gr. psyche; ligação com a vida e com o movimento no pensamento pré-filosófico, psyche 2-3; e respiração 4-5; revisão da psicologia homérica, 6; no atomismo, 7-8; Empédocles, 9; harmonia pitagórica, 10-11; alma xamanística, 12-13; alma unitária em Platão, 14; alma tripartida, 15-19; crítica aristotélica dos platonistas, 20-22; ponto de vista aristotélico, 23; partes e faculdades, 24-25; imortalidade de, 26; epicurista, 27; estoica, 28; posição mediai no platonismo tardio, 29: hipóstase neoplatônica, 30; partição em Plotino, 31-32; almas individuais em Plotino, 33-34; teoria de Proclo, 35-36; abordagem doxográfica de, endoxon 8; ligação com o corpo no estoicismo, genesis 18; estados da alma em Aristóteles, hexis; como causa do mal em Platão, kakon 3; e Proclo, ibid. 9; queda de, kathodos, passim; purificação e purgação de, katharsis, passim; funções de em Aristóteles, kinesis 8; alma humana e Alma do Mundo em Platão, kinoun 5; como fonte do movimento em Platão, ibid. 4-5; em Aristóteles, ibid. 8; posição intermediária, metaxu 2, noûs 6; princípio cognitivo em Platão, noesis 8; alma e espírito na tradição atomista, kardia 2, noesis 13-14; intelectualização temporária na Stoa sob Crisipo, noesis 17; alma demoníaca, ibid.; alma e intelecto em Platão, noûs 6; sob a influência das almas das estrelas, ochema 4; problema da sua imortalidade, pathos 10; natureza como o lado inferior da alma [FEPeters]
Dá-se o nome de alma (em grego: psyche) (no homem) à substância imaterial que permanece no meio das variações dos processos vitais, eme em si produz e sustem as atividades da vida psíquica e vivifica o organismo. (Nos tratados de psicologia todavia influenciados pelo positivismo, denomina-se frequentemente alma o mero complexo dos processos psíquicos; para outros, o termo significa, de preferência, o viver consciente não racional; nem falta quem lhe atribua outros significados). Em conformidade com os três graus de vida, distinguem-se a alma vital ou vegetativa (enteléquia, princípio vital do organismo (princípio vital), a alma sensitiva (princípio da vida sensitivo-animal) e a alma racional ou espiritual (princípio das atividades vitais superiores, espirituais do pensar e do apetecer). — A simples experiência cotidiana e as mais antigas convicções de ordem psicológica, ética e religiosa da humanidade, não menos do que a totalidade e a unidade da vida anímica, tão acentuadas pela moderna ciência empírica, incitam a tentar desvendar a questão da existência e demonstrabilidade da alma humana. A existência de uma alma imaterial foi impugnada pelo materialismo, para o qual só existem matéria e processos físico-químicos (materialismo de salão do Iluminismo francês, materialismo popular e de cátedra desde K. Vogt e L. Buchner no século XIX, reflexologia de Pavlov, Bechterev e outros no século XX). A filosofia atualista ou atualismo impugna a existência de uma alma como substância. Dissolve ela todo ser estável em puro devir, em ação sem agente e, de acordo com isso, considera unicamente como alma o complexo constantemente variável de atividades e vivências anímicas (o panta rei, “tudo flui”, de Heráclito; as modernas psicologias atualistas de Wundt e Bergson: não existem coisas, só existem atividades; de Paulsen, que explica poderem as atividades existir sem substância que as pratique, do mesmo modo que as estreias flutuam no cosmos, sem aderirem ao firmamento). — A cognoscibilidade filosófica da alma é negada pelo positivismo, de acordo com o seu postulado de que o pensamento científico não pode transitar para o plano metafísico, e pelo criticismo kantiano da “Crítica da Razão Pura”, para o qual toda a doutrina teorética acerca da alma está edificada sobre um paralogismo.
Contra estas opiniões se. erguem quase todas as religiões da humanidade, bem como a convicção milenária do pensamento filosófico relativamente à existência da alma: desde os clássicos da filosofia antiga (Platão, Aristóteles, Plotino), passando pelos séculos da patrística e da escolástica, do racionalismo de Desça, Us e de Leibniz, incluindo o primeiro empirismo (Locke. Berkeley), da ética de Kant (a qual. pelo menos, “postula” a alma), até ao retorno da moderna filosofia à doutrina da alma e do princípio vital (Driesch, Becher, Pfänder e outros).
A existência da alma infere-se da imediata auto-experiência do homem e da observação exterior da vida. Não possuímos, é claro, a vivência de uma alma desligada de seus atos, mas vivemos imediatamente nossos fatos conscienciais como atividades ou estados de nosso eu, que não pairam em si mesmos, como que privados de um suporte que os mantenha: vivemos o eu pensante, o eu querente . . . Vivemos a vasta opulência de todos os fatos conscienciais simultâneos ou sucessivamente variáveis no decurso do tempo, como pertencentes a um único eu que permanece idêntico na variação dos fenômenos psíquicos. (Os fenômenos patológicos, aparentemente oi os-tos, de desdobramento da personalidade revelam-se, quando examinados com maior exatidão, não como desdobramentos ou divisões do eu, senão como juízos errôneos ou descrições bizarras de uma deficiente unidade de sentido das vivências que normalmente são habituais). Não vivemos o eu como mero “ponto de referência” das atividades, não como mero “acontecer e devir”, mas sim como um ser em si estável, que “põe” os atos, que produz e reconhece como seus os estados psíquicos e por eles é responsável (em parte e sob determinadas condições [VIDE liberdade da vontade]); numa palavra, como princípio permanente e sustentáculo de toda a vida psíquica consciente. De acordo com isto, deve ser um ente substancial, que, por seu turno, não se reduz a um mero “estado” ou “maneira de ser”, nem a uma “atividade”. (A alusão de Paulsen às estreias caduca, porque as estrelas não são precisamente atividades. Deveria ele ter mostrado que, por exemplo, podia haver movimento estelar sem estrelas movidas). As objeções do positivismo e do criticismo contra a possibilidade de uma metafísica da alma refutam-se mediante a fundamentação positiva da metafísica na teoria geral do conhecimento (VIDE teoria do conhecimento).
