Filosofia – Pensadores e Obras

consciência

Consciência, no sentido estrito, próprio da palavra (1), significa uma espécie de saber concomitante (con-scientia) acerca da existência psíquica própria e dos estados em que ela se encontra num dado momento. Ao contrário do vegetal, que “vive”, mas tudo ignora de suas atividades vitais, o homem, mediante um saber que as acompanha, pode “vivê-las”, pode tê-las na conta das “vivências” que lhe pertencem. A consciência reflexa perfeita projeta-se sobre os processos e estados psíquicos (consciência do ato), sobre o “estar-dirigido” a um objeto, que é próprio do ato (consciência do objeto), e também sobre o próprio eu, como o sujeito das vivências (consciência do sujeito, consciência do eu, autoconsciência). A consciência reflexa faz que possamos distinguir entre eu, ato e objeto; distanciar-nos, por assim dizer, deles e inquirir suas mútuas relações e o valor lógico-formal, epistemológico e ético dos atos e, por essa forma, chegar à cultura intelectual. Na consciência imperfeitamente reflexa da vida cotidiana a atenção projeta-se, direta e principalmente sobre os objetos, mas de tal maneira que, por assim dizer, roça o próprio eu, na medida em que este vive o objeto e simultaneamente o tem diante. (De contrário, não nos seria possível recordar, mais tarde, como nossas, as vivências pretéritas). Estas formas da consciência reflexa são privativas do ser espiritual, e a capacidade para ela pertence à essência do espírito que “se auto-possui”, que “existe consigo mesmo”. Contudo, devemos também atribuir ao puramente animal pelo menos uma consciência direta, graças à qual ele “vive” de algum modo sua orientação para o objeto, embora sem refletir sobre o próprio eu e sobre o aspecto subjetivo dos atos.

Em sentido metafórico, o termo “consciência” significa (2) muitas vezes um conhecimento de vivências não já pertencentes ao tempo psíquico presente (recordação); designa, além disso (3), um saber acerca do valor ou desvalor da própria operação (“tem-se consciência” de uma boa ação) ou do valor da maneira de ser própria (“consciência de si mesmo”, entendida como orgulho); e indica, por fim, (4) a capacidade de vivei conscientemente (“perde”-se a consciência).

Para explicar o modo como os atos psíquicos se tornam conscientes, muitos escolásticos admitem, no caso da consciência sensitiva, a existência de atos especiais próprios de uma “faculdade” sensitiva peculiar um “sensus intimus”; e, no caso da consciência reflexa intelectual, um ato cognoscitivo especial da mente. Contudo, tratando-se da consciência em sentido estrito, ou seja, de viver atos e estados presentes, parece não haver necessidade de um ato especial. Antes, é propriedade do espírito o possuir-se também a si mesmo por meio de seus atos, e é propriedade do ato espiritual o ser “consciente” por sisi mesmo. Algo de análogo ocorre (no que tange a este último ponto) com o ato sensitivo consciente. O espírito, liberto das peias causadas pelo estado de união com o corpo, contemplaria diretamente sua essência espiritual como tal, ao passo que, unido ao corpo, só por dedução pode apurá-la.

As vivências singulares da consciência não estão isoladas e justapostas, mas unidas normalmente, sob duplo aspecto: por pertencerem a um único e mesmo “eu”, que continua sendo o mesmo no fluxo das mudanças vivenciais, e por sua mútua conexão que a inteligência pode compreender. Daí, o poder-se também, em linguagem metafórica, falar de consciência como de um espaço, onde se encontram as vivências como “conteúdos de consciência” , situados todavia em “diferentes escalões” da mesma, no referente à clareza de sua consciencialização. Embora, num dado momento, o centro da consciência se encontre ocupado por um só conteúdo objetivo (estreiteza da consciência), podem simultaneamente brilhar, na “margem da consciência”, vários conteúdos notados de maneira mais ou menos frouxa. Em casos patológicos, pode uma série de vivências, em si mesma todavia coerente, separar-se tão profundamente da conexão vivida e inteligível com as restantes séries vivenciais simultâneas ou anteriores, que se torne possível falar de uma “cisão” ou “desdobramento” da personalidade psicológica. Contudo, em rigor de expressão, não se pode falar de um “duplo eu”. De igual maneira, complexos isolados de vivências ou resíduos destas, existentes na memória, podem ser recalcados para o inconsciente, por uma forma gravemente nociva ao bom funcionamento das atividades psíquicas no curso da vida.

Para a epistemologia, o testemunho imediato da consciência apresenta-se como sendo a primeira e mais segura fonte do saber certo. Esse testemunho « sua valorização constituem hoje, por uma ou por outra forma, o ponto de partida da epistemologia realista (VIDE teoria do conhecimento). — Willwoll. [Brugger]


O termo “consciência” tem, em português, pelo menos dois sentidos, descoberta ou reconhecimento de algo, quer de algo exterior, como um objeto, uma realidade, uma situação, etc, quer de algo interior, como as modificações sofridas pelo próprio eu; conhecimento do bem e do mal. O sentido segundo expressa-se mais propriamente por meio da expressão consciência moral, pelo que reservamos um artigo especial a este último conceito. Neste artigo, referir-nos-emos apenas ao sentido primeiro. O sentido primeiro pode desdobrar-se noutros sentidos: o psicológico, o epistemológico ou gnoseológico, e o metafísico. Em sentido psicológico, a consciência é a percepção do eu por sisi mesmo, que por vezes também se chama apercepção. Em sentido epistemológico, a consciência é primeiramente o sujeito do conhecimento, falando-se então da relação consciência-objeto consciente como se equivalesse à relação sujeito-objeto. Em sentido metafísico, chama-se muitas vezes à consciência o Eu. Trata-se, umas vezes de uma hipótese da consciência psicológica ou gnoseológica e, outras vezes, de uma realidade que se supõe prévia a qualquer esfera psicológica ou gnoseológica.

No decurso da história da filosofia, houve muitas vezes confusões entre o sentido mencionado. A única coisa que parece comum a estes três sentidos é o caráter supostamente unificado e unificante da consciência.

