita que Kant lhe dá, às vezes se limita a indicar a intuição sensível, de tal modo que a ordem, a regularidade, as categorias e os princípios não se incluem em seu âmbito e devem ser considerados a priori. Está bem claro que, se a experiência inclui ordem, regularidade, etc, os princípios que garantem tal ordem, ou seja, a forma da experiência, não podem ser chamados de a priori, “independentes da experiência”, tampouco sendo possível assim designar o conteúdo da experiência, isto é, o seu material sensível.

O significado dessa doutrina está na tese de que o conhecimento efetivo é o que se organiza segundo o princípio de causalidade, ou seja, segundo uma ordem necessária. Fichte exprimia com exatidão essa tese kantiana ao dizer: “O sistema das representações acompanhadas pelo sentimento da necessidade chama-se também experiência, seja ela interna ou externa. Por isso, a filosofia tem a função de explicar toda experiência” (Erste Einleitung in die Wissenschaftslehre, 1797, § 1, em Werke, I, 1, pp. 419 ss.). Desse ponto de vista, o método de explicação causal é, por excelência, o método empírico. Por isso, a concepção da experiência como método tem sentido restrito em Kant: a experiência como método identifica-se com a explicação causal. Na filosofia contemporânea, o conceito de experiência como método foi defendido pelo pragmatismo e pelo instrumentalismo. Peirce dizia: “cuidamos somente da experiência possível, experiência na plena acepção do termo, como algo que não só afete os sentidos, mas seja também o sujeito do pensamento” (Chance, Love and Logic, II, 2; trad. it., p. 131). Dewey, por sua vez, nega que a experiência seja “um conteúdo objetivo” ou que se identifique com um objeto singular. “Na experiência efetiva, nunca se dá tal objeto singular ou evento isolado; um objeto ou evento é sempre uma parte, um momento ou um aspecto especial de um mundo ambiental experimentado, isto é, de uma situação. O objeto singular tem grande destaque devido à posição focai e crucial que ocupa em dado momento, quando se visa determinar alguns problemas de uso e fruição que o ambiente global apresenta. É sempre em certo campo que se verifica a observação deste ou daquele objeto.” Por conseguinte, “os juízos de experiência e os juízos formais acerca de objetos ou de eventos não se dão para nós quando isolados, mas só quando vinculados a um contexto abrangente, que se chama situação” (Logic, III; trad. it., p. 111). As características que Dewey atribui à experiência podem ser assim resumidas: la a experiência não é consciência, logo não pode ser reduzida à intuição (Experience and Nature, 1925, cap. I); 23 a experiência não é somente conhecimento, embora inclua o conhecimento, mas compreende tudo o que, a qualquer título, pode ser experimentado pelo homem (essa extensão já fora feita por Peirce, que entendera por experiência “o curso da vida” — Coll. Pap., 3, 4351 ou “a história pessoal” — Ibid., 4, 91); ò- a experiência é o campo de toda pesquisa possível e da projeção racional do futuro: nela, por isso, “a razão tem necessariamente função construtiva” (Phil. and Civilizatíon, 1931, pp. 24-25). Por importantes que sejam esses pontos, que exprimem algumas das exigências para uma teoria metodológica, constituem uma abordagem genérica demais dessa teoria. Para isso, por outro lado, constitui condição preliminar a crítica feita por Quine aos dois “dogmas” fundamentais do empirismo, quais sejam, à distinção entre enunciados analíticos e enunciados sintéticos e reducionismo sensacionista. Quanto ao primeiro, Quine distinguiu os enunciados lógicos (p. ex., “Nenhum homem não casado é casado”), cuja verdade permanece inalterada enquanto permanecer inalterado o uso das partículas lógicas (não, se, então, etc), e as outras verdades chamadas analíticas (p. ex., “Nenhum solteiro é casado”), que têm esse nome porque certas palavras são assumidas como sinônimos (nesse caso: “solteiro” e “não casado”). Ora, os procedimentos para estabelecer a sinonímia são dois: 1) definição: mas esta, salvo no caso de novas notações introduzidas com convenções explícitas, não faz mais que esclarecer relações precedentes de sinonímia; 2) intercambialidade salva veritate (que é o critério proposto por Leibniz): mas “nada garante que a coincidência extensiva entre ‘solteiro’ e ‘não casado’ se baseie no significado e não em um estado de fato acidental, como ocorre na coincidência extensiva de ‘criatura com um coração’ e ‘criatura com rins’” (From a Logical Point of View, II, 3). A intercambiabilidade pressupõe a sinonímia, mas não a funda, assim como a analiticidade não pode fundar-se nas regras semânticas de uma linguagem artificial, já que tais regras definem o que é analítico para a linguagem em questão, mas não o significado de analiticidade, que está pressuposto. A conclusão de Quine é que não foi demarcado “um limite entre enunciados analíticos e enunciados sintéticos. Que tal distinção deva ser feita é dogma não empírico dos empiristas, artigo metafísico de fé” (Ibid., II, 5). O segundo dogma dos empiristas é a redução dos enunciados empíricos a termos de experiência imediata, ou seja, a dados sensíveis. Quine mostra a relação dessa tese, tanto na forma mais ampla quanto na mais restrita, correspondentes às duas fases do pensamento de Carnap, com a distinção entre analítico e sintético. “Os dois dogmas”, diz ele, “são idênticos na