A alma humana, como princípio da vida intelectual, é simples (simplicidade) e espiritual (espírito). É simultaneamente o princípio da vida animal sensitiva (consoante o mostra a unidade da consciência intelectivo-sensitiva) e, enquanto forma vital do corpo, ó também princípio da vida vegetativa do organismo (hilemorfismo, corpo e alma [Relação entre]). Um tricotomismo, que admite, no homem,espírito, alma e princípio vegetativo como princípios realmente distintos, não se coaduna com a realidade do viver consciente nem com a unidade de sentido dos processos vitais. Pelo contrário, a mesma alma espiritual exterioriza-se na vida sensitivo-vegetativa, para, por seu turno, tomá-la a seu serviço e ligá-la à síntese da vida integralmente humana. — A alma humana, enquanto ser espiritual, não pode ter evoluído a partir da alma puramente sensitiva dos simples animais, qualquer que tenha sido a maneira como se originou o corpo do primeiro homem. Não pode também proceder de outras almas humanas (generacionisimo, traducionismo), pois não é possível que de uma alma espiritual se desprendam parte de si mesma, que se desenvolvam em novas almas. Cada alma humana deve sua origem a um ato criativo de Deus. Uma vez criada, a alma simples e espiritual não pode ser destruída (decomposta em partes) por nenhuma força criada, e Deus, que a criou, não a aniquilará (VIDE imortalidade.) — Willwoll. [Brugger]
A noção da alma desenvolveu-se diretamente do que existe como representação primitiva em certos estados etnológicos, que verificamos também nos gregos: a crença, amplamente exemplificada em Homero, de que o homem possui um «duplo», uma sombra da sua existência corporal, a psique (psyche). Esta foi representada como distinta e como separável do corpo, sem, entretanto, ser concebida como uma realidade superior; foi antes um sopro que deu a vida. Também o livro da Gênesis diz que «Deus insuflou a vida em Adão», um outro corpo mais fino e sutil, que não se podia pegar com as mãos (Odisseia, 11, 207), que, no sono, temporariamente, se podia separar do homem, e em sonhos até aparecer e colocar-se diante dele, e que, na morte, deixa o corpo definitivamente pela boca ou por um ferimento (Ilíada, 16, 505) para continuar, em um lugar destinado às sombras humanas, uma existência triste, que não se pode mais chamar de vida.
Dotadas sem mais substancialidades e até de força ativa aparecem as almas dos mortos, que foram objeto de venerações e de cultos por parte dos seus descendentes. Entre os Romanos, achamos muito pronunciada essa crença na influência dos manes (originalmente dos «bons», de um Adjetivo antigo «manus», bom), das almas dos mortos, que se acham com os deuses do inferno.
No culto de Dioniso, introduzido da Trácia, a alma ganha uma posição mais independente do corpo, e uma valoração superior àquela. Ali a inclusão da alma no corpo toma o aspecto de um castigo. A mansão própria da alma não é o Hades, mas um mundo superior às estrelas. A volta a este mundo divino é o objetivo da alma e, portanto, o objetivo do homem, do qual à alma forma só a parte superior. No êxtase (de extasis, de ex, fora e stásis, colocação), efetuado pela música sagrada ou pelo jejum, a alma separa-se temporariamente do corpo, reunindo-se a Deus, e tornando-se inspirada por ele. Aqui aparece um dualismo muito pronunciado entre corpo e alma, que, porém, é ético, antes que metafísico.
Enquanto a experiência ética já tinha se elevado a este ponto, a filosofia natural não distinguiu geralmente entre psique e cosmos.
Em Anaxágoras, a psique faz parte do noûs, que move o universo, antecipando, com isso, um ponto de vista que considera a psique não só em relação ou oposição ao corpo, mas também ao espírito (noûs).
Os pitagóricos, em parte, procuraram estabelecer um acordo entre a psique e as realidades cosmológicas, concebendo aquela como a «harmonia do elemento corpóreo». Mas, esse papel meramente funcional não está de acordo com o fato da substancialidade da alma, indispensável pressuposição da crença na transmigração da alma, atribuída aos pitagóricos.
As diferentes atribuições da alma, enquanto constituem valorações positivas, foram reunidas e interpretadas, plausivelmente, por Platão. Segundo ele, a psique move a si mesma, é imortal e congênita aos Deuses. Afirmava ele permanecer na visão pura das ideias eternas, que contrastam com a corruptibilidade do mundo visível e, ainda cônscia daquele mundo absoluto do ser verdadeiro, a vida ligada ao corpo significa, para ele, uma existência inferior. Para Aristóteles, a psique é o princípio ativo do movimento e da vida, a forma do corpo e a enteléquia, como o princípio peculiar de ordem dos elementos corpóreos. Conforme as diferentes manifestações da atividade da alma, distingue a alma vegetativa, a animal e a racional, as quais não podem ser separadas do corpo. Uma parte está dentro da alma racional, porém outra vem
de fora e sobrevive à existência corpórea, o «noûs poietikos», o noûs ativo.
