(do gr. ethos, costumes), ciência dos princípios da moral. — A “moral” designa, mais especificamente, a aplicação desses princípios nos atos particulares da vida. (V. moral.) [Larousse]
A ética ou filosofia moral tem por objeto o exame filosófico e a explicação dos chamados fatos morais (o termo moral tanto pode significar a moralidade quanto a ciência do moral). Contam-se, entre os fatos morais, as apreciações éticas, os preceitos, as normas, as atitudes virtuosas, as manifestações da consciência, etc. A teologia moral ou ética teológica explica e fundamenta as normas morais, partindo da revelação sobrenatural. Prescindindo disto, podemos expor os preceitos morais à maneira de catecismo, com intuitos meramente prático-pedagógicos. A atitude e a intenção especulativas podem limitar-se à simples descrição das normas éticas e da vida moral em homens individuais, grupos, povos, etc. (história cultural e etnologia). A ética, que se propõe aprofundar seu objeto, ultrapassa os limites da moral descritiva e empenha-se em explicar as valorizações e comportamentos de fato existentes, quer historiando-os em sua evolução, quer, mediante métodos psicológicos, a partir de disposições, tendências e funções psíquicas e de suas ligações (psicologia moral). — A ética filosófica, como parte de uma ciência do universal, que pesquisa os fundamentos últimos do fenômeno moral, pretende investigar com maior precisão o ser e sentido das normas morais, etc. e, por essa forma, chegar a ser uma metafísica dos costumes. Tal intuito não se obtém com um método puramente empírico. Nem para isso basta recorrer a um mero sentimento não analisável (moral do sentimento). O que principalmente interessa é explicar o bem moral e suas características, p. ex., a obrigação. A esta questão pretendem dar uma resposta os muitos e variados sistemas éticos.
Permanecem em demasia à superfície do assunto o utilitarismo (moral da utilidade, eudemonismo) ou a ética do interesse próprio bem compreendido (Bentham), que, do mesmo modo que o amoralismo, negam a substantividade da ética e convertem o proveito do indivíduo em critério supremo do moral; além disso, o hedonismo (Aristipo, Epicuro), que considera como fundamento de avaliação moral o prazer e a satisfação prudentemente sopesados. O eudemonismo social Cumberland) explica, mais facilmente que as doutrinas anteriores, os deveres sociais e os atos éticos de simpatia, mas esquece os deveres do homem para consigo mesmo (temperança, pureza, paciência no sofrimento). Pressupõe, além disso, mas sem prová-la, a índole moral da comunidade. Algo de idêntico se pode afirmar da moral do progresso cultural (Wundt), a qual situa a atividade cultural e as obras culturais acima da pessoa moral e do valor peculiar da mesma, subordinando estes, como um meio, ao progresso impessoal. Tal moral redunda, ao mesmo tempo, em moral do êxito, puramente externa, à custa da intenção ética da pessoa. Uma moral estética, que só fala da harmonia da pessoa e do estilo de vida, não satisfaz à seriedade das exigências éticas com os sacrifícios a elas anexos. Contra todas estas opiniões, o bem moral só se explica, tendo em conta a peculiaridade do homem como ser corpóreo-espiritual, e consiste na perfeição teleológica da pessoa humana (ética teleológica). Sem dúvida, deve ser mais claramente demarcada a índole desta perfeição. O perfeccionismo (Wolff) é em demasia indeterminado, porque, para haver moral, não basta qualquer arbitrária perfeição das disposições valorativas humanas. A moralidade refere-se a algo central, que parte do núcleo da liberdade da pessoa espiritual, e a algo total, que valoriza o cunho do espírito no corpo, na comunidade, dentro do mundo, dos bens materiais, e na subordinação a Deus, seu Criador e fim ultramundano. Assim, esta ética da personalidade (personalismo) não se converte em autonomia adversa a Deus, em moral laica, negadora de deveres e de valores religiosos (Kant) nem em ética da intenção puramente imanente, não fecundada por valores objetivos fundamentados também na esfera das coisas, nem em moralismo
estreme, que pretende fazer do ético a base do metafísico (Kant). Evita, outrossim, a exagerada auto-complacência da personalidade moral (estoicismo). Uma vez que a pessoa espiritual, enquanto imagem de Deus, existe como disposição em todo homem, há para todos os homens nas exigências fundamentais uma ordenação moral, universal e obrigatória. As diferenças individuais e sociais especializam e individualizam estes deveres. Não pode haver uma dupla moral, p. ex., uma para o homem enquanto ente privado e outra para sua atuação política, uma para o homem e outra para a mulher, uma para antes do matrimônio e outra para depois, morais diferentes para as diferentes situações, no sentido de certas pessoas ou círculos de pessoas serem exceptuadas da lei moral universal (fidelidade, pureza, justiça), mas unicamente no sentido de que, em determinadas situações, a lei moral comporta peculiares aplicações. Assim p. ex., o homicídio privado, a não ser em caso de legítima defesa, não é permitido, mas é permitida a pena de morte imposta pela autoridade pública. — Schuster. [Brugger]
(gr. ta ethika; lat. ethica; in. Ethics; fr. Éthique; al. Ethik; it. Ética).
