gr. ἰδέα/εἶδος, idea/eidos, ideia/forma
A ideia, ou conceito, é a simples representação intelectual de um objeto. Difere essencialmente da imagem, que é a representação determinada de um objeto sensível. [Jolivet]
Significa “forma”, o conceito reproduz em nós as formas ou similitudes dos objetos; gr. eidos significa também “espécie”, é pelas espécies (e pelas diferenças específicas) que conhecemos os objetos. Na leitura dos discursos textuais ecoam-se ideias do autor no leitor, segundo a abertura e a adequação do objeto tratado à inteligência de ambos. [Chenique]
A noção que o espírito forma de alguma coisa. A ideia tem um caráter intelectual que a distingue do simples sentimento. Uma verdadeira ideia é “clara e distinta”, dizia Descartes; ela pode provar-se, explicar-se. As discussões filosóficas focalizam-se na natureza da ideia: é ela uma simples representação, à maneira de um “quadro” (Descartes)? Na verdade, não se “representa” uma ideia, ela é “compreendida”; e a compreensão consiste, em geral, numa “relação intelectual”; em outros termos, a ideia coincide com um movimento do espírito, define-se como uma “tendência” (Leibniz). No que concerne à origem das ideias, distingue-se as que resultam da experiência, que Descartes denominava ideias “adventícias” e que caracterizam como ideias “gerais” (resultam da repetição de um certo número de fatos numa ordem imutável: é uma ideia geral que o frio vem com o inverno e o calor com o verão), e as que têm sua origem no espírito humano (ideias “inatas” ou conceitos a priori: por ex., a ideia do dever moral, da justiça. . ., está inscrita no espírito antes de qualquer experiência [Kant]; essas ideias não são gerais, são “universais”). Na vida de todo dia formamos nossas ideias no decurso de discussões onde cada um pode exprimir-se livremente; a expressão de uma ideia, diferindo da expressão de um sentimento, exclui todo o fanatismo. [Larousse]
Significa primeiramente o aspecto manifesto de uma coisa segundo seus traços característicos; em segundo lugar, designa sobretudo o aspecto interior ou conteúdo essencial que naquele se revela. Enquanto o conceito se segue ao ser das coisas e reproduz a essência das mesmas, a ideia antecipa-se a esse ser, como arquétipo eterno e perfeito, em conformidade com o qual as coisas foram configuradas. Assim, a ideia é essencialmente causa exemplar (causa exemplaris). Apreendida pelo entendimento, converte-se em norma (regra, cânon), segundo a qual este julga as coisas que se lhe apresentam ou se deixa guiar na realização da ideia (ideal).
Platão considera as ideias como realidades independentes, supramundanas, que representam um reino próprio sob a ideia suprema do bem. S. Agostinho (precedido por Platino) converte as ideias em pensamentos, originários e criadores, de Deus. O próprio Deus aparece como a Ideia absoluta ou Ideia das ideias, enquanto sua infinita plenitude abarca todas as essências (segundo seu núcleo positivo, com exclusão de todo limite negativo) numa superior inflorescencia. S. Tomás de Aquino enquadra esta doutrina no seu aristotelismo. A mesma concepção revive em Hegel, quando denomina “Ideia absoluta” ao seu fundamento primitivo; todavia, nele tudo converge para o panteísmo, porque a Ideia absoluta não é perfeita, acabada, em si, mas só se perfaz pelo desdobramento das coisas.
Dado que as coisas terrestres são configuradas segundo as ideias, estas devem, de algum modo, formar parte das mesmas. Nem Platão nem S. Agostinho encontraram para isso fórmula satisfatória. Só a doutrina aristotélica da forma interna das coisas (forma) facilitou a solução a S. Tomás. Este encara a forma essencial como participação e cópia das ideias divinas; em cada coisa há, por assim dizer, o cunho de um pensamento de Deus, que de antemão a determina em sua peculiaridade.