A existência de um princípio independente do corpo tornava-se uma hipótese necessária, pois até os estoicos se viram na contingência de admitir um «pneuma» (de pneô, soprar) como intermediário entre a psique e o corpo. Paralelamente se desenvolveram outras teorias, mais naturalistas, que se preocuparam, em primeiro lugar, pelo problema da localização da alma e das suas diferentes partes, quer no cérebro, quer em outros órgãos do corpo humano.
Contrariamente à acepção do «pneuma» entre os estoicos, a doutrina do Apóstolo Paulo, como a teologia judaico-alexandrina (Filon e outros neo-platônicos) colocam o pneuma acima da psique, porque é o sopro divino, aproximando-se, assim, à concepção moderna do «espírito», que é menos fisiológico e mais sistencialmente puro do que «psique;». O pneuma paulino é o hagion pneuma, de hagios, Santo, «Espírito Santo», que simultaneamente é o próprio Deus, e habita na alma do homem. Este pneuma se identifica com o logos e o noûs, e se opõe, por ser mais universal e superindividual, à psique, sempre essencialmente destinada a um corpo. A psique é, portanto, individual, mas, por isso, o problema da substancialidade e consequentemente da sobrevivência, prende-se sempre à «psique» e não ao «espirito».
A divisão da natureza humana em corpo, psique e pneuma (trieotomia) encontrou defensores em nossos dias.
Os escolásticos, quando trataram da alma sob o ângulo filosófico, deram mais relevo à concepção aristotélica, como forma tio corpo, não sem certas dificuldades na questão da existência da forma separada do corpo. Não desertar da substancialidade da alma foi o ditame que lhes veio da Teologia, para não pôr em perigo a doutrina da imortalidade da alma humana individual. Aristóteles, porém, com pronunciadas tendências de naturalista, em sua psicologia (De Anima, Peri Psychôs) se baseava, principalmente, em fatos de observação, e não tinha nenhum preconceito em favor da substancialidade da alma.
A questão fica aberta. Como tratar o problema da substancialidade da alma com meios puramente filosóficos ?
Kant respondeu a essa pergunta do seguinte modo: A ideia da alma humana, do «eu», está fundada a Psicologia Racional. Ela demonstra que a alma não é algo material, que é uma substância que permanece eternamente, que é simples (não constituída de partes), e que é individual, um «eu». Em verdade, porém, pela experiência, só sabemos que existe a «unidade transcendental de consciências, porque, se não fosse assim, seria impossível a experiência. Mas, o homem não pode saber se realmente existe tal «portador» da unidade transcendental, se é matéria ou espírito, que lhe ocorre quando concluiu o processo da experiência (quer dizer, depois da morte).»
Se, então, não podemos saber nada a respeito da substancialidade da alma, podemos — ainda segundo Kant — pelo menos saber donde veio essa ideia pairar em nossa representação: alma.
Mundo e Deus não são mais que ideias da razão pura, produzidas sobre a mesma base e com o mesmo fim como as outras ideias da razão. Todos os fatos da experiência externa são abarcados por uma ideia: Mundo. Todos os fatos da experiência interna, psíquica, são compreendidos em uma ideia: Alma. E, aplicando a razão às categorias de substância, causa e necessidade, e a essas duas esferas da experiência, surge a ideia de Deus.
A filosofia moderna é caracterizada por uma aversão quase unânime à teoria da substancialidade, e chega, assim, a conceber a alma como o conjunto das suas propriedades ou como, no caso da «Teoria da Atualidade», como a mera soma das suas atividades conscientes.
Com as teorias da «não-substancialidade» também o conceito de «almas coletivas» perde seu caráter análogo e metafórico, e pode ser erigido com pleno direito ao lado da alma individual. Mas, a aceitação de uma alma coletiva significa pouco se ela não passa de mera soma das atualizações dos indivíduos, que fazem parte da respectiva coletividade. Todavia, foi O. Spann quem atribuiu à alma coletiva um valor independente pela observação de que o pensar, o querer, o amar, o odiar cem companhia», é produtivo, quer dizer: que a atividade de uma alma coletiva é capaz de criar valores, que não se podem esperar da atividade individual.
Essa ideia funda uma nova subjetividade coletiva, que, porém, não é substancialidade.
Vide ainda os artigos: substancialidade e espírito. [Ferrater]
(gr. psyche; lat. anima; in. Soul; fr. Âme; al. Seele; it. Anima).