Em geral, ciência da conduta. Existem duas concepções fundamentais dessa ciência: 1) a que a considera como ciência do fim para o qual a conduta dos homens deve ser orientada e dos meios para atingir tal fim, deduzindo tanto o fim quanto os meios da natureza do homem; 2) a que a considera como a ciência do móvel da conduta humana e procura determinar tal móvel com vistas a dirigir ou disciplinar essa conduta. Essas duas concepções, que se entremesclaram de várias maneiras na Antiguidade e no mundo moderno, são profundamente diferentes e falam duas línguas diversas. A primeira fala a língua do ideal para o qual o homem se dirige por sua natureza e, por conseguinte, da “natureza”, “essência” ou “substância” do homem. Já a segunda fala dos “motivos” ou “causas” da conduta humana, ou das “forças” que a determinam, pretendendo ater-se ao conhecimento dos fatos. A confusão entre ambos os pontos de vista heterogêneos foi possibilitada pelo fato de que ambas costumam apresentar-se com definições aparentemente idênticas do bem. Mas a análise da noção de bem logo mostra a ambiguidade que ela oculta, já que bem pode significar ou o que é (pelo fato de que é) ou o que é objeto de desejo, de aspiração, etc, e estes dois significados correspondem exatamente às duas concepções de E. acima distintas. De fato, é característica da concepção la a noção de bem como realidade perfeita ou perfeição real, ao passo que na concepção 2a encontra-se a noção de bem como objeto de apetição. Por isso, quando se afirma que “o bem é a felicidade”, a palavra “bem” tem um significado completamente diferente daquele que se encontra na afirmação “o bem é o prazer”. A primeira asserção (no sentido em que é feita, p. ex., por Aristóteles e por S. Tomás), significa: “a felicidade é o fim da conduta humana, dedutível da natureza racional do homem”, ao passo que a segunda asserção significa “o prazer é o móvel habitual e constante da conduta humana”. Como o significado e o alcance das duas asserções são, portanto, completamente diferentes, sempre se deve ter em mente a distinção entre ética do fim e ética do móvel, nas discussões sobre ética. Tal distinção, ao mesmo tempo que divide a história da ética, permite ver como são irrelevantes muitas das discussões a que deu ensejo e que outra causa não têm senão a confusão entre os dois significados propostos.
1) Ambas as doutrinas éticas elaboradas por Platão, quais sejam, a que se encontra expressa em A República e a que está expressa em Filebo, pertencem à primeira das concepções que distinguimos. A ética exposta em A República é uma E. das virtudes, e as virtudes são funções da alma (Rep., I, 353 b) determinadas pela natureza da alma e pela divisão das suas partes (Ibid., IV, 434 e). O paralelismo entre as partes do Estado e as partes da alma permite a Platão determinar e definir as virtudes particulares, bem como a virtude que compreende todas elas: a justiça como cumprimento de cada parte à sua função (Ibid., 443 d). Analogamente, a ética de Filebo começa definindo o bem como forma de vida que mescla inteligência e prazer e sabe determinar a medida dessa mistura (Fil., 27 d). A ética de Aristóteles é, aliás, o protótipo dessa concepção. Aristóteles determina o propósito da conduta humana (a felicidade), a partir da natureza racional do homem (Et. Nic, I, 7), e depois determina as virtudes que são condição da felicidade. Por sua vez, a ética dos estoicos, com a sua máxima fundamental de “viver segundo a razão”, deduz as normas de conduta da natureza racional e perfeita da realidade (J. Stobeo, Ecl., II, 76, 3; Diógenes Laércio, VII, 87). O misticismo neoplatônico colocou como propósito da conduta humana o retorno do homem ao seu princípio criador e sua integração com ele. Segundo Plotino, esse retorno é “o fim da viagem” do homem, é o afastamento de todas as coisas exteriores, “a fuga de um só para um só”, ou seja, do homem em seu isolamento para a Unidade divina (Enn., VI, 9,11).
Por mais diferentes que sejam as doutrinas mencionadas, em suas articulações internas as formulações são idênticas, pois: à) determinam a natureza necessária do homem, b) deduzem de tal natureza o fim para o qual sua conduta deve orientar-se. Toda a ética medieval mantém-se fiel a esse esquema. Assim, p. ex., toda a ética de Tomás de Aquino é deduzida do princípio de que “Deus é o último fim do homem” (5. Th., II, 2, q. 1, a. 8), do qual se infere a doutrina da felicidade e a da virtude. Pode-se entrever uma crítica contra essa formulação em Duns Scot e em muitos escolásticos do séc. XIV: as normas morais fundam-se pura e simplesmente no mandamento divino, com exceção da norma que impõe obedecer a Deus,. que seria a única “natural” (Op. Ox., III, d. 37, q. 1; cf. Ockam, In Sent., II, q. 5 H). Com efeito, esse recurso ao arbítrio divino é resultado do reconhecimento da impossibilidade de deduzir da natureza do homem o fim último de sua conduta (Op. Ox., IV, d. 43, q. 2, n. 27, 32). Mas nem por isso se abriu uma alternativa à indagação ética.