Dentro de cada um destes sentidos, e especialmente dentro dos dois primeiros, estabeleceram-se várias distinções. Falou-se, por exemplo, de consciência sensitiva e intelectiva, de consciência direta e de consciência reflexa, de consciência não intencional e de consciência intencional. Esta última divisão é, a nosso ver, fundamental. Com efeito, quase todas as concepções da consciência na história da filosofia podem classificar-se nos que admitem a intencionalidade e nos que a negam ou simplesmente não a supõem. Os filósofos que se inclinaram a conceber a consciência como uma coisa entre as coisas negaram a intencionalidade ou não a tiveram em conta. A consciência é então descrita como uma faculdade com certas caraterísticas únicas. Em contrapartida, aqueles que propenderam para não considerar a consciência como uma coisa – nem sequer como uma coisa reflecionante – afirmaram ou supuseram, de algum modo, a intencionalidade da consciência. A consciência é então descrita como uma função ou conjunto de funções, como um foco de atividades ou, melhor dizendo, como um conjunto de atos orientados para algo: aquilo de que a consciência está consciente.

Muitos filósofos gregos inclinaram-se para uma concepção não intencional e coisista da consciência. Muitos filósofos cristãos sublinharam o caráter intencional da consciência. Muitos filósofos modernos, como por exemplo, Descartes, inclinaram-se para uma concepção de natureza intencional e intimista.

Kant estabeleceu uma distinção entre a consciência empírica (psicológica) e a consciência transcendental (gnoseológica) CRÍTICA DA RAZÃO PURA. A primeira pertence ao mundo fenoménico; a sua unidade só pode ser proporcionada pelas sínteses levadas a cabo mediante as intuições do espaço e do tempo e dos conceitos do entendimento. A segunda é a possibilidade da unificação de qualquer consciência empírica e, portanto, da sua identidade – e, em última análise, – a possibilidade de todo o conhecimento. Logo que exclui a noção de coisa em si, a consciência pura (sensível) kantiana passou de ser princípio de unificação de um material empírico dado (embora não organizado) a princípio de realidade. isso aconteceu com os idealistas pós-kantianos. Em Fichte e Hegel, temos uma passagem da ideia de consciência transcendental (gnoseológica) para a ideia de consciência METAFÍSICA. Fichte faz da consciência o fundamento da experiência total e identifica-a com o Eu que se estabelece a si mesmo. Hegel descreve os graus ou figuras da consciência num processo dialéctico no decurso do qual o desenvolvimento da consciência se identifica com o desenvolvimento da realidade. Embora na FENOMENOLOGIA DO ESPÍRITO a consciência apareça como o primeiro estádio, a autoconsciência como o segundo e o espírito, enquanto livre e concreto, como o terceiro (desenvolvendo-se em razão, espírito e religião, e culminando no saber absoluto), pode conceber-se a consciência como a “totalidade dos seus momentos”, e os momentos da noção do saber puro “tomam a forma de figuras ou modos da consciência”. Em Hegel, a consciência abrange, pois, a realidade que se desenvolve a si mesma, transcendendo-se a si mesma e superando-se continuamente a si mesma.

A maior atenção prestada depois do idealismo à psicologia e à irrupção do positivismo deram ao termo consciência um significado mais propriamente psicológico girando, desde então, a discussão em torno do caráter ativo ou passivo, dependente ou independente, atual ou substancial, da consciência. Cada uma destas concepções representa, por sua vez, um novo tipo de psicologia, combinando-se, por outro lado, a noção de atividade com as de independência e substancialidade, ou a de passividade com a de atualidade e dependência.

Husserl discute, nas INVESTIGAÇÕES LÓGICAS, a significação da consciência entendida como: 1: a total consistência fenomenológica real do eu empírico, como o entrelaçamento das vivências psíquicas na unidade do seu curso; 2: como percepção interna das vivências psíquicas próprias, e 3: como nome colectivo para todas as espécies de atos psíquicos ou “vivências intencionais”, dando a maior amplitude à discussão da consciência como vivência intencional. Através das fases ulteriores da fenomenologia, a concepção husserliana da consciência sofre várias modificações, pois a mera síntese vivencial converte-se num ponto de referência e, finalmente, num eu puro cujo fundamento é constituído pela totalidade e pela historicidade. Desta maneira, e particularmente ao distinguir os diversos modos da consciência, Husserl chega a uma concepção da mesma de ascendência cartesiana. Partindo também de Husserl, Jean Paul Sartre insistiu no caráter intencional da consciência, na impossibilidade de a definir por meio de categorias pertencentes às coisas. Sendo a consciência um “dirigir-se a”, a sua relação com a realidade não é a relação que existe entre uma natureza e outra natureza. por isso, pode haver consciência do ausente ou até do inexistente. E por isso para compreender a relação entre a consciência e as coisas (existentes ou não existentes, presentes ou ausentes), há que excluir toda a ideia de relação causal. Não havendo, segundo Sartre, a relação causal, a consciência pode, pois, apresentar-se como liberdade. Independentemente de Husserl, mas numa direcção análoga, Dilthey e Bergson coincidem na noção de consciência em vários pontos importantes. O eu puro de Husserl, que tem tempo e história, corresponde, em parte, ao conceito diltheyano da consciência como historicidade e totalidade, tal como ao conceito bergsoniano de memória pura, da duração pura e da pura qualidade. Em contrapartida, alguns filósofos de tendência fenomenista e empirista radical acabaram por dissolver a noção de consciência. Todavia, em muitos autores naturalistas do século XVII, a consciência sem ser negada, estava inteiramente subordinada à realidade – isto é, à natureza. Marx afirmou que a realidade determina a consciência e não o contrário. Embora seja possível encontrar no marxismo certa tendência para identificar – pelo menos no campo histórico – a realidade social com a consciência dessa realidade, muitos autores marxistas (por exemplo Lenine) defenderam uma teoria do conhecimento fotográfico, segundo a qual a consciência se limita a reflectir o real. [Ferrater]


(1) (in. Awareness; it. Consapevolezzà).

(2) (lat. conscientia; in. Conscioussness – consciência teórica, conscience = consciência moral; fr. conscience, al. Bewusstsein = consciência teórica, Gewissen = consciência moral; it. Coscienza).