Em geral, o princípio da vida, da sensibilidade e das atividades espirituais (como quer que sejam entendidas e classificadas), enquanto constitui uma entidade em si, ou substância. Esta última noção é importante porque o uso da noção de alma está condicionado pelo reconhecimento de que certo conjunto de operações ou de eventos, chamados “psíquicos” ou “espirituais”, constituem manifestações de um princípio autônomo, irredutível, pela sua originalidade, a outras realidades, embora em relação com elas. Que a alma seja incorpórea ou tenha a mesma constituição das coisas corpóreas é questão menos importante, já que a solução materialista em geral se fundamenta, assim como a solução oposta, no reconhecimento da alma como substância. Nesse significado fundamental, a alma é o mais das vezes considerada como “substância”: entendendo-se por esse termo precisamente uma realidade em si, isto é, que existe independentemente das outras (v. substância). O reconhecimento da realidade-alma parece prover sólido fundamento aos valores vinculados às atividades espirituais humanas, os quais, sem ela, pareceriam suspensos no nada; de modo que a substancialidade da alma é considerada, pela maior parte das teorias filosóficas tradicionais, como uma garantia da estabilidade e da permanência desses valores; garantia que, às vezes, é reforçada pela crença de que a alma é, no mundo, a realidade mais alta ou última, ou, às vezes, o próprio princípio ordenador e governador do mundo. Dadas essas características da noção, a sua história filosófica apresenta-se relativamente monótona, por ser, predominantemente, a reiteração da realidade da alma nos termos dos conceitos que cada filósofo assume para definir a própria realidade. Assim, p. ex., a alma é ar para Anaxímenes (Fr. 2, Diels) e para Diógenes de Apolônia (Fr. 5, Diels), que julgam ser o ar o princípio das coisas; é harmonia para os pitagóricos (Aristóteles, Pol., VIII, 5, 1340 b 19), que na harmonia exprimível em números veem a própria estrutura do cosmos; é fogo para Heráclito (Fr. 36, Diels), que vê no fogo o princípio universal; para Demócrito, é formada por átomos redondos, que podem penetrar no corpo com grande rapidez e movê-lo (Aristóteles, Dean., I, 2, 404,1); e assim por diante. Provavelmente Platão só fez exprimir um pensamento implícito nessas determinações, quando afirmou que a alma se move por si e a definiu com base nessa característica. “Todo corpo cujo movimento é imprimido de fora é inanimado, todo corpo que se move de per si, do seu interior, é animado; e essa é, precisamente, a natureza da alma” (Fed., 245 d). A alma é, portanto, a causa da vida (Crat., 399 d) e por isso é imortal, já que a vida constitui a sua própria essência (Fed., 105 d ss.). Com essas determinações, Platão fazia nítida distinção entre a realidade da alma, simples, incorpórea, que se move por si, que vive e dá vida, e a realidade corpórea, que tem os caracteres opostos. E essas determinações deviam servir de base a todas as considerações filosóficas ulteriores sobre a alma.
Entre elas, a de Aristóteles é a mais importante, pois as determinações que ele atribui ao ser psíquico, nos termos do seu conceito de ser, deveriam permanecer por longo tempo o modelo de boa parte das doutrinas da alma. Segundo Aristóteles, a alma é a substância do corpo. É definida como “o ato final (entelechid) mais importante de um corpo que tem a vida em potência”. A alma está para o corpo assim como a visão está para o órgão da visão: é a realização da capacidade própria de um corpo orgânico. Assim como todo instrumento tem sua função, que é o ato ou a atividade do instrumento (como, p. ex., a função do machado é cortar), também o organismo, enquanto instrumento, tem a função de viver e de pensar, e o ato dessa função é a alma (Dean., II, 1, 412 a 10). Por isso, a alma não é separável do corpo ou, ao menos, não são separáveis do corpo as partes da alma que são atividades das partes do corpo, já que nada impede que sejam separáveis as partes que não são atividade do corpo (ibid., 413 a 4 ss.). Com essa restrição, Aristóteles alude à parte intelectiva da alma, que ele chama de “um outro gênero de alma”, e a considera como a única separável do corpo (ibid., II, 2, 413 b 26). Como ato ou atividade, a alma é forma e como forma é substância, em uma das três determinações da substância, que são: forma, matéria ou o composto de forma e matéria. A matéria é potência, a forma é ato e todo ser animado é composto por essas duas coisas; mas enquanto o corpo não é o ato da alma, a alma é a atividade de um corpo determinado, isto é, a realização da potência própria desse corpo: donde se pode dizer que ela não existe nem sem o corpo nem como corpo (ibid., 414 a 11).
Essas determinações aristotélicas constituíram, por séculos a fio, todo o projeto da “psicologia da alma”. Consoante os vários interesses (metafísico, moral, religioso) que orientaram os desenvolvimentos dessa psicologia, ao longo de sua história deu-se maior ênfase a uma ou a outra das determinações aristotélicas. Destas, as mais importantes são: que a alma é substância, isto é, realidade no sentido forte do termo, e princípio independente de operações, isto é, causa. São determinações cuja finalidade é garantir um sólido sustentáculo para as atividades espirituais, portanto para os valores produzidos por tais atividades. A segunda série de determinações é a da simplicidade e da indi-visibilidade, cujo objetivo é garantir a impas-sibilidade da alma em face das mudanças do corpo e, através de sua indecomponibilidade, a sua imortalidade. A terceira determinação importante é a sua relação com o corpo, definida por Aristóteles como relação da forma com a matéria, do ato com a potência. A primeira determinação não é negada nem mesmo pelos materialistas. Epicuro, que diz ser a alma composta por partículas sutis, difundidas por todo o corpo como um sopro quente, crê, todavia, que ela tem a capacidade causativa da sensação, que é preparada pelo corpo — que dela participa —, mas que, em certa medida, é independente do próprio corpo, pois, quando a alma se separa do corpo, este deixa de ter sensibilidade (Ep. a Herod., 63 ss.). Desse modo, a alma não é simples nem imortal (dissolve-se nas suas partículas com a morte do corpo), mas ainda é uma realidade em si, dotada de capacidade causativa própria, indispensável à vida do corpo. De modo análogo, os estoicos julgam que a alma é um sopro congênito; que, como tal, é corpo, pois, se não o fosse, não poderia unir-se a ele nem separar-se dele; todavia, pode ser imortal, como é certamente imortal a alma do mundo, de que fazem parte as alma dos seres animados e as dos sábios (Dióg. L., VII, 156-67). Aqui, a corporeidade da alma não a isenta de simplicidade nem de imortalidade; o mesmo se dá com a concepção de Tertuliano, que também a considera um sopro, ou flatus, de Deus e, portanto, gerada, corpórea e imortal (De an., 8 ss.).