Na filosofia moderna, os neoplatônicos de Cambridge retomam a concepção estoica de ordem do universo que também vale para dirigir a conduta do homem; portanto, insistem no caráter inato das ideias morais, bem como, em geral, de todas as ideias gerais ou diretivas de que o homem dispõe (CUDWORTH, The True Intell. System, 1678, I, 4; MORE, Enchiridion, 1679, III). A filosofia romântica deu forma mais radical a essa concepção ética. Fichte exige que toda a doutrina moral seja deduzida da “autodeterminação do Eu” (Sittenlehre, Intr., § 9). Por isso, vê como objetivo da moral a adequação do eu empírico ao Eu infinito; essa adequação nunca é completa e por isso provoca um progresso ad infinitum, a liberação progressiva do eu empírico de suas limitações (Ibid., em Werke, II, p. 149). Segundo Hegel, o objetivo da conduta humana, que é ao mesmo tempo a realidade em que tal conduta encontra integração e perfeição, é o Estado. Por isso, para Hegel, a ética é filosofia do direito. O Estado é “a totalidade ética”, Deus que se realizou no mundo (Fil. do dir., § 258, Zusatz). O Estado é o ápice daquilo que Hegel chama de “eticidade” (Sittlichkeit), isto é, a moralidade que ganha corpo e substância nas instituições históricas que a garantem; ao passo que a “moralidade” (Moralität) por si mesma é simplesmente intenção ou vontade subjetiva do bem. Mas, por sua vez, o bem é “a essência da vontade em sua substancialidade e universalidade”, ou então, “a liberdade realizada, o objetivo final e absoluto do mundo” (Ibid., §§ 139-42), ou seja, o próprio Estado. Assim, pode-se dizer que, para Hegel, a moralidade é a intenção ou a vontade subjetiva de realizar o que se acha realizado no Estado. O conceito de Estado é o ponto de partida e o ponto de chegada da ética de Hegel. A ética de Rosmini conforma-se à ética tradicional; segundo ele o bem identifica-se com o ser, de tal modo que a máxima fundamental da conduta pode ser assim formulada: “Querer ou amar o ser onde quer que seja este conhecido, segundo a ordem que ele apresenta à inteligência” (Princ. della scienza morale, ed. nacional, p. 78). Mas, quer se defina a realidade como Ser, quer se defina como Espírito ou Consciência, a estrutura das doutrinas morais que entendem inferir a moral de seu objetivo mostram grande uniformidade de procedimentos e conclusões. Consideremos, p. ex., na filosofia contemporânea, a ética de Green e a de Croce. Segundo Green, a Consciência infinita, Deus, é, ab aeterno, tudo o que o homem tem a possibilidade de vir a ser, ou seja, o Bem ou Fim supremo, que é o objeto da boa vontade humana; à razão cabe a tarefa de concebê-lo e de colocá-lo como fundamento de sua lei (Prolegomena to Ethics, 3a ed., 1890, pp. 198, 214). Querer o bem significa, portanto, querer a Consciência absoluta, procurar realizar o que está presente nela. Do mesmo modo, para Croce a atividade ética é “volição do universal”, mas o universal “é o Espírito, é a Realidade enquanto verdadeiramente real, enquanto unidade de pensamento e vontade; é a Vida apreendida em sua profundidade como unidade; é a Liberdade, se uma realidade assim concebida for perpétuo desenvolvimento, criação, progresso” (Filosofia della pratica, 1909, p- 310). Agir moralmente significa, portanto, querer o Espírito infinito, assumi-lo como um Fim: formulação essa que (assim como a de Fichte, Hegel, Green) não se distingue da ética tradicional que (como a de Platão, Aristóteles, Tomás de Aquino e Rosmini) recorre à Realidade ou ao Ser. Uma forma mais complexa e moderna da ética do fim pode ser vista na doutrina de Bergson, que distinguiu a moral fechada da moral aberta. Moral fechada é aquilo que se entende comumente por esse termo. No mundo humano, corresponde ao que é o instinto em certas sociedades animais, pois seu propósito é conservar a sociedade. “Suponhamos por um instante”, diz Bergson, “que, na outra ponta da linha [na ponta da linha evolutiva da inteligência, diferente da linha do instinto], a natureza tenha desejado obter sociedades em que fosse permitida certa amplitude à opção individual: nessas sociedades, agiria de tal modo que, em termos de regularidade, a inteligência obteria resultados comparáveis aos do instinto na outra ponta da linha: teria recorrido a hábitos. Cada um desses hábitos, que podem ser chamados de ‘morais’, será contingente, mas seu conjunto, ou seja, o hábito de contrair hábitos, por estar na base das sociedades, terá uma força comparável à do instinto tanto em intensidade quanto em regularidade” (Deux sources, I; trad. it., p. 23). Do outro lado, porém, está a moral dos profetas e dos inovadores, dos místicos e dos santos. Essa é a moral em movimento, fundada na emoção, no instinto, no entusiasmo: moral que é impulso de renovação coincidente com o próprio impulso criador da vida. Segundo Bergson, essa dualidade de forças fundamenta a moral: “Pressão social e impulso de amor são duas manifestações complementares da vida, normalmente dedicadas à conservação, em linhas gerais, da forma social característica da espécie humana desde a origem, mas excepcionalmente capazes de transfigurá-la graças a indivíduos que, assim como o surgimento de uma nova espécie, representam um esforço de evolução criadora” (Ibid., p. 101). Assim, do ideal de renovação moral, Bergson deduziu a existência de uma força destinada a promover essa renovação, assim como do conceito de “sociedade fechada” deduziu a noção de moral corrente. Sua ética, portanto, obedece à clássica formulação da ética do fim.
