Filosofia – Pensadores e Obras

Campanella

Campanella é decididamente um homem dos novos tempos, em sua atitude filosófica e em seu conceito do ponto de partida do filosofar. Como Descartes, vê na certeza subjetiva do homem, no sensus sui, no cogito, a raiz de todo o conhecimento. Toda a consciência do objeto é, no fundo, para ele, uma autoconsciência. Distinguem-se, portanto, dois mundos: o mundo interno da mente e o mundo externo ou natural da objetividade. O que caracterizava, porém, o pensamento de Campanella, relativamente ao de Descartes e ao de seus seguidores, é o fato de ter ele concebido a natureza como um todo animado, como um sistema pampsiquista e não como um agregado mecânico de partes, à maneira cartesiana. Campanella concebia a natureza como natura naturans, como vida, e não como natura naturata, isto é, como coisa passiva e morta. Eis por que o homem, no intento de assenhorar-se de seu contorno, deve apoiar-se – segundo ele – não nas técnicas das ciências físico-matemáticas, mas sim nas formulações mágicas da astrologia e no conhecimento filosófico da realidade.

No centro de uma vasta planície, sobre uma colina, ergue-se a imaginária Cidade do Sol. A cidade é cercada por sete muralhas concêntricas, tendo cada um dos sete recintos o nome de um dos sete planetas então conhecidos. No centro desse sistema encontra-se o templo de Heliópolis, verdadeiro edifício celeste, em cuja abóbada e paredes são representadas todas as estrelas e as diferentes partes da terra. Três versículos expõem a influência das [209] estrelas nos destinos da terra. Afirma Campanella que os habitantes da Cidade do Sol não acreditam que a religião possa proibir a astrologia, a não ser aos que dela abusam para adivinhar os atos livres ou os acontecimentos sobrenaturais. Argumenta ele que o próprio Santo Tomás de Aquino e a autoridade do papa permitem o uso da astrologia, em sua aplicação à medicina, à agricultura e à náutica. Assim justifica Campanella o uso da astrologia: “Deus consignou a cada efeito futuro causas universais e particulares, de tal maneira que as particulares não podem atuar, se antes não atuam as universais. Uma planta não floresce se o sol não aquece de perto. As épocas procedem das causas universais, isto é, das causas celestes. Por isso, ao atuarmos, estamos sob o influxo do céu (…). As estrelas são unicamente signos das coisas sobrenaturais e causas universais das naturais e, em relação às causas voluntárias, vêm a ser somente ocasiões, convites ou inclinações. O sol, ao sair, obriga-nos a levantar da cama. Somente nos convida a isso e nos oferece comodidades, do mesmo modo que a noite nos apresenta incomodidades para levantar-nos e comodidades para dormir. E posto que as causas atuam sobre o livre arbítrio unicamente de forma indireta e acidental, agindo sobre o corpo e sobre os sentidos corpóreos anexos aos órgãos, os sentidos estimulam a mente ao amor, ao ódio, à ira e às demais paixões. Porém, ainda nesse caso o homem se vê obrigado a seguir a excitação passional. As heresias, as guerras e a fome, prefiguradas pelas estrelas, se cumprem com frequência porque amiúde os homens deixam levar-se pelo apetite sensual, mais do que pela razão e agem irracionalmente.”

Vemos, pois, que Campanella concebe a realidade como uma trama simpatética de influências e repulsões, na qual reina uma espécie de necessidade suscetível de ser conhecida a até certo ponto controlada pelo homem. Já o ocultista Agrippa von Nettesheim havia afirmado que a magia está intimamente vinculada à astrologia. A própria influência dos fenômenos entre si já é uma espécie de magia natural, sendo o universo um sistema de operações mágicas. É assim que Campanella afirma terem os [210] habitantes de Heliópolis descoberto a arte de voar e o segredo de outras artes, a partir da constituição da Lua e de Mercúrio, pois essas estrelas – segundo ele – influem sobre a atmosfera terrestre. Todas as grandes invenções daquele século – a invenção da imprensa, da bússola e da pólvora – “tiveram lugar por ocasião das grandes conjunções no triângulo de Câncer e no momento em que – ainda segundo afirma Campanella – a ábside de Mercúrio ultrapassa Escorpião, sob a influência da Lua e de Marte”. Esse nexo de influências e determinações mágico-astrológicas não transformam o homem, entretanto, no joguete de um determinismo inexorável. Existe uma equação entre a liberdade e a necessidade, podendo o homem com o auxílio dos conhecimentos astrológicos e mágicos esquivar-se aos imperativos estelares e telúricos. Por outro lado, a astrologia não redunda para Campanella numa astrolatria, isto é, numa adoração dos astros. Como diz ele, “honram, mas não adoram o Sol e as estrelas, considerando-as como seres viventes, estátuas de Deus e templos e altares animados do céu”. Adoram unicamente a Deus, cuja imagem veem no Sol, que é chamado “rosto excelso da divindade, estátua viva, e fonte de toda luz, calor e vida, instrumento de que Deus se serve para transmitir seus dons às coisas inferiores”. Sem essa restrição, que transforma os entes telúricos em símbolos de uma atividade divina superior, Campanella teria aderido a um politeísmo, admitindo uma multiplicidade de centros numinosos independentes.