raiz. Vemos que, em geral, a verdade dos enunciados depende obviamente tanto da linguagem quanto do fato extralinguístico e notamos que essa circunstância óbvia acaba produzindo, não lógica mas naturalmente, o sentimento de que a verdade de um enunciado é analisável em um componente linguístico e um componente factual. Se formos empiristas, o componente factual deverá conduzir-nos a um conjunto de experiência verificadoras. No outro extremo, onde o componente linguístico é o único que interessa, será verdadeiro o enunciado analítico. Minha opinião é que isso é uma tolice e que a raiz dessa tolice consiste em falar de um componente linguístico e de um componente factual na verdade de todos os enunciados individuais. Tomada coletivamente, a ciência tem dupla dependência, da linguagem e da experiência, mas essa dualidade não pode ser estendida aos enunciados isolados da ciência” (Ibid., II, 5). Desse ponto de vista, o saber pode ser comparado a um tecido cinzento, que é preto para os fatos e branco para as convenções linguísticas nele entrelaçadas, mas no qual não há fios totalmente brancos nem fios totalmente pretos (Carnap e a verdade lógica, em “Riv. di Fil.”, 1957, ns 1); ou então a um campo de força cujas condições limítrofes são a experiência. “Um conflito com a experiência na periferia”, diz Quine, “ocasiona uma reacomodação no interior do campo. Os valores de verdade devem ser redistribuídos sobre algumas das nossas asserções. A reavaliação de umas asserções implica a reavaliação de outras, em virtude das suas conexões lógicas, ao mesmo tempo que as leis lógicas são outras tantas asserções do sistema, outros tantos elementos do campo… Mas o campo total é tão subdeterminado pelas condições limítrofes, ou seja, pela experiência, que há grande amplitude na escolha das asserções a serem reavaliadas à luz de uma experiência contrária isolada” (From a Logical Point of View, II, 6). Portanto, mesmo uma afirmação muito próxima da periferia pode ser considerada verdadeira se comparada a uma experiência recalcitrante, considerando esta como ilusória ou reformando algumas das asserções chamadas de leis lógicas (como ocorreu, p. ex., com o princípio do terceiro excluído). Mas nenhuma asserção está imune à revisão. É significativo que justamente um dos maiores lógicos contemporâneos tenha liquidado o pressuposto lógico da doutrina da experiência como intuição, e que um dos maiores expoentes do neo-empirismo contemporâneo tenha procurado liquidar esse mesmo conceito de experiência. Na realidade, este segundo intento não foi levado a cabo por Quine. Admitir para o campo total do saber a composição de conceito e sensação que se nega aos componentes individuais do saber só pode ser considerada uma posição provisória. Quine fala ainda do “fluxo de experiência” (Ibid., II, 6) no mesmo sentido em que Hume podia falar do fluxo das impressões, e afirma que os objetos físicos, destacados desse fluxo, por seu caráter mítico, não são diferentes dos deuses de Homero. Nesse aspecto, ele sofre a influência da obra de Duhem (La théorie physique, 1906). Mas pelas mesmas observações feitas por Quine o fluxo da experiência deve ser considerado um conceito mítico, pois seria uma sucessão ou corrente de intuições instantâneas, um suceder-se de unidades empíricas elementares, e suporia, portanto, a existência de tais unidades elementares que a crítica de Quine contribuiu para eliminar.
Em conclusão, hoje se entrevê a exigência de passar da teoria gnosiológica da experiência para uma teoria metodológica. Para a teoria gnosiológica, a experiência, como forma, elemento ou categoria em si, é formada por elementos próprios, característicos e irredutíveis, aos quais, portanto, deve ser reduzido, direta ou indiretamente, todo enunciado empírico. Uma teoria desse gênero tem como pressuposto uma classificação preliminar e rígida das formas de conhecimento e também, portanto, das formas de atividade humana (teoria-prática; lógica/linguagem/razão-experiência; enunciados empíricos-unidades empíricas elementares; lógica centro-experiência periferia). Uma teoria metodológica da experiência deveria, ao contrário, prescindir de qualquer classificação preliminar e, em todo caso, de qualquer rigidez classificatória das atividades humanas em seu conjunto. Suas análises deveriam ser aplicadas aos procedimentos efetivos de verificação e averiguação de que o homem dispõe, seja como organismo, seja como cientista. A análise desses procedimentos deveria determinar as condições e os limites de validade de cada um. Só desse modo, o exame dos componentes lógico-linguísticos nunca se separaria do exame dos componentes factuais, segundo a exigência de Quine. A própria distinção entre tais componentes deveria ser supérflua em qualquer nível. Infelizmente, embora a psicologia contemporânea esteja bem à frente na análise dos procedimentos de verificação e confirmação de que o homem dispõe como organismo (pense-se sobretudo nas contribuições que a psicologia funcional tem dado à análise da percepção), a metodologia científica, ou seja, o exame dos procedimentos de verificação e confirmação de que o homem dispõe na ciência, ainda não passa de intenção. Está claro que, do ponto de vista de uma tal metodologia, a experiência seria somente o conjunto dos campos em que as técnicas de verificação ou averiguação de que o homem dispõe se revelassem eficazes. [Abbagnano]