Nossos conceitos são capazes de apreender as ideias. Platão só sabia explicar isto pela intuição das ideias (intuicionismo) e S. Agostinho só por irradiação de uma luz procedente das ideias divinas. Unicamente S. Tomás de Aquino, seguindo Aristóteles, chegou à abstração das ideias, a partir das coisas. Nossos conceitos na medida em que refletem as ideias, podem denominar-se, num sentido profundo, ideias. Só desde que o conceptualismo desfez a conexão entre conceito e ideia, conexão obtida pelo conhecimento da essência, se dá a todo conceito e até mesmo (no empirismo) à impressão sensorial o nome de ideia. — Podemos denominar “ideia” todo conceito, na medida em que ele reproduz um aspecto do ser, contanto que, por sobre este sentido indeciso, não esqueçamos ou eliminemos os fundamentos mais profundos. — Designamos nomeadamente como ideias os pensamentos humanos, quando representam arquétipos criadores (p. ex., ideias artísticas) ou “dão ocasião a pensar muito”.
As ideias transcendentais de Kant (mundo, alma, Deus) apresentam, por um lado, um lastro conceptualista, porque são unicamente pensadas pelo homem e carecem de toda validade real; mas, por outro lado, ressoa nelas a profundidade metafísica, uma vez que as esboçamos necessariamente como totalidades últimas que de antemão dirigem todo nosso esforço cognoscitivo. — Lotz. [Brugger]
As múltiplas significações da palavra têm dado origem a vários modos de considerar as ideias. Três destas são particularmente importantes: Por um lado, compreende-se a ideia logicamente quando se compara com o conceito. Por outro, compreende-se a ideia psicologicamente quando a equiparamos com certa entidade mental. Finalmente, compreende-se a ideia metafisicamente quando se equipara a ideia com certa realidade. Estes três significados têm-se entrecruzado com frequência até ao ponto de se ter por vezes tornado difícil saber exatamente que sentido tem uma determinada concepção de ideia.
O termo foi usado por vários pré-socráticos, mas apenas em Platão encontramos uma extensa dilucidação do problema.
Platão usou o termo ideia para designar a forma de uma realidade, a sua imagem ou perfil eternos e imutáveis. Por isso é frequente em Platão a visão de uma coisa ser equivalente à visão da forma da coisa sob o aspecto da ideia. A ideia é, portanto, qualquer coisa como o espetáculo ideal de uma coisa. Mas a significação de ideia em Platão não é simples e unívoca.
Platão trata do que são as ideias (ou as formas), da sua relação com as coisas sensíveis e com os números, das ideias como causas, como fontes de verdade, etc. Concebe com muita frequência as ideias como modelos das coisas e, de certo modo, como as próprias coisas no estado de perfeição. As ideias são as coisas como tais. Mas as coisas como tais não são nunca as realidades sensíveis, mas as realidades inteligíveis. Uma ideia é sempre uma unidade de qualquer coisa que aparece como múltiplo. Por isso a ideia não é apreensível sensivelmente, mas visível apenas inteligivelmente. As ideias “veem-se” com o olhar interior.
Admitidas as ideias, é preciso saber de que modo pode havê-las. Em princípio, parece que pode haver ideias de qualquer coisa. Mas torna-se duvidoso que haja ideias de “coisas vis” ou de coisas insignificantes. Por isso Platão tende cada vez mais a reduzir as ideias a ideias de objetos matemáticos e de certas coisas e qualidades que hoje em dia consideramos como valores (a bondade, a beleza, etc). Além disso, tende a ordenar as ideias hierarquicamente. Uma ideia é o tanto mais quanto mais exprime a unidade de algo que aparece como múltiplo. Mas se esta unidade é uma realidade em si, põe-se a questão de que tipo de relação existe entre o Uno ideal e o múltiplo. É neste ponto que se manifesta a clássica diferença de opiniões entre Platão e Aristóteles. Este último escreve que “não é mister admitir a existência de ideias, ou do Uno, junto ao múltiplo”. Melhor sucede que “o uno está unido ao múltiplo”. Por outras palavras, Aristóteles nega que as ideias existam num mundo inteligível separado das coisas sensíveis; as ideias são imanentes às coisas sensíveis. De outro modo não se compreenderia como as ideias podem atuar e explicar a realidade sensível.
