(lat. intentionalitas; in. Intentionality; fr. Intentionnalité; al. Intentionalität; it. Intenzionalità).
Referência de qualquer ato humano a um objeto diferente dele: p. ex., de uma ideia ou representação à coisa pensada ou representada, de um ato de vontade ou de amor à coisa querida ou amada, etc. Essa noção foi inicialmente empregada com relação à atividade prática, donde o significado, ainda hoje predominante, da palavra intenção que designa exatamente a referência da atividade prática ao seu objeto. O neoplatonismo árabe estendeu pela primeira vez seu sentido, para designar a relação entre o conhecimento e seu objeto, chamando os conceitos de intenções. Ao determinar a diferença entre a lógica e as ciências reais, Avicena afirmou que, enquanto estas últimas têm por objeto as primeiras intenções (intensiones primo intellectae), ou seja, conceitos que se referem a coisas reais, a lógica tem por objeto as segundas intenções (intensiones secundo intellectae), ou seja, conceitos que se referem a outros conceitos (Mel, I, 2). Alberto Magno reproduziu esta distinção (In Met., I, 1, 1), que se tornaria familiar aos filósofos do séc. XIIintencionalidade Tomás de Aquino, por sua vez, considerava a intenção como “a semelhança da coisa pensada” (Contra Gent., IV, 11), distinguindo-a por vezes da espécie inteligível pela sua indiferença à ausência ou à presença do objeto e pelo fato de abstrair das condições materiais sem as quais esta última não existe na natureza (Ibid., I, 53), e outras vezes identificando-a com a espécie inteligível (S. Th., I, q. 85, a. 1, ad 42). Mas o conceito de intencionalidade só ganhou destaque quando, entre o fim do séc. XIII e o começo do séc. XIV, começou-se a duvidar da doutrina da espécie como intermediária do conhecimento e deixou-se de ver no ato cognitivo uma “semelhança”, uma cópia ou imagem da coisa. Durand de S. Pourçain afirmava que é o próprio objeto, e não a espécie, que se apresenta ao sentido e ao intelecto (In Sent., II, d. 3, q. 6, n. 10) e Pedro Auréolo observava, a respeito, que, se a espécie fosse o objeto do conhecimento, este não diria respeito à realidade, mas apenas à imagem dela. Auréolo, portanto, julgava que o objeto do conhecimento era a coisa em seu ser intencional ou objetivo, ou seja, assumida como termo da intencionalidade do conhecimento (Ibid., I, d. 23, a. 2). O esse intentionale ou esse apparens, como também o denominava Auréolo, é a manifestação da coisa à intencionalidade cognoscitiva da mente (Ibid., I, d. 9, a. 1). Para Ockham, isso se afigurava como um anteparo inútil entre o intelecto e a coisa (Ibid., I, d. 27, q. 3 CC). Para ele, o ato cognitivo é uma intentio, no sentido de referir-se diretamente à coisa significada. Como intenção, o conceito não passa de signo que está no lugar de uma classe de objetos, qualquer um dos quais pode substituir o conceito nos juízos e raciocínios em que aparece (Ibid., I, d. 23, q. 1, D; Quodl, IV, q. 35; Summa log., I, 12).
A intencionalidade, como referência ao objeto, fora assim reduzida pela escolástica medieval à referência do signo ao seu designato, e por muito tempo deixa de ser utilizada como noção autônoma. Foi só no séc. XIX que Brentano redescobriu essa noção para torná-la como característica dos fenômenos psíquicos (Psichologie vom empirischen Standpunkt, 1874). Estes podem ser classificados, segundo as características de sua intencionalidade, de sua referência ao objeto, em representação (o objeto está simplesmente presente), em juízo (é afirmado ou negado), em sentimento (é amado ou odiado). Esses três atos se referem a um “objeto imanente” e são atos intencionais, mas sua intencionalidade, ou seja, sua referência ao objeto, é diferente para cada um deles. Inicialmente Brentano julgou que o objeto da intencionalidade pudesse ser indiferentemente real ou irreal; depois, em Klassification der psychischen Phänomene (1911), afirmou que o objeto da intencionalidade é sempre real e que a referência a um objeto irreal é indireta, ocorrendo através de um sujeito que afirme ou negue o objeto. Husserl inspirou-se nessas ideias de Brentano ao assumir a noção de intencionalidade não mais como característica dos fenômenos psíquicos entendidos como um grupo de fenômenos que coexistam com outros fenômenos chamados físicos, mas como a definição da própria relação entre o sujeito e o objeto da consciência em geral. Husserl diz a este propósito: “A característica das vivências (Erlebnisse), que pode ser indicada como o tema geral da fenomenologia orientada objetivamente, é a intencionalidade. Representa uma característica essencial da esfera das vivências, porquanto todas as experiências, de uma forma