Filosofia – Pensadores e Obras

analítica do objeto

Dentro do pensamento ocidental teorias do objeto começam a ser desenvolvidas a partir de Kant, e já em Hegel dispomos de uma rica metafísica exploratória do problema. A Crítica da Razão Pura de Kant aprofunda a questão das condições que tornam possível a intuição do que, genericamente, é nela chamado de “objeto” de nossa consciência. Em Hegel a objetividade se torna uma categoria (dialeticamente) relacionada à subjetividade (o que será largamente explorado por Kierkegaard). Mas, no sentido em que usamos o termo hoje em dia. a primeira teoriaobjeto é formulada por Marx. Desde 1844 Marx procura compreender o processo pelo qual objetificamos, isto é, opomos a nós, algo que em nós teve origem. Na passagem clássica, “o objeto que o trabalho produz, seu produto, se lhe é apresentado como um ser estranho, como uma força independente contraposta a quem o produziu. O produto do trabalho é o trabalho que se fixou num objeto, se coisificou; é uma objetificação do trabalho. A realização do trabalho é sua objetificação. Esta realização se revela, na situações econômicas, como sendo uma desrealização do trabalhador, e a objetificação se mostra como sendo uma perda e servidão ante ao objeto, e a apropriação como alienação”. Nesta passagem dos textos de 1844, Marx sugere uma noção nova de objeto: algo cu;a posição essencial é exterior a nós, e que dessa exterioridade nos domina. Mas que teve sua origem em nós, que foi por nós produzido. Muito mais tarde, numa famosa passagem do primeiro tomo de O Capital, Marx analisa o fetiche da mercadoria. Resumindo suas considerações, Marx nos mostra como a “coisa” existe em dois níveis. O primeiro nível é o nível de sua utilidade, de como a coisa existe para cada um de nós. No segundo nível, a coisa se transforma em mercadoria (ou seja, em objeto). “O caráter místico da mercadoria não se origina em seu valor de uso. Muito pelo contrário, tal caráter ter origem na própria maneira de se determinar o valor”. Esta determinação do valor é “externa” a nós, e é dada “socialmente”. “O valor transforma cada produto do trabalho num hieróglifo social”. O corte realizado por Marx entre valor de uso e valor de troca é extremamente elucidador. O primeiro resulta de uma ontologia da coisa no quotidiano: a coisa só tem “sentido” para nós se “soubermos o que fazer com ela”. Mas o sentido da mercadoria, ou seja, daquilo que tem valor de troca, não mais é dado por sua referência a nós, e sim por sua referência a algo externo a nós, a algum sistema de valores e ideias — a algum sistema ideológico . Toda a crítica econômica de Marx pode ser vista como o desenvolvimento de uma teoria do objeto como mercadoria. A elucidação do valor de troca pela teoria do valor-trabalho é uma tentativa de se mostrar a origem (esquecida) em nós daquilo que valoriza e objetifica a mercadoria. No entanto, processos análogos ao descrito por Marx — onde o trabalhador (nós) produz algo que será cortado, afastado dele (de nós), e se tornará numa força coerciva sobre ele (sobre nós) — vão ser encontrados no mecanismo das neuroses, e terão sua elucidação através da psicanálise. C. G. Jung, num ensaio de 1934, descreve um processo notavelmente próximo daquele descrito em outro nível por Marx: “Todos os esforços da humanidade se dirigem no sentido da fortificação do consciente. A este fim se prestam os ritos, as “representações coletivas”, os dogmas; seriam como que diques e muralhas erguidos contra os perigos do inconsciente, os “perils of the soul”. Jung identifica a origem dos dogmas, ritos e “representações (ou símbolos) da coletividade”: fundam-se todos nos processos dinâmicos e constitutivos do inconsciente que ele denominou de arquétipos. Para Jung, um arquétipo não é uma “imagem” ou um “símbolo”; é um processo, uma tendência que orienta a psique (e o organismo) dentro de certas situações existenciais. A finalidade dos arquétipos é a manifestação de um outro processo bem mais profundo, que é o arquétipo de nossa individualidade, o arquétipo do Si-Mesmo. Quando este caminho “natural” do organismo se vê bloqueado ou dificultado, surgem as neuroses, ou seja, as objetificações dos arquétipos, no que Jung chamou de “diques e muralhas” com as quais o consciente se protege do inconsciente. Ou seja, com as quais o consciente corta suas raízes no inconsciente e se submete ao domínio da exterioridade, da objetividade Uma análise bastante mais rigorosa que a de Jung se encontra no psiquiatra inglês Ronald Fairbairn. Fairbairn desenvolve (baseado em Melanie Klein) uma teoria das neuroses como um relacionamento a “objetos” “bons” e a “objetos” “maus”. A noção de objeto, em Fairbairn, é personalizada: o objeto é certa imagem “cristalizada” de uma pessoa. Ao mesmo tempo, ao lado dos objetos “totais” existem os “objetos parciais”. Um objeto total é uma imagem inalcançável, alienada, do outro , de uma pessoa com quem nós nos devemos relacionar dentro do mundo, mas que vemos como inacessível . Sendo absolutamente imperativo tal relacionamento, ele se fará não com a própria pessoa, mas sim com o objeto que associamos a (e substituímos por) ela. O processo é esquizóide, isto é, há um corte a priori entre o outro e nós. No objeto parcial, uma parte (não personalizada, isto é, não ligada à consciência) do outro constitui a base da imagem com a qual estabeleceremos nossa relação. No objeto parcial, à impossibilidade do relacionamento com o outro se acrescenta a impossibilidade de totalizar o outro, de compreendê-lo como uma personalidade, como um indivíduo. A fetichização é um processo associado a objetos parciais; por exemplo, hoje em dia, por trás da propaganda sobre a “libertação da mulher” existe um processo radical de fetichização. Recentemente uma revista ilustra reportagem sobre a “Nova Mulher” com uma fotografia de uma mulher deitada, da qual não se via a parte superior do corpo (isto é, a cabeça e o busto), vestida com uma mini-saia de couro e botas. Esta imagem da “mulher emancipada” é um objeto parcial: não tem personalidade (o rosto foi cortado fora da fotografia), e os elementos que dominam e caracterizam seu corpo são representações do jogo erótico (a mini-saia de couro e as botas metaforizam o pênis fetichizado). As representações que fundam o objeto parcial se associam aos processos orgânicos não individualizáveis de nosso corpo; o sexo e as funções excretoras pertencem a esta categoria. Expressões como “a animalidade do sexo” ou “a brutalidade erótica” se fundam em objetos parciais. A analítica do objeto. Tanto as ideias de Marx quanto estas considerações psicanalíticas se baseiam em “teorias do objeto”, ou seja, em teorias que elucidam objetos dentro de uma ontologia fixada a priori. Em Marx, por exemplo, esta ontologia é a praxis, (v. modo de produção) a compreensão da existência através dos processos sociais de interação e troca. Na psicanálise, nas primeiras tentativas de Freud, este fundamento ontológico poderia ser a biologia; mais tarde, no entanto, fica fácil perceber a irredutibilidade das posições freudianas a uma teoria biológica. Em Fairbairn a noção de objeto é muito mais fenomenológica do que seria se apenas uma noção baseada em certa ontologia fundadora (como o pode aqui ser a biologia) . Surge então a pergunta: poderia uma análise fenomenológica desenvolver uma teoria do objeto capaz de elucidar posições tão afastadas quanto as teorias econômicas do objeto e as teorias psicanalíticas do objeto, e sem ser uma redução disfarçada da primeira à segunda, ou vice-versa? Esta pergunta só pode ser efetivamente respondida se desenvolvermos tal teoria do objeto. Ela será a analítica do objeto, e pretenderá ao status de uma ontologia fundamental para as demais teorias do objeto.