Quando, na filosofia contemporânea, a noção de valor começou a substituir a de bem, a antiga alternativa entre ética do fim e ética da motivação assumiu nova forma. Com efeito, o valor subtrai-se à alternativa própria da noção de bem, que pode ser interpretada ou em sentido objetivo (como realidade) ou em sentido subjetivo (como termo de apetição). O valor possui modo de ser objetivo, no sentido de que pode ser entendido ou apreendido independentemente da apetição; mas, ao mesmo tempo, é dado em certa forma de experiência específica. O valor, portanto, é constantemente reconhecido como dotado de três caracteres: d) objetividade; b) simplicidade, graças à qual é indefinível e indescritível, do mesmo modo que uma qualidade sensível elementar; c) necessidade ou problematicidade. Esta última é a alternativa que, no âmbito da noção de valor, substitui a alternativa entre subjetividade e objetividade, típica da noção de bem. Ora, as doutrinas que reconhecem a necessidade do valor, ou seja, sua absolutidade, sua eternidade, etc, têm estreito parentesco com as doutrinas éticas tradicionais do fim, ao passo que as doutrinas que reconhecem a problematicidade do valor são estreitamente aparentadas com as doutrinas éticas da motivação. As doutrinas de Scheler e Hartmann estão entre as que afirmam a necessidade do valor. Scheler elaborou sua “ética material dos valores” justamente com o fim de imunizar a ética contra o relativismo a que conduz a ética material do bem, que vê no bem simples objeto de apetição. Segundo Scheler, as apetições (aspirações, impulsos ou desejos) têm seus fins em si mesmas, ou seja, “no sentimento, contemporâneo ou anterior, dos seus componentes axiológicos”. Os fins da apetição podem tornar-se propósitos da vontade quando representados e escolhidos, tornando-se assim um dever-ser real, vale dizer, termos de uma experiência objetiva. Mas os valores são dados anterior e independentemente tanto em relação aos fins quanto em relação aos propósitos, sendo também dadas independentemente de tais fins e propósitos as preferências dos valores, isto é, sua hierarquia. Scheler diz: “De fato, podemos sentir os valores, mesmo os morais, na compreensão dos outros, sem que eles se transformem em objeto de aspiração ou sejam imanentes a uma aspiração. De modo semelhante, podemos preferir ou pospor um valor a outro, sem com isso optar entre aspirações voltadas para esses valores. Todos os valores podem ser dados e preferidos sem nenhuma aspiração” (Formalismus, p. 32). Em outros termos, a ética não se funda na noção de bem nem na de fins imediatamente presentes à aspiração ou em propósitos deliberadamente almejados, mas na intuição emotiva, imediata e infalível dos valores e das suas relações hierárquicas; intuição é base de qualquer aspiração, desejo e deliberação voluntária. Hartmann expressou de forma mais didática, clara e eficaz essa mesma concepção de ética: “Existe um reino de valores subsistente em sisi mesmo, um autêntico ‘mundo inteligível’ que está além da realidade e além da consciência, uma esfera ideal ética, não construída, inventada ou sonhada, mas efetivamente existente e apreensível no fenômeno do sentimento axiológico, subsistindo ao lado da esfera ôntica real e da esfera gnosiológica atual” (Ethik, 1926, p. 156). O “serem si” dos valores ressalta que eles não dependem da mesma intuição axiológica em que são dados e, portanto, são necessários e absolutos, o que, como pretendia Hartmann, deveria conter o avanço do “relativismo axiológico de Nietzsche” (Ibid., p. 139).
No entanto, o “relativismo axiológico de Nietzsche” tem a mesma estrutura formal, ou seja, a mesma elaboração da ética de Hartmann e, em geral, da ética tradicional do fim, porque também se funda em uma hierarquia absoluta de valores. Para Scheler e Hartmann, essa hierarquia, assim como os próprios valores, é de todo independente da escolha humana; aliás, toda escolha é pressuposta pela escolha, quer esta se conforme ou não a ela. Essa também é a crença de Nietzsche. Só que, para Nietzsche, essa hierarquia é diferente: é a hierarquia dos valores vitais, dos valores em que se encarna a Vontade de Poder: “Até hoje os valores morais ocuparam posição superior; quem poderia duvidar deles? Mas retiremos esses valores de sua posição e mudaremos todos os valores: inverteremos o princípio da sua hierarquia precedente” (Wille zur Macht; trad. fr. Bianquis, III, 503). O imoralismo de Nietzsche, seu “relativismo axiológico”, que o leva a criticar a moral corrente e ver nela formas camufladas de egoísmo e hipocrisia, é simplesmente a proposta de uma nova tábua de valores, fundada no princípio de aceitação entusiástica da vida, na preeminência do espírito dionisíaco. É por esse motivo que Nietzsche pretende substituir as virtudes da moral tradicional pelas novas virtudes em que se exprime a vontade de potência. É virtude toda paixão que diz sim à vida e ao mundo: “a altivez, a alegria e a saúde; o amor sexual, a inimizade e a guerra; a veneração, as belas aptidões, as boas maneiras, a vontade forte, a disciplina da intelectualidade superior, a vontade de potência, o reconhecimento para com a terra e para com a vida: tudo o que é rico e quer dar, quer recompensar a vida, dourá-la, eternizá-la e divinizá-la” (Ibid., § 479). Assim, daquilo que considerou a natureza do homem, a vontade de potência, Nietzsche deduziu a tábua de valores morais que deveriam dirigir o homem para a realização da vontade de potência num mundo de super-homens. A estrutura de sua doutrina não é, portanto, diferente da estrutura de muitas outras que, utilizando o mesmo processo, tendem a conservar e justificar as tábuas de valores tradicionais, deduzindo-as da natureza do homem ou da estrutura do ser.