A aceitação quase universal da doutrina aristotélica da alma tem uma exceção em Plotino, que critica tanto a doutrina segundo a qual a alma é corpo quanto a da alma como forma do corpo (Enn., IV, 7, 2 ss.; IV, 7, 8, 5). E o motivo é um só: Plotino não acha que a alma tenha ligação alguma com o corpo e a sua única preocupação é definir a realidade exatamente nos termos da sua independência em relação ao corpo e a todas as determinações corpóreas. Por conseguinte, Plotino acentua os caracteres divinos da alma: sua unidade e indivisibilidade, donde sua ingenerabilidade e incorruptibilidade, que são todos caracteres negativos, assim como, aliás, são negativos os caracteres que Plotino atribui a Deus. Mas qual é a via de acesso à realidade da alma assim entendida? Plotino responde que, para examinar-se a natureza de uma coisa, é preciso considerá-la em sua pureza, pois tudo o que se lhe acrescenta é um obstáculo a seu conhecimento. Daí, para examinar-se o que é a alma, é preciso retirar-lhe tudo o que lhe é estranho, isto é, convém olhar para sisi mesmo e retirar-se na própria interioridade. Desse modo, a noção de consciência, entendida como introspecção ou reflexão sobre si mesmo, ou reflexão interior, graças a Plotino, começa a superar a noção de alma, já que a própria alma é reduzida ao movimento de introspecção. “Não é saindo da alma”, diz Plotino, “que se podem ver a sabedoria e a justiça; a alma vê essas coisas em si mesma, na sua reflexão sobre si mesma; no seu estado primeiro, vê-as em si como estátuas cheias da ferrugem do tempo, que ela limpa. É como se o ouro tivesse alma è ficasse livre do lodo que o cobrisse: no início, estaria na ignorância de si mesmo, não se veria como ouro, depois, admiraria a si mesmo vendo-se isolado, e não desejaria ter outra beleza estranha, mas seria tanto mais forte quanto mais ficasse entregue a si mesmo” (Enn., IV, 7, 10). Essas palavras de Plotino abrem a outra alternativa da doutrina da alma, isto é, aquela pela qual acabará sendo suplantada pelo conceito de consciência. Aqui, retirar-se em sisi mesmo, ficar entregue a si mesmo, olhar para a própria interioridade, refletir sobre si são expressões que servem para definir um tipo de busca que prescinde completamente do corpo e, por isso, também daquilo com que o corpo se põe em relação, isto é, as coisas e os outros homens (ibid., V, 3, 1-2).
Os neoplatônicos e os Pais da igreja oriental repetem as determinações neoplatônicas: a imaterialidade e a unidade da alma são os caracteres fundamentais, atribuídos por Porfírio (Stobeo, Ecl., I, 818) e por Proclo (Inst. theol., 15), assim como por Gregório de Nissa (De an. etresur., pp. 98 ss.). Mas é sobretudo S. Agostinho que recolhe a herança do neoplatonismo e a transmite ao mundo cristão, com o reconhecimento da interioridade espiritual como via de acesso privilegiada à realidade própria da alma.
Essa via de acesso é a experiência interior, a reflexão sobre a própria interioridade, a “confissão” como reconhecimento da realidade íntima; em uma palavra, o que na linguagem moderna se chama consciência. Nos Solilóquios (I, 2), S. Agostinho declarava não querer conhecer nada além de “Deus e a alma”. Mas, para ele, Deus e a alma não exigem duas indagações paralelas ou de qualquer forma diferentes, já que Deus está na alma e se revela na mais oculta interioridade da própria alma “Não saias de ti, volta-te para ti mesmo, no interior do homem mora a verdade; e, se achares mutável a tua natureza, transcende-te a ti mesmo” (De vera rei, § 39). Essa atitude, que domina toda a busca agostiniana, deveria produzir frutos mais tarde, a começar pela Escolástica tardia. — Mas a Escolástica, em seu conjunto, é dominada pela doutrina aristotélica da alma, reproposta quase nos mesmos termos desde Scotus Erigena (De divis. nat., II, 23) até Duns Scot (Op. Ox., IV, 43, q. 2), que se limita a acrescentar que, sendo a alma a forma do corpo, como dizia Aristóteles, não pode subsistir quando o corpo é destruído; logo, a imortalidade é pura matéria de fé. As próprias observações de Tomás de Aquino (5. 3Tb., I, q. 75; Contra Gent., II, 79 ss.) nada acrescentam à doutrina aristotélica da alma, salvo a maior insistência na independência desta em relação ao corpo, com o fim de assegurar-lhe a imortalidade. A única inovação que a Escolástica agostiniana apresenta em relação a essa teoria, em oposição à orientação áristotelicotomista da mesma Escolástica, diz respeito à relação entre alma e corpo: a admissão de uraz forma corporeitatis, que é própria do corpo como tal, anteriormente à sua união com a alma, e que o predispõe a tal união. A forma corporeitatis é a realidade que o corpo humano possui, como corpo orgânico, independentemente da sua união com a alma (Duns Scot, Op. Ox., IV, 11, q. 3; Ockham, Quodl, II, q. 10). Essa admissão vincula-se ao reconhecimento de que a matéria, em geral, não é pura potência, mas possui, já como matéria, certa realidade atual que é precisamente a forma corporeitatis (v. agostinismo).