Os escolásticos abriram o caminho para vários usos do termo ideia. Além do uso ontológico, segundo o qual as ideias são concebidas como modelos, fixaram o uso gnoseológico, segundo o qual as ideias são princípios de conhecimento. Este último caso debateu-se com frequência a questão de se se conhece pelas ideias ou de se se conhecem as ideias. Finalmente, o uso lógico, segundo o qual a ideia é a representação simples de uma coisa na mente.
Estas distinções passaram em parte à filosofia moderna. Os filósofos modernos parece haver predominado cada vez mais o sentido de ideia como “representação mental” de uma coisa. Muitos autores tenderam a considerar as ideias como resultados da atividade do sujeito cognoscente. Foi habitual considerar por meio das ideias que o sujeito possui (aspecto psicológico) pode conhecer-se racionalmente (aspecto lógico) o que as coisas são verdadeiramente (aspecto metafísico ou ontológico).
O predomínio do ponto de vista que chamamos gnoseológico tem sido comum tanto às tendências racionalistas como às empiristas (pelo menos as ideias verdadeiras e adequadas) têm duas faces: uma, ser, como dizia Espinosa, “conceitos do espírito que este forma porque é uma coisa pensante”; a outra, ser, como afirmava Descartes, as próprias coisas logo que vistas.
Este último levou a pôr as ideias verdadeiras em Deus, já porque era considerado como “a única coisa pensante”, já porque fosse “o ponto de vista absoluto” do qual são vistas todas as coisas. Como consequência disso, os racionalistas inclinaram-se para o inatismo. Quando os motivos teológicos perderam importância, os racionalistas pensaram que as ideias verdadeiras podiam continuar a ser inatas, por corresponder a sua possessão à natureza do homem. No entanto, a partir do momento em que se sublinhou o aspecto subjetivo da ideia, as posições mantidas aproximaram-se às empiristas, e o problema que permaneceu de pé foi o da origem das ideias na mente. Os empiristas usaram o termo ideia abundantemente; em muitos casos, além disso, elaboraram as suas teorias do conhecimento como uma espécie de “doutrina das ideias”. Assim sucede em Locke, Berkeley e Hume. Locke pede perdão ao leitor no princípio do seu ENSAIO pelo uso frequente da palavra ideia, mas esclarece que é a palavra que melhor serve para indicar a função de re-apresentar qualquer coisa que seja um objeto do entendimento quando um homem pensa: ideia equivale a fantasma, noção, espécie. As ideias são para Locke apreensões e não propriamente conhecimentos. A maior parte das ideias procedem de uma fonte: a sensação. Podem ser simples (recebidas passivamente) ou complexas (formadas por uma atividade do espírito). As simples podem ser ideias de sensação (provenientes de um sentido como o sabor ou a dureza; ou mais de um sentido, como a figura, o repouso, movimento) ou de reflexão (percepção ou pensamento, vontade). Há também ideias compostas de sensação e reflexão (como o prazer, a dor, a existência). As ideias complexas são-no de modos (como afecções das substâncias, substâncias e relações)).
Os modos podem ser por sua vez simples ou mistos. Pode-se falar também de ideias reais ou fantásticas, adequadas e inadequadas, e até de ideias verdadeiras ou falsas (embora isso corresponda melhor às proposições, pelo que as chamadas “ideias verdadeiras” e “ideias falsas” são ideias nas quais há sempre alguma proposição tácita). O conhecimento consiste unicamente na “percepção da conexão e acordo ou desacordo e repugnância de qualquer das nossas ideias. Só nisto consiste).
Berkeley manifesta que os objetos do conhecimento humano consistem em ideias – ideias “efetivamente impressas nos sentidos, ou apercebidas ao estarem presentes nas paixões e operações do espírito, ou finalmente formadas mediante a memória e a imaginação”. Não há, para Berkeley, mais que compreender ou ser compreendido; portanto não há mais que os espíritos que compreendem e as ideias que são as coisas logo que compreendidas. Repele as ideias gerais abstratas, embora admita as ideias gerais quando estas não pretendem designar uma “coisa geral” ou uma forma que seja diferente das realidades particulares ou das percepções particulares.
