VIDE quotidianidade
24. Mas dramas, rituais ou não, bem longe residem da compreensão dos homens que já não possam ou não queiram distrair-se. Demais, dramas propendem, ao que se crê, para o lado da ação, e não para o da compreensão ou da intuição. O Homem-coisa, que viemos a ser, não se afeiçoa à ideia de que não seja só a mente a única responsável pelo pensar. Quem arriscará o paradoxo de Parmênides (frg. 16), deixando-se permear da convicção de que pensar é faculdade do homem inteiro, com sua carne e seu sangue, de todo o corpo, com alma e espírito que o complementam, mas não o dispensam? Quem o arrisque passará da doxa para [111] o paradoxo e, por isso mesmo, aceitará que o pensar não se dissocia de qualquer movimento de qualquer das partes em que se haja dividido o homem. Pensamento já está no mudo aceno para o Céu, nas mãos postas, antes que se murmure uma prece, no bater com as mãos no solo, para que as Erínias despertem, irrompam da terra e pelo mundo acorram em busca do homicida. E, sendo assim, certo é que todo o nosso agir corrente e comum, tudo quanto fazemos e vemos os outros fazer, o que cada um faz por ver que outros o fazem — tudo a que se dá o nome de «vida quotidiana», com ou sem desenganos e surpresas, também não pode deixar de ser pensamento. Pensamento em nós infuso pelas notas e acordes dominantes da cultura a que acedemos com maior ou menor esforço limitativo daqueles que, antes de termos nascido, já representavam o mesmo drama. Não se distinga esta nossa vida rotineira, de culto que prestamos a uma Potência desconhecida, e que nem queremos reconhecer como tal, quando a religião, expulsa pela porta da frente, ainda não foi readmitida pela porta de trás. É claro que aquela Potência não é assim tão desconhecida. A ação diabólica não pode senão ser o pensamento gesticulado pelo Diabo em sua essência de Grande Separador, e a nossa gesticulação, pensada ou impensada, a mais decisiva das invocações. O Diabo está connosco, a nosso lado, enquanto coagentes da fragmentação de nós e do Mundo em «coisas», o que somos durante a maior parte da nossa vida; e o que assim somos, mais não somos do que os praticantes fervorosos de uma religião irreligiosa: longe de nós a ideia de religare a coisa que o Mundo é, e a coisa que o Homem veio a ser, com a sua origem comum. [EudoroMito:111-112]