Mas a Escolástica do séc. XIV oferece-nos, com Ockham, uma inovação muito mais radical: a dúvida apresentada sobre a realidade da alma intelectiva. Diz, com efeito, Ockham (Quodl., I, q. 10) que, se entendermos por alma intelectiva “uma forma imaterial e incorruptível que está por inteiro em todo o corpo e por inteiro em cada parte, não se pode conhecer com evidência, nem com a razão nem com a experiência, que tal alma seja forma do corpo e que o entendimento seja próprio de semelhante substância”. De fato, as razões que se podem aduzir para a demonstração de tal forma são dúbias; e, quanto à experiência, tudo o que experimentamos são a intelecção, a voliçâo, etc.: operações que podem muito bem ser próprias de uma “forma extensa, generável e corruptível”, isto é, do próprio corpo. Por isso, Ockham relega a matérias de fé não só a imortalidade da alma (como já havia feito Scot), mas a própria realidade da alma intelectiva como suposto sujeito das operações espirituais de que temos experiência. Essa negação baseia-se precisamente na experiência que se tem dos próprios atos espirituais (intelectivos e volitivos), experiência que, para Ockham, é um conhecimento intuitivo e de natureza espiritual (cognitio intuitiva intellectivd), pelo qual estão imediatamente presentes, na sua singularidade e nas suas relações recíprocas, os atos ou as operações espirituais (In Sent., prol. q. 1; Quodi, I, q. 14; II, 1. 12). — Com essas observações, o conceito de experiência interna, diferente da experiência sensível ou externa, era introduzido na história da filosofia, precisamente quando a realidade a que tal experiência deveria dar acesso, isto é, a realidade da alma, era posta em dúvida. Com Descartes, a experiência interna deveria tornar-se o ponto de partida da filosofia moderna.
A noção de alma como substância sobrevive à crise do Renascimento. Nem mesmo o materialismo de Telésio e o de Hobbes constituem negações propriamente ditas da substancialidade da alma. Telésio admite uma substância intelectiva, diretamente criada e infundida por Deus no homem, só para explicar a vida religiosa do homem, a sua aspiração ao transcendente (De rer. nat., V, 2); mas o mesmo “espírito animal”, de que ele se vale para explicar a sensibilidade, a inteligência e até a vida moral do homem, embora sendo de natureza corpórea e produzido pelo sêmen, é por ele considerado como realidade em si, como “substância” (ibid., V, 10). Quanto a Hobbes, declara ilegítima a transição operada por Descartes da proposição “Sou uma coisa que pensa”, que é indubitável, à proposição “Sou uma substância pensante”, já que não é necessário que a coisa que pensa seja pensamento, mas pode ser o próprio corpo (III Objections, 2). Mas a interpretação materialista não nega que a alma seja uma “coisa”, isto é, uma “realidade”.
No que diz respeito à noção de alma no mundo moderno, o desenvolvimento decisivo ocorre com Descartes, em cuja doutrina a reafirmação da realidade da alma une-se ao reconhecimento de uma via de acesso privilegiada a tal realidade. Essa via de acesso é o pensamento, ou melhor, a consciência. O cogito ergo sum revela de modo evidente, segundo Descartes, a substância pensante, isto é, revela “um ser, cuja existência nos é mais conhecida do que a dos outros seres, de modo que pode servir como princípio para conhecê-los” (Lett. à Clercelier, em OEuvres, IV, 443). Ora, o cogito compreende “tudo o que está em mim e de que sou imediatamente consciente” (II Rep., def. I): isto é, duvidar, compreender, conceber, afirmar, negar, querer, não querer, imaginar, sentir, etc. Assim, a consciência é uma via de acesso privilegiada — porque tão segura, a ponto de ser absolutamente indubitável — a uma realidade, a substância alma, que, por sua vez, também é privilegiada porque pode servir como princípio para conhecer as outras realidades. E de fato é a própria consciência, enquanto testemunha do caráter passivo da faculdade sensível, que faz pensar em uma substância ou realidade diferente da alma, que aja sobre a alma, isto é, em uma substância corpórea ou extensa, certificada pelo princípio da veridicidade divina. Desse modo, Descartes determinou a virada subjetivista na interpretação da alma como substância. Para ele, os atributos da alma continuam sendo os tradicionais, como simplicidade, indestrutibilidade, unidade, etc. Mas a via de acesso à realidade da alma tem o privilégio de ser a mais certa porque possui a certeza do cogito. Comparada a esta, a certeza das outras coisas, isto é, das substâncias extensas, é secundária e derivada, porque mediada pela consciência. — Ora, essa colocação domina todas as doutrinas modernas. Spinoza e Leibniz traduzem o conceito cartesiano da alma nos termos de seus conceitos de realidade. Para Spinoza, a alma é “a ideia de um corpo singular existente em ato” (Et., II, 11): é a consciência correlativa a um corpo orgânico. Não se pode dizer que a alma seja substância porque a substância é uma só, Deus. Mas, como ideia, a alma é parte do intelecto infinito de Deus, isto é, uma manifestação necessária da substância divina (ibid., II, 9), portanto eterna (ibid., V, 23). Para Leibniz, a alma é uma substância espiritual, uma mônada que, como um espelho, representa em si todo o mundo, mas é em si mesma simples, isto é, sem partes e indecomponível (Monad., §§ 1, 56). Diferentemente das outras mônadas, que são os átomos espirituais que compõem todas as coisas do universo (inclusive as corpóreas), a alma é espírito, isto é, razão, porquanto possui as verdades necessárias e pode, assim, elevar-se aos atos reflexivos que constituem os objetos principais dos nossos raciocínios (Théod., pref.; Monad., § 30). Mas trata-se mais de uma diferença de grau do que de qualidade: a alma é somente uma mônada mais ativa e perfeita, na qual as apercepções, isto é, as percepções claras e distintas, têm mais participação do que as pequenas percepções ou percepções obscuras e confusas. A doutrina de Leibniz representa, assim, uma redução ao limite, no sentido espiritualista, do princípio cartesiano que privilegiava a consciência. A “psicologia racional” de Wolff, que foi objeto específico da crítica de Kant, não é senão a expressão sistemática da doutrina de Leibniz.