Hume, por fim, distingue entre impressões e ideias e chama ideias às “imagens fracas destas impressões quando se pensa e quando se raciocina” (TRATADO). As ideias (como as impressões) podem ser simples e complexas. As ideias simples são as que não admitem distinção nem separação; as complexas, aquelas nas quais podem distinguir- se partes. Hume reformulou a sua doutrina das ideias ao indicar que as percepções do espírito podem dividir-se, conforme o seu maior ou menor grau de força ou vivacidade, em duas classes: pensamentos ou ideias e impressões. Hume manifesta que embora as ideias complexas não derivem necessariamente de impressões complexas (assim, a ideia de uma sereia não deriva da impressão de uma sereia), as ideias simples derivam das impressões simples e representam-nas exatamente. Por outras palavras, “todas as nossas ideias ou percepções mais fracas são cópias das nossas impressões ou percepções mais vividas”. As ideias podem ser separadas e unidas mediante a imaginação, mas esta encontra-se guiada por certos princípios universais. As ideias combinam-se mediante os princípios de associação.
Kant pensou que o uso do termo ideia pelos empiristas (nas suas teorias do conhecimento) e pelos racionalistas (nas suas especulações metafísicas) era claramente abusivo. Segundo ele, as sensações, percepções, intuições, etc, são diversas espécies de um gênero comum: a representação em geral. Dentro deste gênero temos a representação com consciência dela ou percepção. A percepção que se refere unicamente ao sujeito como modificação do seu estado chama-se sensação. Quando se trata de uma percepção objetiva temos um conhecimento. Este conhecimento pode ser intuição ou conceito. O conceito pode ser puro ou empírico. O conceito puro, se tem a sua origem apenas no entendimento e não na pura imagem da sensibilidade, pode qualificar-se de noção. Quando o conceito se forma à base de noções e transcende a possibilidade da experiência, temos uma ideia ou conceito de razão. Os conceitos puros da razão chamam-se ideias transcendentais.
Kant tratou de averiguar se tais ideias determinam, segundo princípios, como deve utilizar-se o entendimento ao referir-se à totalidade da experiência (pois não pode ser dado aos sentidos nenhum objeto que seja congruente ou correspondente com uma ideia). As ideias como objeto da metafísica são Deus, liberdade e imortalidade. Do seu exame conclui Kant que as ideias transcendentais ultrapassam toda a possibilidade de experiência, encontrando-se segregadas quase por completo das formas a priori da sensibilidade (espaço e tempo) e dos conceitos puros do entendimento (categorias).
Como sínteses metafísicas efetuadas pela razão pura, as ideias não são constitutivas. Mas negar que o sejam não é negar-lhes a possibilidade de um uso regulador. São princípios reguladores da razão.
Fundamental é o papel das ideias – ou, melhor, da ideia – em Hegel. A filosofia deste autor aparece centrada na noção da Ideia Absoluta. Hegel proclama, com efeito, que,”Deus e a Natureza da sua vontade são uma e a mesma coisa, e esta é o que filosoficamente chamamos a ideia”. A realidade, enquanto se desenvolve para voltar a si mesma, é a mesma ideia que se vai tornando absoluta. A ideia absoluta é a plena e completa verdade do ser. A ideia é a unidade do conceito e da realidade do conceito e por isso “todo o real é uma ideia”. Se se quiser, a ideia “é o verdadeiro como tal”. A ideia absoluta é a identidade do teórico e do prático, uma vez mais: “só a ideia absoluta é ser”.