No tocante ao conceito (1), em geral, a possibilidade de dar atenção aos próprios modos de ser e às próprias ações, bem como de exprimi-los com a linguagem. Essa possibilidade é a única base de fato sobre a qual foi edificada a noção filosófica de consciência. Platão e Aristóteles, que não tiveram este segundo conceito, conheceram e descreveram o primeiro.

No tocante ao conceito (2), o uso filosófico desse termo tem pouco ou nada a ver com o significado comum, de estar ciente dos próprios estados, percepções, ideias, sentimentos, volições, etc, quando se diz que um homem “está consciente” ou “tem consciência”, se não está dormindo, desmaiado, nem afastado, por outros acontecimentos, da atenção a seus modos de ser e a suas ações. O significado que esse termo tem na filosofia moderna e contemporânea, embora pressuponha genericamente essa acepção comum, é muito mais complexo: é o de uma relação da alma consigo mesma, de uma relação intrínseca ao homem, “interior” ou “espiritual”, pela qual ele pode conhecer-se de modo imediato e privilegiado e por isso julgar-se de forma segura e infalível. Trata-se, portanto, de uma noção em que o aspecto moral — a possibilidade de autojulgar-se — tem conexões estreitas com o aspecto teórico, a possibilidade de conhecer-se de modo direto e infalível. Mesmo do ponto de vista histórico, os dois aspectos desse significado foram-se determinando paralelamente. Cristianismo e neoplatonismo elaboraram paripassu a noção da relação puramente privada do homem consigo mesmo, na qual o homem se desliga das coisas e dos outros e “retorna para si mesmo”, testemunhando de si para si e criando uma indagação puramente “interior”, na qual possa conhecer-se com absoluta verdade e certeza. A determinação histórica do conceito de consciência, portanto, é correlativa à de esfera de interioridade, como um campo específico no qual seja possível realizar indagações ou buscas que digam respeito à realidade última do homem e, com muita frequência, ao que nela se revela, ou seja, Deus mesmo ou um princípio divino. Portanto, o termo consciência, nesse sentido, significa não só a qualidade de estar ciente de seus próprios conteúdos psíquicos (percepções externas ou atos autônomos do espírito), mas a atitude de “retorno para si mesmo”, de indagação voltada para a esfera de interioridade. O uso filosófico da noção de consciência supõe o reconhecimento da realidade dessa esfera e da sua natureza privilegiada. É só por existir uma esfera de interioridade, que é uma realidade privilegiada, de natureza superior ou, de qualquer forma, acessível ou mais indubitável para o homem, que a consciência constitui um instrumento importante de conhecimento e de orientação prática.

*Ora, não parece que a filosofia clássica da Grécia tenha reconhecido a realidade privilegiada da interioridade espiritual. A noção que, na filosofia de Platão, mais se aproxima da relação da alma consigo mesma é a definição de opinião (ou pensamento em geral) como “diálogo interior da alma consigo mesma” (Teet., 189 e; Sof, 263 e), mas o mais notável nessa definição é o fato de utilizar a linguagem para definir o pensamento, mais precisamente a linguagem para perguntar e responder, isto é, como diálogo ou comunicação. Portanto, o fato originário e privilegiado é a linguagem, não a interioridade da alma. Além disso, quando em Filebo, Platão quer refutar a tese de que o bem consiste no prazer, argumentando que isso reduziria a vida humana a uma vida de molusco fechado em sua casca, enumera os elementos ou os aspectos da vida que, nesse caso, faltariam ao homem: lembrança do prazer fruído; opinião verdadeira, que é saber que se está sentindo prazer; e raciocínio, que permite a previsão do prazer futuro (Fil., 21 c). Assim, segundo Platão, o que constitui aquilo que chamamos de consciência (no sentido de conhecimento dos nossos estados) nada mais é que lembrança, opinião e raciocínio, isto é, o conjunto das atividades cognitivas em geral. E é quase supérfluo observar que, quando Platão insiste no fato de que alguns processos (em primeiro lugar o juízo, na medida em que se vale do “é” ou do “não é”) não podem ser atribuídos a outro órgão que não a alma, que indaga por si só sobre o que há de comum nas sensações (Teet., 185 e ss.), não faz referência a uma esfera de interioridade, mas pretende insistir na independência dos processos racionais em relação aos dados sensíveis. “A alma só, por si” é contraposta à alma que sofre as impressões sensíveis e depende delas. Em Aristóteles, não se encontra uma noção sequer de interioridade espiritual. Por um lado, ele atribui a consciência, como o estar ciente das próprias percepções sensíveis, aos sentidos, de tal modo que, por ex., sentir que se vê pertence ao sentido da visão, assim como sentir que se ouve, ao sentido da audição. Não é possível que o estar cônscio de ver pertença a outro sentido que não o da visão, já que, nesse caso, haveria uma série infinita de órgãos sensíveis: o sentir que se sente que se sente… que se vê (De an., III, 2, 425 b 12). Por outro lado, a noção de “pensamento do pensamento”, com que ele define a vida de Deus, nada tem a ver com a interioridade da consciência: exprime somente a exigência de que o pensamento, que, para o homem, pode ter como objeto até as piores coisas, em Deus só tenha por objeto o que há de mais excelente, isto é, o próprio pensamento (Met., XII, 9, 1074 b 30 e ss.).