A partir de Descartes, o conceito de “consciência”, isto é, de totalidade ou mundo da experiência interna, começa gradualmente a suplantar o conceito tradicional de alma. Já Descartes e Leibniz, embora se referindo às determinações tradicionais da alma como substância, acabam interpretando a seu modo a noção de substância: a realidade que atribuem à alma é a revelada e testemunhada pelos atos, ou pelo ato fundamental da consciência como pensamento, apercepção, etc. Locke, que reputava ‘incognoscível” a substância espiritual (assim como, aliás, a material) (Ensaio, II, 23, 30), considerou certo, de modo privilegiado, o conhecimento que o homem tem da própria existência, atribuindo-o a um “conhecimento intuitivo” que não é senão a consciência dos próprios atos espirituais (ibid., IV, 9, 3). Além disso, Locke identificou na experiência interna, ou reflexão, uma das fontes do conhecimento e entendeu-a como “a percepção das operações que o nosso espírito realiza em torno das ideias que recebe do exterior”. Tais operações são as de percepção, pensamento, dúvida, conhecimento, vontade, etc, isto é, em geral, todos os atos do espírito de que se é consciente. “Essa fonte de ideias”, acrescenta Locke, “reside internamente no homem, e embora não seja um sentido, porque nada tem a ver com os objetos externos, ainda assim é semelhante a um sentido e pode ser propriamente chamado sentido interno” (ibid., II, I, 4). Com isso, Locke admitiu duas vias de acesso paralelas e independentes a duas realidades que se pressupõem independentes e paralelas, isto é, o corpo e a alma.— Hume não pressupôs a distinção dessas duas realidades, nem, por consequência, admitiu a distinção entre as duas vias de acesso respectivas. A realidade substancial, seja a das coisas materiais, seja a da alma ou do eu, é uma construção fictícia, que parte das relações de semelhança e de causalidade das percepções entre si (Treatise, 1,4, 2 e 6; Inq. Conc. Underst., XII, 1). Todavia os ingredientes elementares de tais construções, ingredientes que são o único dado certo da experiência, são constituídos por impressões e por ideias, isto é, são fornecidos pela experiência interna ou consciência. De tal modo que, enquanto realiza a demolição cética da noção de alma como realidade ou substância, Hume contribui em igual medida para estabelecer a supremacia da consciência, cujos dados são reconhecidos como os únicos elementos certos do conhecimento humano.
A rivalidade entre as duas noções de alma e de consciência chega ao ponto culminante na crítica de Kant à psicologia racional, isto é, à noção de alma nos seus atributos tradicionais de substancialidade, simplicidade, unidade e possibilidade de relações com o corpo (Crít. R. Pura, Dial. transc., Paralogismos da razão pura). A crítica kantiana consiste em dizer que toda a psicologia racional funda-se num “paralogismo”, isto é, num erro formal de raciocínio ou num “equívoco”, no sentido de assumir como objeto de conhecimento, ao qual é aplicável a categoria de substância, aquele “Eu penso”, que é simples “consciência” e que é a condição primeira do próprio uso das categorias. “A unidade da consciência”, diz Kant, “que está no fundamento das categorias, aqui é tomada por intuição do sujeito, tomado como objeto, aplicando-se-lhe a categoria de substância.” É preciso observar que a consciência de que Kant está falando é a expressa pela proposição empírica “Eu penso”, que contém em si a proposição “Eu existo” (ibid., Refut. do arg. de Mendelssohn, nota), isto é, a consciência da própria existência como determinável por parte de um conteúdo empírico dado, ou seja, como “espontaneidade” intelectual que só pode operar sobre um material fornecido pela experiência. Portanto, é diferente do conhecimento de si mesmo que, assim como qualquer outro conhecimento, só é possível mediante a aplicação das categorias a um conteúdo empírico e, portanto, é também conhecimento fenomênico (ibid., Analítica dos conceitos, § 25). Assim sendo, a crítica kantiana à psicologia racional e ao conceito de alma sobre o qual ela se baseia consiste em declarar ilegítima a transformação da consciência em substância e, por isso, em eliminar a própria noção de alma como realidade subsistente por si.