Todas as coisas em Heliópolis são regidas, entretanto, pela configuração e cursos das coisas cósmicas. A estação das festas, o momento da procriação, a época das sementeiras e da vindima, tudo isso é determinado pelo conhecimento de sua oportunidade sideral. Do ponto de vista filosófico, admitem que a realidade deriva da mistura de dois princípios: o princípio do Ser e o do Não-Ser ou Nada. Todas as coisas derivam de uma combinação do Ser e do Não-Ser, pois segundo Campanella só pode produzir-se o que ainda não existia e, portanto, a própria criação supõe o não-ser e o Nada. Deus ou o Ser se expressam de três maneiras diversas: [211] como poder, como sabedoria e como amor. Dessas três potências divinas derivam os três poderes existentes em Heliópolis, isto é, os três governantes da Cidade do Sol. As suas funções, no contexto da vida da cidade, derivam dos aspectos metafísicos de Deus, aos quais estão subordinados. No entanto, como esses aspectos do poder, da sabedoria e do amor são faces do Deus único, há em Heliópolis, acima dos triúnviros, um chefe supremo, um Rei-Sacerdote denominado Hoh, isto é, o Metafísico. Ao triúnviro do poder cabe a administração de tudo que é relativo à arte militar, à construção de fortificações e máquinas de guerra, à organização dos exercícios e tudo que diz respeito à força e ao poder. Ao triúnviro da sabedoria está consignado tudo que diz respeito às ciências, às artes liberais e mecânicas e a todo aparato educacional. Sob as ordens deste triúnviro há uma estranha galeria de magistrados: o Astrólogo, o Cosmógrafo, o Aritmético, o Geômetra, o Lógico, o Filósofo, o Político e o Moralista. O triúnviro da Sabedoria fez adornar todas as paredes do Templo e os muros circulares da Cidade com pinturas nas quais estão representadas todas as Ciências. Figuras geométricas, com suas respectivas definições e proposições, representações geográficas e históricas, geológicas, botânicas e zoológicas, tudo isso se acha figurado nos vários círculos, num delírio pedagógico verdadeiramente bizarro.

Ao triúnviro do Amor cabe, finalmente, a tarefa do que diz respeito à procriação, para que os homens e mulheres se unam em condições ótimas, a fim de engendrar uma prole perfeita. É curioso, entretanto, que a essa atribuição se agregue tudo que diz respeito à economia, qual seja a agricultura, a pecuária, a farmacopeia, a arte culinária, a indumentária e enfim as coisas referentes ao aspecto vegetativo da vida. No círculo de Afrodite, encontra-se de fato incluído o conjunto do que diz respeito ao crescimento da vida, à fecundidade dos homens e das terras, à germinação das plantas e à multiplicidade dos animais. Sob as ordens do triúnviro do Amor existe grande número de Mestres e de Mestras, inclusive o Grão-Magistrado da procriação que deve controlar toda a ética erótica de Heliópolis. [212]

Na Cidade do Sol, todas as coisas são comuns, não havendo propriedade privada quer no referente a coisas, quer no referente a pessoas. Campanella, em seu impulso de regulamentação do todo social em vista de um modelo arquetípico de existência, aceita com Platão a comunidade das mulheres e dos filhos, devendo ambos pertencer à coletividade. Afirmam os heliopolitanos que “a propriedade, em qualquer de suas formas, nasce e se fomenta pelo fato de que cada um possui a título exclusivo casa, filhos e mulheres. Daí deriva o amor próprio, pois cada qual aspira enriquecer seus filhos, elevá-los aos mais altos postos e convertê-los em herdeiros de numerosos bens. Para consegui-lo, os poderosos e os descendentes de nobre linhagem defraudam o erário público; os débeis, os pobres e os de origem humilde tornavam-se avaros, intrigantes e hipócritas. Pelo contrário, uma vez anulado o amor próprio, subsiste somente o amor à coletividade.” Pensava Campanella que uma vez desobstruído o caminho dos óbices interpostos pelo egoísmo da propriedade estaria o homem em condições de realizar todas as suas potencialidades positivas, atingindo uma felicidade incorruptível. Para isso, entretanto, era necessário instituir uma República Metafísica, que correspondesse aos estatutos arquetípicos e ideais, existentes na mente divina. O conhecimento deveria, pois, preceder a vida e daí o delírio pedagógico que animava os habitantes dessa estranha Cidade.

Se em Campanella o conhecimento adequado a essa atividade político-administrativa é encontrado nas harmonias cósmicas, em nossos dias igual intento de racionalização da vida humana é encontrado no empreendimento das ciências e da técnicas. Nos dois casos, trata-se da empresa prometeica de assenhoramento das coisas, através de uma vontade ordenatória. Poderíamos falar numa loucura da sistematização e da ordem, cujas últimas consequências estamos longe de prever totalmente.

O pampsiquismo de Campanella, para quem o mundo era um grande animal divino, o preservava desta fúria de destruição e de desolação que ora conturba a consciência do homem contemporâneo. Para nós, o mundo é um não-eu material e mecânico, [213] passível das manipulações infinitas da técnica e da indústria. O próprio homem é inserido nesse mecanismo atritante e sem alma, que ora circunscreve a terra. As florestas são destruídas impiedosamente, os rios canalizados e contaminados pelos detritos das fábricas e das cidades, as almas são contaminadas pelos venenos da propaganda e do condicionamento psíquico infracultural. Os mais altos gênios de nosso século, diante do espetáculo trágico que assumiu a nossa civilização, já não esperam mais nada da providencialidade das medidas humanas. A simples tomada de consciência do drama não se transforma numa fórmula de salvação para as coisas sociais e culturais. Há muitos, como Gide, que se refugiam na crença de que só pequenos núcleos de vida pessoal sobrelevarão o preamar da barbárie moderna. Outros, como Bergson, aludindo a uma pretensa lei do “duplo frenesi”, acreditam num retorno cíclico que nos levará da máxima abjeção ao máximo triunfo da vida do espírito. Outros, entretanto, acreditam mesmo no esgotamento total da civilização racionalista e antropocêntrica, vendo na vacuidade crescente da forma humana a antevéspera prenunciadora de uma nova idade dos deuses. [VFSTM:209-214]