2) A segunda concepção fundamental da ética é a que se configura como uma doutrina do móvel da conduta. A característica dessa concepção é que nela o bem não é definido com base na sua realidade ou perfeição, mas só como objeto da vontade humana ou das regras que a dirigem. Assim, enquanto na primeira concepção as normas derivam do ideal que se assume como próprio do homem (a perfeição da vida racional, segundo Aristóteles, o Estado, segundo Hegel, a sociedade fechada ou aberta, segundo Bergson, etc); na segunda concepção procura-se em primeiro lugar determinar o móvel do homem, ou seja, a norma a que ele de fato obedece; portanto, define-se como bem aquilo a que se tende em virtude desse móvel, ou aquilo que se conforma à norma em que ele se exprime. Assim, quando Pródico formulava sua moral em proposições condicionais ou imperativos hipotéticos, estava criando uma das primeiras ética do móvel. Dizia: “Se quiseres que os deuses te sejam benévolos, deves venerar os deuses. Se quiseres ser amado pelos amigos, deves beneficiar os amigos. Se desejares ser honrado por uma cidade deves ser útil à cidade. Se aspiras a ser admirado por toda a Grécia, deves esforçar-te por fazer bem à Grécia”, etc. (Xenofonte, Memor.. II, i, 28). Do mesmo modo, Protágoras aspira a uma E. do móvel quando reconhece que o respeito mútuo e a justiça são as condições para a sobrevivência do homem. Esse é o sentido do mito de Prometeu, que Protágoras expõe no diálogo homônimo de Platão (Prot., 322 c). E a obra conhecida com o nome de Anônimo de Jâmblico reafirma esse ponto de vista. “Mesmo que houvesse (mas não há) um homem invulnerável, insensível, com corpo e alma de aço, só aliando-se às leis e ao direito, fortalecendo-os e utilizando sua força por eles e em favor deles, poderia salvar-se, pois de outro modo não poderia resistir” (Anôn. Jâmbl., 6, 3). Nessas formulações, o que se costuma evidenciar é o mecanismo dos móveis que fundam as normas do direito e da moral: para sobreviver, o homem conforma-se a tais regras e não pode agir de outro modo. Em tais formulações, o móvel da conduta humana é o desejo ou a vontade de sobreviver. Em outras formulações do mesmo gênero, esse móvel é o prazer. Aristipo afirmava que só o prazer é desejado por sisi mesmo, e via a confirmação disso no fato de que, desde a infância, os homens procuram o prazer sem vontade deliberada e, quando o alcançam, não procuram outra coisa, ao passo que evitam a dor, que é o seu oposto (Diógenes Laércio, II, 88). O princípio da ética de Epicuro tem o mesmo significado de reconhecimento daquilo que, de fato, é o móvel da conduta humana: “Prazer e dor são as duas afeições que se encontram em todo animal, uma favorável e outra contrária, através das quais se julga o que se deve escolher e o que se deve evitar” (Diógenes Laércio, X, 34).