O reconhecimento de uma realidade interior privilegiada só existe nas filosofias que assumem como tema a oposição entre “interioridade” e “exterioridade”, ou seja, que se chamam a si a tarefa de afastar o homem das relações com as coisas e com os outros homens (isto é, com a natureza e com o mundo histórico-social) para torná-lo um “sábio”, para quem essa relação seja indiferente. Isso ocorre na filosofia pós-aristotélica, a partir do Estoicismo. Sabemos que Crisipo já insistia na distinção entre o pensamento e a consciência do pensamento (Galeno, Hipp. et Plat. dogm., V, 215). Essa distinção, com a qual também começa o uso da palavra consciência em sentido específico, passa a ser lugar-comum da pregação moral do Estoicismo e depois se torna tema dominante e central da filosofia neoplatônica; esta acentuou a separação entre o homem e o mundo, elaborando, portanto, como fazia o Cristianismo paralelamente, a noção de testemunho interior privilegiado. Fílon utiliza a noção de consciência (De virtutibus, 124; De special legibus, II, 49) com o mesmo sentido moral que se observa em Eclesiastes (10, 20) e nas Epístolas de São Paulo (Rom., 2, 15; 13, 15; II Cor, 4, 2; 5, 11). Nestas, significa testemunho moral autônomo, manifestação direta da lei ou de alguma verdade ao homem. Mas a elaboração decisiva da noção de consciência é obra de Plotino. Nele, aparece claramente a diferença e, às vezes, a oposição entre o estar cônscio, como certa qualidade dos conteúdos psíquicos, que Plotino chama de co-sensação ou co-sequência, e o “retorno para si mesmo” ou o “retorno para a interioridade” ou a “reflexão sobre si mesmo”, que constituem a consciência propriamente dita (Enn., V, 3, 1; IV, 7,10). Embora o mesmo termo às vezes seja empregado para as duas coisas (Enn., V, 8, 11, 23), Plotino deixa evidente a oposição entre os dois sentidos: um é a percepção do que se sente ou se faz e o outro é o acesso à realidade interior do homem. Afirma que há muitas atividades, visões e ações belíssimas que não são acompanhadas pelo “estar cônscio”; p. ex., quem lê não está necessariamente cônscio de que está lendo, sobretudo se lê com atenção; quem age com coragem não está cônscio de estar agindo corajosamente enquanto realiza a ação; e assim por diante. Aliás, esse tipo de consciência pode enfraquecer a atividade que acompanha: “Por si sós, essas atividades têm mais pureza, mais força e mais vida; de tal modo que é sem estarem cônscios que aqueles que chegaram à sabedoria têm uma vida mais intensa, que não se dispersa em sensações, mas recolhe-se inteiramente em si mesma” (Ibid., I, 4, 10). Precisamente esse “recolher-se em si mesmo” é a consciência como atitude ou condição do sábio que prescinde do exterior (das coisas e dos outros homens) e só olha para o interior. Contra os estoicos que aconselham o recolhimento em si mesmos (Epicteto, Diss., III, 22, 38; I, 4, 18, etc), mas tomam as coisas exteriores como objeto de vontade, Plotino diz que, depois de dirigir sua vontade para sisi mesmo, o sábio não pode buscar a felicidade nas manifestações exteriores nem procurar nas coisas exteriores o objeto de sua vontade (Enn., I, 4, 11). O que ele deve fazer é “olhar para dentro”, e o que é isso? Plotino diz o que é quando trata da procura do Belo inteligível, atrás do qual está o próprio Bem, isto é, Deus. E preciso “retornar para si mesmo” e tornar-se aquilo que se quer olhar. “Jamais um olho verá o sol sem tornar-se semelhante ao sol, nem uma alma verá o Belo sem ser bela. Portanto, quem quer contemplar Deus e o Belo deve começar por tornar-se semelhante a Deus e belo” (Ibid., I, 6, 9). Nesse caso, a consciência identifica-se com a própria condição do sábio, “que extrai de si mesmo o que revela aos outros e olha para sisi mesmo, pois não somente tende a unificar-se e a isolar-se das coisas externas, como está voltado para sisi mesmo e encontra em si todas as coisas”(Ibid., III, 8, 6).

*Essa atitude de auto-ausculatação interior que, para a filosofia paga, era privilégio do sábio, na filosofia cristã é acessível a qualquer homem como tal. S. Agostinho é quem traduz para termos cristãos, isto é, universalistas, a atitude aristocrática do sábio. O homem espiritual de que falava S. Paulo (I Cor, II, 16) é o verdadeiro protagonista de sua filosofia, cujo tema fundamental foi expresso pelas célebres palavras: “Não saias de ti, retorna para ti mesmo, no interior do homem habita a verdade e, se achares mutável a tua natureza, transcende-te a ti mesmo” (De vera rei, 39). S. Agostinho insiste justamente nessa transcendência, que não se dirige ao exterior (as coisas, os homens), mas a Deus enquanto princípio, norma e medida da própria realidade íntima do homem. Deus reflete-se no caráter auto-reflexivo da alma humana que, nas três faculdadesmemória, inteligência e vontade — reflete a Trindade divina. Agostinho diz (De Trin., X, 18): “Lembro que tenho memória, inteligência e vontade; entendo que entendo, quero e lembro e quero querer, lembrar e entender”. De tal modo que não só a alma em seu todo, mas cada aspecto ou faculdade da alma olha para si e define-se em sua relação puramente intrínseca consigo. “A mente não conhece nada tão bem quanto aquilo que lhe é mais acessível e nada está tão próximo da mente quanto ela de si mesma” (Ibid., XIV, 7). Este estava destinado a ser um dos temas mais repetidos da filosofia medieval e moderna: a certeza de sua própria existência que a alma, o pensamento, a razão haurem na consciência de si, dada a estrutura da consciência como relação intrínseca, direta e privilegiada que não pode ser perturbada, destruída ou falsificada por nada. Na Idade Média esse tema reaparece sobretudo na tradição agostiniana: é repetido por Scotus Erigena (De divis. nat, IV, 9), S. Anselmo (Mon., § 33) e outros. Contudo, sua importância é menor na corrente aristotélica, dado o seu caráter objetivista. A análise que S. Tomás faz do termo consciência visa a esclarecer sobretudo seu aspecto moral, em relação com o conceito de sindérese; fora desse significado, para S. Tomás a consciência é o simplesestar cônscio”. “O nome consciência”, diz ele, “significa a aplicação da ciência a alguma coisa; daí, conscire é como simul scire. Qualquer ciência pode ser aplicada a alguma coisa, por isso a consciência não indica um hábito ou uma potência especial, mas o ato de aplicar um hábito ou uma noção a algum ato particular. Ora, uma noção pode ser aplicada a um ato de dois modos: em primeiro lugar, para considerar se o ato é ou foi e, em segundo lugar, para considerar se o ato é lícito ou não o é. No primeiro modo, dizemos ter consciência de um ato quando sabemos que esse ato foi ou não realizado; assim, no uso linguístico comum se diz: ‘Eu não tinha consciência desse fato’, no sentido de que não sei se ele aconteceu ou não… No segundo modo, a ciência aplica-se a um ato para dirigi-lo, como quando dizemos que a consciência nos induz, nos obriga, ou para examinar o ato realizado, como quando dizemos que a consciência nos acusa, nos atormenta ao julgarmos que o ato realizado discorda da ciência com a qual é examinado, ou então, que a consciência nos defende ou nos desculpa ao julgarmos que a ação se conforma à ciência” (De ver., q. 17, a. 1). O que há de notável nessa análise de S. Tomás é que toda a noção de consciência, tanto no significado teórico de percepção de si quanto no significado prático de sindérese, ou consciência moral, reduz-se quanto à aplicação de conhecimentos objetivos (“ciência”)- O caráter privilegiado da relação intrínseca da mente consigo mesma, todavia, é reconhecido por S. Tomás: “Nossa mente conhece-se a si mesma por si mesma enquanto conhece sua própria existência: com efeito, enquanto percebe sua própria atividade, percebe sua própria existência” (Contra Gent., III, 46). Essa certeza privilegiada, no entanto, limita-se ao simples fato da existência da alma, ao passo que a alma não tem nenhum conhecimento privilegiado de si mesma no que se refere à sua essência e aos seus modos de ser.