No sentido em que usamos, o termo, todas as analíticas do objeto são neo-heideggerianas, desde que a primeira delas é a analítica da existência de Heidegger. Entre as construções mais notáveis se acham desde os trabalhos de Merleau-Ponty até os de Laing. As noções que aqui resumimos foram extensamente expostas em outra parte. Inicialmente, é preciso esclarecer o sentido do termo “analítica”. O que funda uma analítica é a experiência apofântica; etimologicamente, apophansis significa “o que se desvela”. A experiência da apophansis é a experiência de uma realidade existencialmente incontestável. Num museu, o dedo que percorre um quadro até pouco antes indiferente para nós realiza um gesto apofântico, e nos “revela” o quadro, “como nunca antes o havíamos visto”. É a apophansis da obra de arte. Como também será a apophansis do poema ouvi-lo lido “com uma entonação especial”, ou “numa circunstância diferente”. A “entonação especial”, a “circunstância diferente” são os gestos apofânticos, e a experiência da “beleza” do poema é sua apophansis. A analítica do objeto deseja ser o gesto apofântico que provoca a experiência da natureza do objeto. Crítica da noção de “analítica”. Dentro desta acepção dos termos “analítica”, apophansis, e “gesto apofântico”, o próprio pensamento de Heidegger deseja ser um gesto apofântico: aquele que revela a experiência da “História do Ser’” Como o próprio Heidegger nos diz num de seus últimos textos, trata-se de se obter “a experiência de algo que não pode ser trazido abertamente à luz do dia”. A noção de analítica, vista como a preparação de uma apophansis, é uma noção aparentemente paradoxal. Por um lado, a analítica pretende indicar uma realidade “que não pode ser dita”, “que está além da linguagem”. Por outro lado, será através da linguagem que a analítica se constituirá. Este paradoxo pode ser levantado se percebermos como a própria experiência da apophansis é o que funda a linguagem; a linguagem nos conduz a uma apophansis e a apophansis nos prepara uma “nova” linguagem. Metaforicamente, a apophansis é o silêncio que conduz à linguagem articulada. Uma bela sinfonia “nos tira a fala”, mas pode revelar em nós uma vocação musical; a angústia “paralisante” que nos domina após o término do caso amoroso pode nos abrir a experiência da facticidade de nossa existência, e possibilitar a constituição de um fundamento mais sólido para nossa vida. Assim, o fenômeno da apophansis é irredutível; a psicologia gestaltista, por exemplo, pode associá-lo ao “insight”, e pode desenvolver toda uma teoria que o explique dentro de categorias como o “encontro da melhor forma” ou semelhante. Mas já o fato de nós explicarmos a apóphansis através de uma categoria representa nós nos afastarmos da experiência do silêncio que é seu centro. Para os gregos pré-socráticos, o núcleo da “verdade” (aletheia) como “desvelamento” era a lethe, a “ocultação”. Da mesma forma, a experiência da apophansis é o silêncio que precede a linguagem, e que a torna possível. Nenhuma experiência é redutível à linguagem, mas a linguagem pode preparar uma experiência. [Francisco Doria – DCC]