Essa concepção de ética esteve ausente durante toda a Idade Média e só é retomada no Renascimento. Lorenzo Valia foi o primeiro a reapresentá-la em De voluptate, afirmando que o prazer é o único fim da atividade humana e que a virtude consiste em escolher o prazer (De vol., II, 40). Telésio reapresenta a outra alternativa tradicional da mesma concepção (De rer. nat, IX, 2), extraindo as normas da ética do desejo de conservação que existe em cada ser. Com rigor e sistematização, Hobbes via nesse mesmo princípio o fundamento da moral e do direito: “O principal dos bens é a autoconservação. Com efeito, a natureza proveu a que todos desejem o próprio bem, mas para que possam ser capazes disso é necessário que desejem a vida, a saúde e a maior segurança possível dessas coisas para o futuro. De todos os males, porém, o primeiro é a morte, especialmente se acompanhada de sofrimento; mas, como os males da vida podem ser tantos, se não for previsto seu fim próximo, levarão a incluir a morte entre os bens” (De bom., XI, 6). Nessa tendência à autoconservação e, em geral, à consecução de tudo o que é útil, Spinoza viu a ação necessitante da Substância divina: “A razão nada exige contra a natureza, mas exige por si mesma, acima de tudo, que cada um ame a si mesmo, que procure aquilo que seja realmente útil para si, que deseje tudo o que conduz o homem à perfeição maior e, de modo absoluto, que cada um se esforce, no que estiver a seu alcance, para conservar o próprio ser. O que é necessariamente tão verdadeiro quanto é verdadeiro que o todo é maior que a parte” (Et., IV, 18, scol.). Locke e Leibniz concordavam quanto ao fundamento da ética. Locke dizia: “Uma vez que Deus estabeleceu um laço entre a virtude e a felicidade pública, tornando a prática da virtude necessária à conservação da sociedade humana e visivelmente vantajosa para todos os que precisam tratar com as pessoas de bem, não é de surpreender que todos não só queiram aprovar essas normas, mas também recomendá-las aos outros, já que estão convencidos de que, se as observarem, auferirão vantagens para si mesmos” (Ensaio, I, 2, 6). E Leibniz, por sua vez, reconhecia como fundamento da moral o princípio de “adotar a alegria e evitar a tristeza”, considerando-o, porém, mais relacionado com o instinto do que com a razão (Nouv. ess., I, 2, 1). Como se vê, a ética dos sécs. XVII e XVIII tem alto grau de uniformidade: não só ela é uma doutrina do móvel como também a oscilação que apresenta entre “tendência à conservação” e “tendência ao prazer” como base da moral não implica uma diferença radical, já que o próprio prazer não passa de indicador emocional das situações favoráveis à conservação (v. emoção). Semelhante ética opõe-se radicalmente à ética do fim, ou seja, à ética em sua formulação tradicional que se encontra em Platão, em Aristóteles e na escolástica. A característica fundamental da filosofia moral inglesa do séc. XVIII, que tem importância particular na história da E., consiste em evidenciar e assumir como tema principal de discussão precisamente a oposição entre a ética do móvel e a ética do fim, que pareceu idêntica à oposição existente entre razão e sentimento. Hume diz: “Há uma controvérsia surgida recentemente, que é muito mais digna de exame e que gira em torno dos fundamentos gerais da moral: se eles derivam da razão ou do sentimento, se chegamos ao conhecimento deles por meio de uma sequência de argumentos e de induções ou por meio de um sentimento imediato e de um sutil sentido interno” (Inq. Conc. Morals, I). Hume afirma que o primeiro a aperceber-se dessa distinção foi Lord Shaftesbury; na verdade, Shaftesbury falou de um sentido moral, que é uma espécie de instinto natural ou divino, especificação no homem do princípio de harmonia que regula o universo (Características de homens, maneiras, opiniões e tempos, 1711). Já Hutchinson interpretava o sentido moral como tendência a realizar “a maior felicidade possível do maior número possível de homens” (Indagação sobre as ideias de beleza e de virtude, 1725, III, 8), fórmula que será adotada por Beccaria e por Bentham. Foi Hume quem encontrou a palavra que exprimia essa nova tendência: o fundamento da moral é a utilidade. Em outros termos, é boa a ação que proporciona “felicidade e satisfação” à sociedade, e a utilidade agrada porque corresponde a uma necessidade ou tendência natural: a que inclina o homem a promover a felicidade dos seus semelhantes (Inq. Conc. Morais, V, 2). Portanto, razão e sentimento constituem igualmente a moral; segundo Hume, “a razão nos instrui sobre as diversas direções da ação, a humanidade nos faz estabelecer a distinção em favor daquelas que são úteis e benéficas” (Ibid., Ap. I). Para Hume, o sentimento de humanidade, ou seja, a tendência a ter prazer pela felicidade do próximo, é o fundamento da moral, o móvel fundamental da conduta humana. Alguns anos mais tarde, Adam Smith chamará de simpatia esse sentimento do espectador imparcial que olha e julga a sua conduta e a dos outros (The Theory of Moral Sentiments, 1759, III, 1).