*A relação da alma consigo mesma como condição da relação da alma com as coisas ou, em outros termos, a consciência imediata de si como condição da consciência das outras coisas, é doutrina defendida, nos primórdios da Idade Moderna, por Telésio e Campanella. Diz Telésio: “O sentido é a percepção das ações ou das coisas, dos impulsos do ar, tanto quanto das próprias afeições, das próprias modificações e dos próprios movimentos; sobretudo destes. O sentido percebe essas ações só quando percebe que é influenciado, modificado e comovido por elas” (Derer. nat., VII, 3). Campanella chama de “conhecimento inato de si mesmo” (Met., VI, 8, a. 1)ou “sapiência inata” (Teol, 1,11, a. 1) o conhecimento originário de si que todas as coisas possuem e que serve de intermediário ou de condição para os conhecimentos que adquirem das outras coisas. Mas só com Descartes a noção de consciência é esclarecida com os caracteres pelos quais deveria ser universalmente aceita na filosofia ocidental. O cogito ergo sum é a auto-evidência existencial do pensamento, isto é, a garantia que o pensamento (como consciência) tem de sua própria existência. Diz Descartes: “Com o nome de pensamento entendo todas as coisas que acontecem em nós com consciência, enquanto temos consciência delas. Assim não só entender, querer e imaginar, mas também sentir é o mesmo que pensar. Pois se digo: vejo ou ando, logo sou, e pretendo falar da visão e do andar que se faz com o corpo, a conclusão não é absolutamente certa; porque, como muitas vezes ocorre nos sonhos, posso achar que estou vendo ou andando, mas não abri os olhos nem saí do lugar e talvez nem tenha corpo algum. Mas se falo do próprio sentido, isto é, da consciência de ver ou de andar, a conclusão é certa porque então se refere à mente, que só sente ou pensa que vê ou anda” (Princ. phil, I, 9). As características fundamentais da doutrina cartesiana podem ser recapituladas do seguinte modo: 1) a consciência não é um evento ou um grupo de eventos particulares, nem um aspecto particular ou uma atividade particular da alma, mas é toda a vida espiritual do homem em todas as suas manifestações, desde sentir até raciocinar e querer; 2) sua esfera, portanto, é a mesma do eu como sujeito ou substância pensante; 3) ela é auto-evidência existencial do eu ou, se preferir, o eu é, para ela, a evidência de sua própria existência; 4) a auto-evidência existencial do eu é o modelo e o fundamento de qualquer outra evidência, isto é, de todo conhecimeto válido; 5) a auto-evidência do eu torna problemática qualquer outra evidência, ainda que, por fim, consiga fundá-la. Esses pontos básicos serviram como ponto de partida para a filosofia moderna; e, entre eles, aquele que, de certo modo, resume todos os outros, ou seja, o 2o, determinou a corrente subjetivista dessa filosofia. Contudo, não se deve esquecer que a fecundidade da «filosofia cartesiana não consistiu tanto na única certeza que dava, isto é, no Cogito, mas nas muitas certezas que destruía, ou seja, no fato de que, do ponto de vista do Cogito, muitas realidades até então não discutidas (e a primeira delas, a do “mundo externo”) adquiriram caráter problemático e deram início a novos tipos ou correntes de indagação. De fato, mesmo o conceito de experiência elaborado por Locke coincide grosso modo com o de consciência (Uma vez que todo homem está cônscio de que pensa e uma vez que aquilo que se encontra em seu espírito quando ele pensa são as ideias que o ocupam naquele momento, não há dúvida de que os homens têm muitas ideias em seu espírito, etc.”, Ensaio, n, 1,1.) É verdade que Locke restringe o uso da palavra consciência à certeza absoluta que o homem tem de sua própria existência (“Em todo ato de sensação, raciocínio e pensamento, estamos cônscios, diante de nós mesmos, do nosso ser, e nesse ponto não deixamos de haurir o mais alto grau de certeza”, Ibid., IV, 9, 3), e que a relação entre a alma e as suas próprias operações é o que ele chama de “reflexão” (Ibid, II, 1, 4), mas também é verdade que o que ele chama de experiência em geral nada mais é que a consciência no sentido cartesiano, pois a mesma relação com o objeto externo inclui-se inteiramente na esfera da consciência, que, por isso, não atinge nada além de “ideias”. Dessa colocação nasce o problema do IV livro do Ensaia justificar a “realidade” do conhecimento depois de tê-la definido como nada mais, nada menos que a percepção da concordância ou discordância entre as ideias. “É evidente”, diz Locke, “que o espírito não conhece as coisas imediatamente, mas só mediante a intervenção das ideias que ele tem delas. Por isso, nosso conhecimento só é real quando há conformidade entre nossas ideias e a realidade das coisas. Mas qual será o, critério? Como poderá a mente, desde que não percebe nada além de suas próprias ideias, saber se estas concordam com as coisas?” (Ibid., IV, 4, 3). O fato mesmo de esse problema se apresentar (independente do modo como será resolvido) revela com toda clareza o fundamento consciencialista da filosofia de Locke, fundamento para o qual a filosofia nada mais é que a análise da consciência, não podendo ir nenhum passo além. É justamente essa expressão que Hume emprega para negar qualquer “existência externa”. Diz Hume: “Como nada está jamais presente na mente além das percepções, e como as ideias derivam daquilo que antes esteve presente na mente, conclui-se que nos é impossível representar ou formar a ideia de algo que seja especificamente diferente das ideias ou das impressões. No entanto, se fixarmos o máximo possível nossa atenção fora de nós, se elevamos nossa imaginação até os céus e até os limites extremos do universo, na verdade não daremos sequer um passo além de nós mesmos, nem poderemos nunca imaginar espécie alguma de existência que não seja a das percepções que se apresentam em nosso pequeno círculo” (Treatise, I, 2, 6). Essa impossibilidade de ultrapassar o círculo da consciência é a primeira e mais importante consequência do uso da noção de consciência para delimitar a esfera de investigação filosófica.