ou de outra, têm intencionalidade… A intencionalidade é aquilo que caracteriza a consciência em sentido pregnante, permitindo indicar a corrente da vivência como corrente de consciência e como unidade de consciência” (Ideen, I, § 84). Posteriormente, o próprio Husserl falou de “intencionalidade atuante”, no sentido de que a vivência não se refere somente ao seu objeto, mas também a si mesma e é por isso ciência de si. Seja como for, no âmbito da fenomenologia a intencionalidade era assumida como característica fundamental da consciência, e como tal ficou em boa parte na filosofia contemporânea, especialmente na fenomenologia e no existencialismo. O conceito de transcendência , mediante o qual Heidegger definiu a relação entre o homem e o mundo, outra coisa não é senão uma generalização da intencionalidade. Heidegger diz: “Se considerarmos qualquer relação com o ente como intencional, então a intencionalidade é possível apenas com base na transcendência, mas é preciso atentar: intencionalidade e transcendência não se’ identificam e esta não se funda naquela” (Vom Wesen des Grundes, I; trad. it., p. 24). [Abbagnano]
A relação ativa do espírito com um objeto qualquer. — Essa noção da filosofia escolástica acha-se hoje correntemente empregada, sobretudo depois de Husserl e da fenomenologia. Segundo a interpretação filosófica que se dê da relação do espírito com o real, ela pode tomar, a grosso modo, três sentidos: 1.° o de uma relação psicológica da consciência com um objeto (nesse sentido é que Franz Brentano, mestre de Husserl, empregava o termo); 2.° o de uma relação “transcendental” de uma consciência que se cria ao criar o sentido de seu objeto; por exemplo, em matemática ou em lógica, a consciência ou a “intencionalidade” de um triângulo consiste em construí-lo; quando traçamos uma reta entre duas estrelas ou dois picos de montanha, essa reta não existe na natureza, é o espírito que a cria: existe nisso a “intencionalidade” (nesse sentido é que Husserl emprega frequentemente o termo: ele insiste na presença do espírito em toda “significação”); 3.° o de uma relação “ontológica” de um espírito que toma consciência de si mesmo como criador do mundo ou princípio da “constituição” do real. (Essa interpretação idealista da intencionalidade foi a de E. Fink, por ex.) (Contr.: receptividade.) [Larousse]
Em Investigações Lógicas, a fenomenologia é, com efeito, caracterizada como «psicologia descritiva da experiência interna». Todavia, o sentido desta expressão limitativa encontra-se profundamente modificado. Não se trata já de circunscrever a descrição ao exame de um campo fenomenal no qual, de algum modo, a consciência se encontraria encerrada. A prudência do empirismo psicológico, que lhe interdita constituir-se como ciência e enunciar o que quer que seja de válido para uma teoria do conhecimento em geral, assenta numa inexata compreensão do que são o fenômeno e a consciência. O objeto não está contido na consciência a título de fenômeno, não é uma parte imanente desta. Se a consciência é bem, como definiu Brentano, uma intenção dirigida para o objeto é o próprio ser e não a aparência do objeto que é dado para a consciência. A consciência pode, portanto, pronunciar-se sobre este ser segundo a maneira como ele se apresenta, elucidando o modo pelo qual ela o visa. Para isto, não tem necessidade de sair de si própria, tarefa contraditória com a qual esbarrava qualquer teoria do conhecimento e que a votava quer ao idealismo, quer ao cepticismo; ela não tem senão que proceder ao exame destes modos de intenção. O princípio da filosofia como ciência de rigor, isto é, o que permite suscitar uma resposta cientificamente clara, definitiva, unívoca, ao «enigma do conhecimento» encontra-se contido nesta nova concepção da consciência, abrindo um campo de pesquisas não apercebido pelos psicólogos simplesmente entregues à descrição de uma propriedade particular dos fenômenos psíquicos. «Se a teoria do conhecimento quer estudar os problemas das relações entre a consciência e o ser, não pode então encarar senão o ser como correlato da consciência, como qualquer coisa de visado segundo a maneira da consciência» (A filosofia como ciência rigorosa, p. 67). [Schérer]