Pelo fato de a concepção moral de Kant corresponder às características fundamentais da doutrina do móvel, está claro que deve ser inserida nessa tradição. Em primeiro lugar, Kant julga que “o conceito do bem e do mal não deve ser determinado antes da lei moral (cujo fundamento aparentemente deveria ser), mas depois dela e através dela” (Crít. R. Prática, I, 1, 3). Isto quer dizer que Kant compartilha a concepção (2) do bem, que corresponde à ética do móvel. Em segundo lugar, é justamente com base nos móveis (Bestimmungsgründe) que Kant classifica as diferentes concepções fundamentais do princípio da moralidade (Ibid., I, 1, § 8, nota 2). Em terceiro lugar, Kant considera a lei moral como um fato (Factum), porque “não pode ser deduzida de dados precedentes da razão, como p. ex. da consciência da liberdade”, mas se impõe por si mesma como um sic volo, sic iubeo (Ibid., § 7). Desse modo, Kant transferiu o móvel da conduta do “sentimento” para a “razão”, utilizando o outro lado do dilema proposto pelos moralistas ingleses. Com isso, quis garantir a categoricidade da norma moral, ou seja, o caráter absoluto de comando graças ao qual ela se distingue dos imperativos hipotéticos de técnicas e prudência. Em vista dessa exigência, a ética kantiana sem dúvida compartilha com a concepção (1) da ética a preocupação básica de ancorar a norma de conduta na substância racional do homem. Mas, deixando de lado essa preocupação absolutista (que deve ser explicada pelo “rigorismo” kantiano), a ética de Kant tem grande afinidade com a ética dos moralistas ingleses do séc. XVIII (pelos quais, aliás, nas obras iniciais Kant não escondeu sua simpatia), não só na formulação fundamental como também nos resultados. Se o sentimento, ao qual recorriam os moralistas ingleses, era a tendência à felicidade do próximo, a razão, à qual Kant recorre, é a exigência de agir segundo princípios que os outros podem adotar. Conquanto essa fórmula possa parecer mais rigorosa e mais abstrata que as empregadas pelos filósofos ingleses, seu significado é o mesmo. O que ambas pretendem sugerir como princípio ou móvel da conduta é o reconhecimento da existência de outros homens (ou, como queria Kant, de outros seres racionais”) e a exigência de comportar-se em face deles com base nesse reconhecimento. O imperativo kantiano de tratar a humanidade, tanto na primeira pessoa quanto na pessoa do próximo, sempre como fim e nunca como meio, não passa de outra expressão dessa mesma exigência, que os moralistas ingleses chamavam de “sentido moral” ou “sentido de humanidade”. Infelizmente, a evolução sofrida pela filosofia moral de Kant a partir de Fichte teve como ponto de partida mais frequente o seu arsenal dogmático e absolutista do que suas colocações fundamentais e a substância de seus ensinamentos morais. Tanto esses ensinamentos quanto a postura de que dependem estão de acordo com a ética setecentista, com a diretriz moral do iluminismo, mas com esta não se coaduna a contraposição estabelecida por Kant entre o mundo moral e o mundo natural e, portanto, entre a ética e a ciência da natureza. Essa oposição ingressa na doutrina de Kant a partir do arsenal absolutista de sua ética, ou seja, a partir do aspecto que a transformou em menina dos olhos dos metafísicos moralistas do séc. XIX, em pretexto para inumeráveis (e inoperantes) perquirições a respeito do caráter absoluto do dever, bem como do acesso que ele permitiria a uma Realidade superior e in-condicionada (a do “númeno”), sem nenhuma relação com a realidade fenomênica e condicionada da natureza. Ainda hoje, muitas vezes amigos e adversários da ética de Kant veem nela exclusivamente esse aspecto; os primeiros para exaltá-la como ancoradouro seguro de todas as certezas referentes à vida moral, os últimos para condená-la como baluarte das ilusões metafísicas no campo moral. Mas uma consideração dessa ética que se subtraia a tais alternativas e a veja no quadro da ética setecentista, cuja postura compartilhou, ao mesmo tempo em que pretendeu fundamentá-la com necessidade rigorosa, talvez permita apreciá-la mais adequadamente. Pode, efetivamente, abrir caminho para a utilização das análises kantianas com vistas à formulação da ética como técnica da conduta, independente de pressupostos metafísicos.
Nesse ínterim, em clima positivista, a ética do móvel tinha a pretensão de valer como ciência exata da conduta. Helvétius dizia: “Acredito que se deve tratar a moral como todas as outras ciências e fazer uma moral como se faz uma física experimental” (De l’esprit, 1758, 1, p. 4). Mas essa pretensão caracteriza sobretudo o utilitarismo do séc. XIX, encabeçado por Bentham. Segundo ele, os únicos fatos de que se pode partir no domínio moral são os prazeres e as dores. A conduta do homem é determinada pela expectativa de prazer ou de dor, e esse é o único motivo possível de ação. Com estes fundamentos a ciência da moral torna-se tão exata quanto a matemática, embora seja muito mais intricada e ampla (Introduction to the Principles of Morals and Legislation, 1789, em Works, I, p. V). Desse ponto de vista, consciência, sentido moral, obrigação moral, são conceitos fictícios ou “não-entidades”. A realidade que tais conceitos ocultam é o cálculo dos prazeres e das dores em que repousa o comportamento moral do homem, cálculo cujos princípios Bentham quis estabelecer fornecendo a tábua completa dos móveis de ação, que deveria servir de guia para as legislações futuras. Na realidade, a obra de Bentham inspirou a ação reformadora do liberalismo inglês e ainda hoje seus princípios estão incorporados na doutrina do liberalismo político. O utilitarismo de James Mill e de John Stuart Mill não passa de defesa e ilustração das teses fundamentais de Bentham. O positivismo inspirou-se no mesmo ponto de vista: a realização da moral do altruísmo, cujo arauto é Comte e cujo princípio é: “viver para os outros”, também fica por conta de instintos simpáticos que, segundo Comte, podem ser gradualmente desenvolvidos pela educação, até que dominem os instintos egoístas (Catéchisme positiviste, 1852, p. 48). A ética biológica de Spencer adota essas teses. Spencer vê na moral a adaptação progressiva do homem às suas condições de vida. O que o indivíduo enxerga como dever ou obrigação moral é resultado de experiências repetidas e acumuladas através de inúmeras gerações: é o ensinamento que essas experiências propiciaram ao homem em sua tentativa de adaptar-se cada vez mais às suas condições vitais. Spencer prevê ainda uma fase em que as ações mais elevadas, necessárias ao desenvolvimento harmônico da vida, serão tão comuns quanto hoje o são as ações
inferiores a que somos impelidos pelo desejo; nessa fase, portanto, a antítese entre egoísmo e altruísmo não terá mais sentido (Data of Ethics, § 46). Pode-se dizer que a ética do evolucionismo não passa da expressão, em termos de otimismo positivista, da ética fundada no princípio da auto-conservaçâo que Telésio e Hobbes reintroduziram no mundo moderno.