*As coisas não são diferentes para o racionalismo pós-cartesiano. Leibniz faz a distinção entre a consciência, que ele identifica com a apercepção, e percepção, de que se pode não estar claramente consciente (Monad, § 14); mas considera toda a vida da mônada, isto é, da substância espiritual, como puramente interior a ela e acessível só a partir do interior. As mônadas não têm janelas através das quais possa entrar e sair algo (Ibid., § 7); por isso “as mudanças naturais das mônadas vêm de um princípio interno, pois uma causa externa não poderia influir em sua interioridade” (Ibid., § 11). Na vasta esfera das percepções da mônada, a reflexão recorta a esfera mais restrita das apercepções, que constituem o eu. “Com o conhecimento das verdades necessárias e com as suas abstrações, somos elevados aos atos reflexos que nos fazem pensar no que se chama eu, e a considerar que isto ou aquilo está em nós; é assim que, pensando em nós, pensamos no ser, na substância, no simples, no composto, na imaterialidade e em Deus mesmo, concebendo aquilo que é limitado em nós e sem limites nele. Esses atos reflexivos fornecem os objetos principais dos nossos raciocínios” (Ibid., § 31). essas palavras de Leibniz exprimem a tarefa que, a partir dele, toda a filosofia espiritualista assumiu.

Kant distinguiu a consciência discursiva e a consciência intuitiva, que são dois outros nomes para indicar, respectivamente, a apercepção pura e a apercepção empírica (v. Apercepção). A consciência discursiva é “o eu da reflexão”, que não contém em si nenhum múltiplo e é sempre o mesmo em todos os juízos porque implica só o lado formal da consciência. A consciência intuitiva é, ao contrário, experiência interior, que inclui o material múltiplo da intuição empírica interior (Antr., I, § 7, Anotação). Mas, embora consciência pura ou discursiva e consciência empírica compreendam tudo o que o homem é ou pode atingir, Kant fez o esforço mais bem-sucedido para romper aquilo que, na filosofia moderna, se pode chamar de círculo mágico da consciência e para justificar a relação do homem com o mundo. À observação de que “Tenho somente consciência imediata do que está em mim, isto é, da minha representação das coisas externas” e, portanto, “ainda é preciso demonstrar que há ou não algo de correspondente fora de mim”, Kant responde que “ter consciência de minha representação” significa “ter consciência empírica de minha existência”, e isso significa “poder ser determinado só em relação a alguma coisa que, mesmo estando ligada à minha existência, está fora de mim”. Logo, “a consciência de minha existência no tempo” é a “consciência de uma relação com alguma coisa fora de mim” (Crít. R. Pura, Pref. à 2a ed., Nota sobre a refutação do idealismo). Paradoxalmente, em Kant o termo consciência indica uma relação não interior ou íntima no homem, mas entre o homem e algo de exterior. A apercepção pura ou transcendental (o Eu penso) não é senão a possibilidade da relação, constitutiva da consciência empírica, entre o eu empírico e o objeto: possibilidade que, como consciência, nada mais é que a inteligência como espontaneidade (Ibid., § 25, nota 1).