Noutro sentido se usa o termo ideia – e, sobretudo, o plural ideias – quando se faz das ideias pensamentos que têm, ou tiveram os homens em diversas esferas – ideias filosóficas, religiosas, científicas, políticas, etc – e em diversos períodos. O estudo das ideias neste sentido e, por um lado, um tema de antropologia filosófica e, por outro lado, um tema de investigação histórica. Por exemplo, tem-se estudado as relações entre as ideias e as individualidades humanas, as gerações, as classes sociais, as formas de vida, os períodos históricos, etc; a relação entre as ideias e os conceitos, as crenças, os dogmas, etc. [Ferrater]
Várias têm sido as acepções deste termo no decorrer do processo filosófico. Na Grécia era a forma, a semelhança, a natureza, a classe, a espécie; Para Platão e Sócrates é a essência, o universal eterno, o arquétipo do existente. As ideias (melhor as formas) têm uma hierarquia na ordem divina e são a meta do homem, consciente ou não. Para os estoicos as elas são as classes dos esquemas mentais do homem: conceitos, ideias gerais. Os neoplatônicos consideravam-nas como os arquétipos das coisas (noûs ou logos). As ideias ( ou formas) são subsistentes em Deus (cristianismo e escolástica). Com Descartes identificam-se com os conceitos lógicos do pensamento humano. Para Berkeley derivam-se dos objetos na introspecção intuitiva. Segundo Hume é uma mera cópia ficcional das nossas impressões. Para Kant, são conceitos ou representações, mas chama de ideias transcendentais aquelas que não derivam dos sentidos e até os ultrapassam, pois nada podemos encontrar na experiência que delas nos forneça uma imagem.
Ideia adequada – Vide adequado.
Ideia fixa – Estado de consciência mórbida que se caracteriza pela persistência de uma ideia, que nem o curso normal das ideias, nem a vontade, conseguem dissipar.
Ideia força – Termo proposto por Fouillée para nomear a ideia que possua propriedades dinâmicas e atue como se fora uma força.
Ideias adventícias – Vide adventícia (ideias).
Ideias imagens – Representações emitidas pelos objetos do mundo exterior e que são reproduzidas como imagens no sujeito, segundo a concepção gnosiológica de Demócrito.
Ideias inatas – São as ideias fundamentais ou gerais que se supõem presentes no indivíduo antes da experiência. Vide nativismo e a priori e a posteriori.
Ideias negativas – São classificadas como tais as ideias de erro, de desordem, de mal, de nada, etc. Para Platão, o erro é negativo e consiste em levar ao absoluto um aspecto do real. Se digo que para mim tal coisa parece ser deste ou daquele modo, não estou errado, mas quando, em absoluto, ela é de tal ou qual modo, nesse caso, pode haver erro. Portanto ele é uma verdade parcial (como também o entende Spinoza). Só há propriamente o erro quando, ao que é verdadeiro de um ponto de vista, lhe é atribuído o caráter de verdade absoluta. Contrariando esse ponto de vista, William James dizia que se o erro é uma verdade parcial, então tudo é verdade parcial.
Para Bergson há desordem ou aparência de desordem quando, ao buscar uma das duas espécies de ordem, descobrimos outra, como já o afirmavam os filósofos escolásticos. Por ex.: um quarto será dito em desordem quando ao procurarmos uma ordem finalista descobrimos, simplesmente, uma ordem mecânica ou, ao procurarmos a ordem mecânica, encontramos a ordem finalista. Se queremos limpar o quarto, os móveis serão ordenados numa ordem diferente daquela quando nele queremos viver. Em tais casos a desordem somente é a presença da ordem não desejada, ou não procurada, ou não esperada. Propriamente nunca há desordem em sentido absoluto, mas apenas em sentido relativo. O nada não é algo propriamente tal que se dê ademais do ser, mas unicamente sua falta, sua deficiência. O que se conceitua como nada é uma negação do ser.
Distingue-se:
1) Nada relativo: ausência de certa realidade num ser real (ex.: nesta sala não há nada…; sobre este livro não há nada…). Essa ideia de nada é positiva. Apresenta-se de várias espécies: a) pura negação quando consiste na simples ausência de uma coisa que não é normal possuir; b) privação que consiste na ausência de uma coisa que é natural ter. A cegueira, numa pedra, é uma simples ausência; no homem ou no animal, uma privação.
2) Nada absoluto: ausência total de toda realidade.
Assim: ” Deus criou o mundo do nada”, este termo é tomado na primeira acepção. O mundo era ainda nada como realidade, não porém nada como possibilidade de ser. A sua noção é obtida pela negação do ser. Não podemos concebe-lo sem o ser, pois para concebe-lo impõe-se o ser de quem concebe. Mas podemos conceber o ser sem o nada?