Na filosofia contemporânea, essa concepção de ética não sofreu mudanças nem apresentou progressos substanciais. Bertrand Russell limitou-se a repropô-la na forma mais simples e grosseira, afirmando que “a ética não contém afirmações verdadeiras ou falsas, mas consiste em desejos de certa espécie geral” (Religion and Science, 1936). Dizer que alguma coisa é um bem ou um valor positivo é outro modo de dizer “agrada-me” e dizer que algo é mau significa exprimir igualmente uma atitude pessoal e subjetiva. Contudo, Russell acha que é possível influir nos próprios desejos, reforçando alguns e reprimindo ou destruindo outros. E julga também que isso deve ser feito por quem almejar a felicidade ou o equilíbrio da vida. Mas está claro que essa posição é contraditória: se a ética nada tem a ver com desejos, faltam motivos ou critérios para que um deles prevaleça sobre os outros. Na E. de Russell, perdeu-se um dos aspectos fundamentais da ética inglesa tradicional: a exigência do cálculo de tipo benthamiano, ou seja, da disciplina na escolha dos desejos, ou melhor, das alternativas possíveis de conduta. No entanto, foi justamente a esse ponto de vista tão mutilado que se filiou a concepção de ética predominante no positivismo lógico, segundo a qual os juízos éticos expressam tão-somente “os sentimentos de quem fala, sendo portanto impossível encontrar um critério para determinar a sua validade” (Ayer, Language, Truth and Logic, p. 108; cf. Stevenson, Ethics and Language, p. 20). O que, obviamente, é o ponto de vista de Russell, para quem a ética trata de desejos e não de asserções verdadeiras ou falsas; é um ponto de vista que marca a renúncia à compreensão dos fenômenos morais, e não um avanço em sua compreensão. Mostra-se mais frutífero o ponto de vista de Dewey, cuja E. se vincula à noção de valor. Dewey tem em comum com boa parte da filosofia do valor a crença de que os valores são não só objetivos, mas também simples e, portanto, indefiníveis, mas não a crença de que eles são absolutos ou necessários. Para Dewey, os valores são qualidades imediatas sobre as quais, portanto, nada há a dizer; só em virtude de um procedimento crítico e reflexivo é que podem ser preferidos ou preteridos (Theory of Valuation, 1939, p 13). Mas eles são fugazes e precários, negativos e positivos, além de infinitamente diferentes em suas qualidades. Daí a importância da filosofia, que, como “crítica das críticas”, em primeiro lugar tem o objetivo de interpretar acontecimentos para deles fazer instrumentos e meios da realização dos valores, e em segundo lugar, o de renovar o significado dos valores (Experience and Nature, pp. 394 ss.). Essa tarefa da filosofia é condicionada pela renúncia à crença na realidade necessária e no valor absoluto. “Abandonar a busca da realidade e do valor absoluto e imutável pode parecer um sacrifício. Mas essa renúncia é a condição para o empenho numa vocação mais vital. Na busca dos valores que podem ser garantidos e compartilhados por todos, porque vinculados aos fundamentos da vida social, a filosofia não encontrará rivais, mas coadjutores, nos homens de boa vontade” (The Quest for Certainty, p. 295). Essas considerações de Dewey certamente circunscrevem o quadro em que a investigação ética contemporânea deve mover-se, mas não lhe oferecem instrumentos eficazes. Ainda falta na ética contemporânea uma teoria geral da moral que corresponda à teoria geral do direito, ou seja, uma teoria que considere a moral como técnica de conduta e se dedique a considerar as características dessa técnica e as modalidades com que ela se realiza em grupos sociais diferentes. Obviamente, uma teoria geral da moral não partiria de compromisso prévio com determinada tábua de valores; seu compromisso seria simplesmente com a consideração da constituição das tábuas dos valores que se oferecem ao estudo histórico e sociológico da vida moral, com a descoberta, se possível, das condições formais ou gerais de tal constituição. Mas poderia (e deveria) utilizar amplamente a ética do séc. XVIII e, em geral, a ética da motivação, apresentando-se como a continuação dessa concepção.
A propósito das relações entre moral e direito, cabe aqui reafirmar o que se disse a propósito do direito, ou seja, que tais relações podem configurar-se de varias maneiras, mas nunca se especificam como relações de heterogeneidade ou independência recíprocas. A ética como técnica de conduta à primeira vista parece mais ampla que o direito como técnica de coexistência, mas se refletirmos que toda espécie ou forma de conduta é uma forma ou espécie de coexistência, ou vice-versa, logo veremos que a distinção dos dois campos é apenas circunstancial, com vistas a delimitar problemas particulares, grupos de problemas ou campos específicos de consideração e estudo. [Abbagnano]