*É claro que, para ser efetiva e operante, a relação entre o eu e o que não é eu não deve incidir exclusivamente no próprio eu, isto é, na “consciência”, porque nesse caso seria uma relação interior do eu ou da consciência, e não uma relação com uma realidade diferente. Em outros termos, para que subsista tal relação, a consciência não deve ser considerada como uma relação interior a si mesma, como uma relação entre a consciência e ela mesma (ou algum de seus fatos, operações ou feições), mas como uma relação da consciência com algo que não é consciência: segundo a terminologia em uso na filosofia contemporânea, deve ser uma relação de transcendência. Talvez isso possa ser visto, pelo menos de modo implícito, na doutrina de Kant, mas só se torna explícito em algumas correntes da filosofia contemporânea. A filosofia pós-kantiana, especialmente o Idealismo romântico, centra-se na imanência total da realidade da consciência. Para Hegel, a consciência constitui o ponto de partida da filosofia e fornece-lhe todo o conteúdo: a tarefa da filosofia é a elaboração conceituai desse conteúdo, graças à qual esse conteúdo adquire absoluta verdade e realidade, torna-se “Espírito” ou “Conceito”. A Fenomenologia do espírito é, com efeito, o percurso da consciência ao espírito. “A experiência que a consciência tem de si não pode, segundo o conceito da própria experiência, compreender em si algo menos que todo o sistema da consciência, ou seja, o reino todo do espírito… Arremetendo para sua existência verdadeira, a consciência chegará a um ponto em que se libertará da aparência de estar invalidada por algo estranho, que lhe é alheio, ponto em que a aparência será igual à essência (Phänomen. des Geistes, I, Intr., ao final). Hegel censura a filosofia de Kant e a de Fichte por terem permanecido como “filosofias da consciência”, por não terem transformado a consciência em ciência objetiva e absoluta. “A filosofia kantiana pode ser considerada mais determinante, por ter concebido o espírito como consciência e por conter somente determinações da fenomenologia, e não da filosofia do espírito. Considera o eu como em relação com algo que está além, alguma coisa que, em sua determinação abstrata, chama-se coisa-em-si e concebe tanto a inteligência quanto a vontade segundo essa finitude… Por isso, deve ser considerada justa a interpretação que Reinhold faz dessa filosofia, concebendo-a como teoria da consciência sob o nome de faculdade representativa. A filosofia fichteana tem o mesmo ponto de vista e o não-eu é determinado só como objeto do eu, só na consciência. Ambas as filosofias mostram assim que não chegaram nem ao conceito nem ao espírito, da forma como ele é em si e por si, mas só ao espírito como ele é em relação com outra coisa” (Ene, § 415). Hegel quer dizer que a noção de consciência implica a relação da consciência com um objeto que, pelo menos à primeira vista, não é consciência, mas alguma outra coisa; e que a noção de conceito ou de espírito (autoconsciência) elimina essa alteridade. Mas erra ao equiparar o ponto de vista de Kant ao de Fichte. Para Fichte o não-eu incide no interior do eu, e por isso a relação com ele é intrínseca ao eu (isto é, à consciência). Para Kant, porém, a relação se estabelece entre o eu e algo diferente do eu. Mas Fichte e Hegel têm em comum o conceito da Autoconsciência, isto é, um Princípio absoluto que, auto-criando-se, cria a própria realidade em sua totalidade. O que Hegel entende por espírito ou conceito é uma Autoconsciência infinita desse tipo.

*A consciência e a autoconsciência tornam-se protagonistas de boa parte da filosofia do séc. XIX e dos primeiros decênios deste século. A alternativa entre essas duas noções é a que existe entre Espiritualismo e Idealismo, isto é, entre a corrente que procura e acredita encontrar na consciência, considerada como finita e própria do homem, a manifestação, a revelação ou pelo menos o sinal do Infinito, e a corrente que considera infinita a consciência porque idêntica, mediata ou imediatamente, ao Infinito. Todo o movimento romântico da “volta à tradição” lança mão, como único texto e fundamento, da consciência como manifestação ou revelação imediata e infalível da Verdade ao homem. Maine de Biran e Lamennais, Galluppi e Cousin, Martineau, Rosmini e Gioberti, todos consideram a consciência como ponto de partida e fundamento da filosofia e concebem-na como a manifestação e revelação imediata da verdade e da vontade de Deus ao homem. Esse princípio não se altera substancialmente nas várias formas do Espiritualismo contemporâneo, podendo, aliás, ser considerado sua definição. Na mais importante dessas formas, a doutrina de Bergson, a consciência, como atitude de introspecção ou auscultação interior, de busca dos “dados imediatos”, é a própria filosofia; e é também a realidade, a única realidade. “Em todo o reino animal”, diz Bergson, “a consciência mostra-se proporcional à possibilidade de opção de que o ser vivo dispõe. Ela ilumina a zona de virtualidades que circundam o ato: mede o intervalo entre o que se faz e o que se poderia fazer. Olhando-a de fora, poder-se-ia tomá-la por um simples auxiliar da ação, por uma luz que ilumina a ação, centelha fugidia que brotaria do atrito entre ação real e ações possíveis. Mas é preciso observar que as coisas se passariam do mesmo modo se a consciência, em vez de efeito, fosse causa” (Évol. créatr., 11a ed., 1911, pp. 194-195). E essa é, na realidade, segundo Bergson, a história verdadeira. “A vida, ou seja, a consciência lançada através da matéria, fixa a atenção em seu próprio movimento ou na matéria que atravessa, orientando-se assim no sentido da intuição ou no sentido da inteligência”. Na primeira direção, a consciência encontrou-se comprimida por seu invólucro e limitou-se a ir da intuição ao instinto. Na segunda direção, determinando-se como inteligência, exterioriza-se de si mesma, mas justamente por se adotar aos objetos externos chega a circular entre eles, a contornar as barreiras que eles lhe opõem e a estender indefinidamente seu domínio. “Uma vez liberta, pode dobrar-se sobre si mesma e despertar as virtualidades de intuição que ainda dormitam nela” (Ibid., p. 197). A consciência é, portanto, o princípio criativo da realidade e ao mesmo tempo manifesta e revela imediatamente essa realidade no interior do homem.