Essa crítica foi, de certa forma, decisiva na história da filosofia: não que os filósofos tenham deixado de falar de algum modo em alma, mas o tipo ou espécie de realidade que se atribui à alma, a partir de Kant, passa a ser entendida em termos de consciência e, frequentemente, reduzida à própria consciência. Essa inversão da relação entre alma e consciência, pela qual a consciência, antes via de acesso à realidade-alma, transforma-se nessa mesma realidade, é igualmente evidente nas duas grandes correntes da filosofia oitocentista, o Idealismo e o Positivismo. Hegel, p. ex., considera a alma como o primeiro grau do desenvolvimento do Espírito, que é a consciência no seu grau mais alto, isto é, Autoconsciência, e a configura como “Espírito subjetivo”, isto é, como o espírito em seu aspecto de individualidade. Eis como ele descreve o processo do Espírito subjetivo: “Na alma, a consciência desperta; a consciência coloca-se como razão que desperta assim que toma ciência de si; e a razão, por meio de sua atividade, liberta-se fazendo-se objetividade, consciência do seu objeto” (Ene, § 387). O primeiro desses momentos, isto é, o despertar da consciência é a alma. A ela Hegel atribui as características tradicionais (substancialidade, imaterialidade), mas no sentido de que essas características podem dizer respeito à consciência. “A alma”, diz ele, “não é imaterial só para si, mas é a imaterialidade universal da natureza, a sua vida ideal simples. Ela é a substância e, portanto, o fundamento absoluto de qualquer particularização e individualização do espírito, de tal modo que o espírito tem na alma toda a matéria da sua determinação e a alma é a idealidade idêntica e prevalente desta. Mas, nessa determinação ainda abstrata, a alma é apenas o sonho do espírito, o noûs passivo de Aristóteles, que, sob o aspecto da possibilidade, é tudo” (ibid., § 389). Em outros termos, dizer que a alma é imaterial significa tão-somente que a matéria não existe porque “a verdade da matéria é o espírito”: dizer que a alma é substância significa unicamente que o espírito é também individualidade, ou seja, consciência individual. As determinações tradicionais são aqui conduzidas para significados diversos, condicionados pela redução da alma à primeira fase do espírito consciente.
Por outro lado, e com outro intuito, o positivismo efetuava a mesma redução da alma à consciência, retomando e continuando a doutrina do empirismo clássico, especialmente de Hume. O intento, aqui, era preparar e fundar uma “ciência” dos fatos psíquicos, que tivesse o mesmo rigor das ciências da natureza. Nessa direção, o termo alma já aparece como impróprio e é frequentemente substituído pelo termo espírito; nesse sentido, Stuart Mill diz, p. ex., que o espírito (mind) é a “série das nossas sensações”, tendo, além disso, “uma infinita possibilidade de sentir” (Examination of Hamilton’s Philosophy, pp. 242 ss.) ou, mais simplesmente, “aquilo que sente” (Logic, VI, IV, 1). Tornam-se objeto da psicologia os “fenômenos psíquicos” ou “os estados de consciência”, que são explicados por meio da associação variada dos seus elementos mais simples (v. associacionismo). Essa “psicologia sem alma” dominou os primórdios da psicologia científica e foi a insígnia polêmica pela eliminação, em seu campo, da noção tradicional da alma como substância.
Contudo, esse termo foi e ainda é usado para indicar o conjunto das experiências psíquicas enquanto recolhidas em alguma unidade. Assim o entendeu Wundt (Logik, II, pp. 245 ss.), que por unidade entendeu a unidade da consciência. E assim o entende também Dewey: “Em conclusão, pode-se afirmar que a palavra alma, quando libertada de todos os resíduos do tradicional animismo materialista, denota a qualidade das atividades psicofísicas, organizadas em unidade. Alguns corpos têm alma de modo eminente, assim como outros têm, eminentemente, fragrância, cor e solidez… Dizer enfaticamente que uma pessoa tem alma, ou uma grande alma, não significa pronunciar uma frase aplicável igualmente a todos os seres humanos. Exprime, ao contrário, a convicção de que o homem ou a mulher em questão possui em grau notável as qualidades de participação sensível, rica e coordenada em todas as situações da vida. Assim, as obras de arte, a música, a pintura, a arquitetura têm alma, enquanto outras são mortas, mecânicas” (Experience and Nature, pp. 293 ss.). Mas a alma, nesse sentido, não é mais “um habitante do corpo”; designa um conjunto de capacidades ou de possibilidades de que cada homem ou cada coisa em particular participa em maior ou menor grau. A última crítica à noção de alma é a de Ryle (Concept of Mind, 1949), que deu à concepção de alma de origem cartesiana o nome de “espectro na máquina”. Na realidade, essa noção é muito mais antiga, como se viu, e sua força se deve, mais do que às suas capacidades explicativas, às garantias que fornece ou parece fornecer a determinados valores. Ryle julga que essa noção é fruto de um erro categorial, pelo qual os fatos da vida mental são considerados pertencentes a um tipo ou categoria (ou classe de tipos ou categorias) lógica (ou semântica) diferente daquela a que eles pertencem. Esse erro é semelhante ao de quem, depois de visitar salas, laboratórios, bibliotecas, museus, escritórios, etc, que constituem uma Universidade, pergunta o que vem a ser e onde fica a própria Universidade. A Universidade não é uma unidade que se acrescente aos organismos ou aos membros que a constituem, e que possua, portanto, uma realidade à parte de tais organismos ou membros. Assim também, a alma não tem realidade à parte das manifestações singulares e dos comportamentos particulares superiores que essa palavra serve para designar em seu conjunto.
Em conclusão, já muito antes dessa última condenação, a noção tradicional de alma, como uma espécie de realidade em si, princípio e fundamento dos chamados eventos mentais, fora abandonada e reduzida à noção de entidade funcional ou de uma espécie de coordenação e de síntese entre aqueles eventos. Mas, nesta forma, essa noção remete à de consciência. [Abbagnano]