Se o objeto pode ter o sentido de transcendência no próprio seio da imanência do eu é, em resumo, porque não existe, para sermos exatos, imanência na consciência. A distinção, entre os dados imanentes e os dados transcendentes sobre a qual Husserl funda a primeira separação da consciência e do mundo é ainda uma distinção mundana. Na realidade a epoché fenomenológica revela um caráter essencial para a consciência, a partir do qual se esclarece o paradoxo que sublinhamos há pouco. A intencionalidade com efeito não é somente esse dado psicológico que Husserl herdou de Brentano, mas é ela que torna possível a própria epoche: perceber este cachimbo sobre a mesa é ter não uma reprodução em miniatura deste cachimbo no espírito como pensavam os associacionistas, mas visar o objeto cachimbo em si. A redução colocando fora de circuito a doxa natural (posição espontânea da existência do objeto) revela o objeto enquanto visado, ou fenômeno, o cachimbo agora é apenas algo à nossa frente (Gegenstand) e minha consciência aquilo para que existem coisas à nossa frente. Minha consciência não pode ser pensada se imaginariamente lhe retiramos aquilo de que ela é consciência, não se pode sequer dizer que ela seria então consciência de nada, pois esse nada seria de imediato o fenômeno do qual ela seria consciência; a variação imaginária operada sobre a consciência nos revela perfeitamente seu ser próprio que é ser consciência de algo. Pelo fato de ser a consciência intencionalidade torna-se possível efetuar a redução sem perder aquilo que é reduzido: reduzir é no fundo, transformar todo dado em algo que nos defronta, em fenômeno, revelar assim os caracteres essenciais do Eu: fundamento radical ou absoluto, fonte de toda significação ou força constituinte, liame de intencionalidade com o objeto. Bem entendido, a intencionalidade não tem apenas um caráter perceptivo; Husserl distingue diversos tipos de atos intencionais: imaginações, representações, experiência de outrem, intuições sensíveis e categorias, atos da receptividade e da espontaneidade etc.; em suma todos os conteúdos da enumeração cartesiana: “Quem sou eu, eu que penso? Uma coisa que duvida, que ouve, que concebe, que afirma, que nega, que quer, que não quer, que imagina também e que sente.” Por outro lado, Husserl distingue o eu atual no qual existe consciência “explícita” do objeto e o Eu não-atual, no qual a consciência de objeto está implícita, “potencial”. A vivência aluai (por exemplo o ato de apreensão atenta) é sempre limitada por uma área de vivências não-atuais, “o fluxo da vivência não pode jamais ser constituído de puras atualidades” (Ideen, 63). Todas as vivências aluais ou não-atuais são igualmente intencionais. Não se deve, portanto, confundir intencionalidade e atenção. Existe, pois, uma intencionalidade desatenta, implícita. Teremos oportunidade de retomar esse ponto, essencial para a ciência psicológica: contém em suma toda a tese fenomenológica referente ao inconsciente.
Vemos, pois, que podemos, com Husserl, falar de uma inclusão do mundo na consciência, pois a consciência não é somente o polo Eu (noesis) da intencionalidade, mas igualmente o polo isto (noema); mas é necessário sempre precisar que esta inclusão não é real (o cachimbo está no quarto) mas intencional (o fenômeno cachimbo está na minha consciência). Esta inclusão intencional, revelada em cada passo particular pelo método de análise intencional, significa que a relação da consciência com seu objeto não é o de duas realidades exteriores e independentes, porquanto de um lado o objeto é Gegenstand, fenômeno que remete à consciência para a qual ele aparece, e de outro lado a consciência é consciência deste fenômeno. Sendo a inclusão intencional, é possível fundar o transcendente no imanente sem degradá-lo. Assim, a intencionalidade é por si mesma uma resposta à indagação: como pode haver um objeto em si para mim? Perceber o cachimbo é precisamente visá-lo como existente real. Assim, o sentido do mundo é decifrado como sentido que eu dou ao mundo, mas esse sentido é vivido como objetivo, eu o descubro, sem o que ele não seria o sentido que tem o mundo para mim. Colocando em nossas mãos a análise intencional, a redução nos permite descrever rigorosamente a relação sujeito-objeto. Essa descrição consiste em fazer operar a “filosofia” imanente à consciência natural e não em esposar passivamente o dado. Ora, esta “filosofia” é a própria intencionalidade que a define. A análise intencional (donde o seu nome) deve, pois, definir como o sentido do ser (Seinssinn) do objeto é constituído; pois a intencionalidade é um visar, mas é igualmente por sua vez um dar sentido. A análise intencional se apodera do objeto constituído como sentido e revela essa constituição. Assim; nas Ideen II, Husserl procede sucessivamente às constituições da natureza material, da natureza animada e do Espírito. Não é preciso dizer que a subjetividade não é “criadora” pois ela por si mesma é apenas Ichpol, mas, por sua vez, a “objetividade” (Gegenstandlichkeit) só existe como polo de uma visada intencional que lhe confere seu sentido de objetividade. [Lyotard]