O ser é concebido por sisi mesmo. Já o mesmo não se dá com o nada. Se digo que este livro é insensível, é porque sei o que é como é um ser sensível. Daí considerar-se o mal como um nada do bem, que só é conhecido pelo bem do qual é ele uma ausência ou uma privação. A imperfeição é a ausência de um bem ou de algo melhor; a falta, a privação de um bem que se deveria normalmente possuir; a desordem seria a falta de ordem, concebida pela ordem que deveria estar em seu lugar; a imperfeição, pela perfeição, pois julgo da imperfeição de uma circunferência que posso conceber. Dessa forma o nada é obtido pela representação de um ser real ao qual negamos realidade.
A ideia do nada é uma pseudo-ideia. Pensar nele é pensar em alguma coisa, cuja essência consiste em não existir. O nada é impossível; a passagem dele ao ser é um pseudo problema. É o ser que não precisa de explicação, e não o nada, dizia Bergson, reafirmando uma velha tese da filosofia. Realmente esta ideia implica sempre a ideia de alguma coisa à qual se nega existência. É uma ideia negativa. Mas como ideia é verdadeira. É verdadeira toda ideia negativa, e a do nada não é contraditória em si. O que é contraditório é admitir a existência do nada, um nada existindo, como ser real, espécie de “reserva misteriosa” de onde o criador tirou o real. Ele não é positivo; é a negação de toda realidade positiva.
Lembremo-nos da frase de Bossuet ao negá-lo: “Que haja apenas um momento em que nada exista, e eternamente nada será”. Não se vê que, suprimindo pelo pensamento tudo o que existe, observamos logo que suprimimos em sua fonte toda possibilidade de existência?
Resumindo há três posições possíveis sobre o nada: 1) que absolutamente não é; 2) que é, mas é outra coisa diferente que o nada; 3) que é apenas nada.
A primeira é a tese de Parmênides. Só o ser é; unicamente o ser. A afirmação do ser do nada é uma ilusão. Os átomos são o ser cortados em pequenas partes, porque há o nada. Portanto é; mas diferente do nada absoluto: a tese de Platão. A diversidade só pode explicar-se pelo nada não-absoluto. Ele é a alteridade. Para Spinoza toda determinação é negação. Platão diz que para determinar uma ideia é preciso que ela não seja outra ideia… O não ser é; o nada é porque toda coisa é o que ela é, precisamente, porque não é tal, ou tal outra coisa. Para Aristóteles, naturalmente, não há nada absoluto, mas relativo. As coisas podem ser em ato ou em potência.
A ideia do ser puro implica a do nada, diz Hegel, pois ao pensar naquele vêmo-lo logo em face deste. A ideia do ser puro leva-nos a ele, mas a do devir leva-nos ao domínio do real e do concreto. Também não há o nada absoluto.
Para Heidegger a negação só é possível porque há um nada anterior. Não é a negação que torna o nada possível, mas este que torna a negação possível. Como o ser não pode ser atribuído a ele, Heidegger criou o termo nichten (nadificar, anihilar). O nada não é, ele nadifica a si mesmo e as outras coisas. É uma atividade de destruição, cuja realidade afirma. O nada absoluto é indefinível como o próprio ser. No entanto é verdade que, em seus últimos trabalhos, ele não considera o nada um absoluto negativo, mas quer vislumbrar nele um véu do ser através do qual talvez Deus se anuncie de maneira incompleta para nós. De qualquer forma Heidegger termina por conceder-lhe uma atividade e, consequentemente, atribuir-lhe um ato, uma eficacidade e, finalmente, um ser. Desde que se lhe dê uma eficacidade, não o excluímos mais do ser, transitando portanto, de nada para um conteúdo de ser. Surge ainda em filósofos modernos uma especulação sobre ele, decorrente da problemática que apresentam as negatividades, sobretudo na atualidade quando o impulso acósmico atua ante os problemas sociais, favorecendo o surto que se observa desde os dias do século passado das atitudes niilistas. A presença desse problema, com suas características, é bem um símbolo de nossa época, e a postulação do nada é o melhor símbolo do acósmico. Vide não-ser. [MFSDIC]