*Observações desse tipo são tão frequentes e repetidas na filosofia contemporânea que seria supérfluo reproduzi-las. Interessa aqui fixar as etapas relevantes do desenvolvimento dessa noção; na filosofia contemporânea, a etapa mais importante é constituída pela fenomenologia de Husserl. O ponto de partida e o ponto de chegada dessa fenomenologia são os mesmos do espiritualismo, identificam-se com a consciência tradicionalmente entendida como atitude de auto-auscultação. Husserl parte do cogito cartesiano, isto é, da consideração das vivências (Erlebnisse) “em toda a plenitude concreta com que se apresentam em sua conexão concreta — a corrente da consciência —, na qual se unificam graças à sua própria essência” (Ideen, I, § 34). Mas para esclarecer a natureza das vivências, isto é, da consciência em geral, Husserl vale-se da noção de intencionalidade, já utilizada por Brentano para definir o caráter dos fenômenos psíquicos (Psychologie vom empirischen Standpunkt, 1874). A intencionalidade é o referir-se ou o reportar-se do ato de consciência a outra coisa, a alguma coisa que não é o próprio ato de consciência. Para Husserl, essa noção (v. Intencionalidade) define a própria natureza da consciência em geral, que, por isso, é um transcender que constitui uma relação com o objeto “em pessoa” e não com uma imagem ou representação dele. Nesse sentido, a relação com o objeto não é “psicológica”, não incide no círculo de uma realidade específica, a alma, mas é de natureza lógico-transcendental, é uma possibilidade que define o modo de ser da consciência. A consciência nesse sentido, para Husserl, é aquilo que era para Kant: uma relação com o objeto, mais precisamente, uma relação na qual o objeto se dá como tal. Todavia, para Husserl, a intencionalidade não exaure a essência da consciência, que é uma “corrente de vivências” (Erlebnisse) e apreende-se a si mesma de forma direta e privilegiada, que nada mais tem a ver com a intencionalidade. Nesse aspecto, Husserl distingue a percepção imanente da percepção transcendente. A percepção transcendente é a percepção da coisa no espaço, que nunca está presente à consciência em sua plena atualidade. Daí deriva o caráter em si do objeto transcendente, caráter que exprime a possibilidade da consciência de retornar ao objeto e de identificá-lo. Mas justamente por estar ligada a essa simples possibilidade a existência da coisa nunca é necessária, mas contingente; tudo o que da coisa é dado à percepção transcendente pode também não ser; a percepção transcendente é sempre duvidosa (Ideen, I, § 46). A percepção imanente, ao contrário, é a percepção do cogito cartesiano, que tem por objeto as mesmas vivências (recordar, imaginar, desejar, etc.) Estas não são dadas à consciência do mesmo modo como a coisa é dada aos fenômenos subjetivos, isto é, através de aparições, sombreamentos, aproximações, que acenam para a unidade transcendente do objeto: ao contrário, caracteriza-se pela imediação e pela absolutidade. “A percepção da vivência”, diz Husserl (Ibid., § 44), “é a visão direta de alguma coisa que se dá ou que pode dar-se na percepção como absoluta e não mais como a identidade das aparências que a sombreiam… Um sentimento não aparece por sombreamentos. Se lanço o olhar sobre ele, tenho algo de absoluto, desprovido de aspectos que poderiam apresentar-se tanto de um modo como de outro”. A percepção imanente é, portanto, a esfera da posição absoluta: implica a impossibilidade de negar sua existência. “Embora a minha corrente de consciência só seja apreendida de modo restrito, embora seja desconhecida nas partes já transatas ou ainda vindouras, se lanço o olhar sobre seu presente efetivo e se me apreendo a mim mesmo como puro sujeito desta vida, afirmo necessariamente: sou, esse viver é, eu vivo: cogito” (Ibid., § 46). Daí deriva que, enquanto o ser imanente (isto é, o ser da consciência reflexa) é absoluto no sentido de que, para existir, não tem necessidade de nada, o ser transcendente (isto é, o mundo das coisas) é relativo à consciência. “Todo o mundo espácio-temporal ao qual o homem e o eu humano pertencem como realidades singulares subordinadas é, segundo o seu sentido, um ser puramente intencional, na medida em que tem o sentido meramente secundário e relativo de um ser para uma consciência. É um ser que a consciência põe em suas experiências, que é visível e determinável só enquanto permanece idêntico na multiplicidade das aparições, mas fora disso é nada” (Ibid., § 49). Daí deriva o caráter absoluto ou “apodítico” da subjetividade, do eu transcendental, que é auto-suficiente no sentido de que “pertence à sua essência a possibilidade de auto-apreensão, de autopercepção” (Ideen, II, § 22); e daí deriva também a superioridade metafísica do espírito: “O espírito e só o espírito existe em sisi mesmo e por sisi mesmo: o espírito é autônomo e só nessa autonomia pode ser tratado de forma verdadeiramente racional e radicalmente científica” (Krisis, § 345). As concepções da consciência provenientes da fenomenologia podem ordenar-se segundo duas correntes opostas: a objetivista e a espiritualista. A espiritualista continua adotando como tema o cogito cartesiano e acentua a imanência da consciência. A corrente objetivista acentua o caráter objetivo da relação intencional e, por isso, considera o objeto como autenticamente transcendente: em última instância, essa corrente tende a deixar de lado a noção de consciência. Vinculam-se à corrente espiritualista as doutrinas de Jaspers e de Sartre. Para Jaspers, análise existencial é a analise da consciência. “Existir”, diz Jaspers, “é consciência: eu existo como consciência e só como objetos de consciência as coisas existem para mim. Tudo o que existe para mim deve entrar na consciência” (Phil, I, p. 7). Sobre a consciência, Jaspers tem o conceito peculiar à fenomenologia: “A consciência não é um ser como o da coisa, mas é um ser cuja essência é estar voltado para significar o objeto. Esse fenômeno originário, tão miraculoso quanto em sisi mesmo compreensível, foi chamado intencionalidade”. Mas a consciência não está voltada só para o objeto, reflete-se sobre si mesma e também é, portanto, autoconsciência. “O eu penso e o eu penso que penso andam juntos, de tal modo que um não fica sem o outro. O que parece contraditório do ponto de vista lógico aqui é real: um não é um, mas dois, e todavia não se torna dois, mas, graças à sua singularidade, permanece um. Esse é o conceito do eu formal em geral” (Ibid., p. 8) Jaspers ressaltou assim o caráter não transcendível e quase místico da consciência, que, por isso, constitui todo o seu campo de especulação. De modo análogo, Sartre declara explicitamente que o estudo da realidade humana deve começar pelo cogito (L’être et le néant, p. 127). A consciência é, em primeiro lugar, consciência de alguma coisa e de alguma coisa que não é consciência. Sartre chama esse alguma coisa de em si. O ser em si só pode ser designado analiticamete, como “o ser que é o que é”, expressão que designa sua opacidade, seu caráter maciço e estático, pelo que não é nem possível nem necessário: é, simplesmente (Ibid., pp. 33-34). Diante desse ser em si, a consciência é o para si, a presença para si mesma (Ibid., p. 119). A presença para si mesma implica uma fissura, uma separação interna. Uma crença, p. ex., é como tal sempre consciência da crença; mas para captá-la como crença é necessário separá-la da consciência para a qual está presente. Mas nada há ou pode haver que separe o sujeito de si mesmo. “A fissura intraconsciencial é um nada fora daquilo que ela nega e só pode ter ser na medida em que não se a vê. Esse negativo, que é nada de ser e poder nadificante ao mesmo tempo, é o nada. Em nenhum lugar poderíamos apreendê-lo com semelhante pureza. Em todos os lugares, de um modo ou de outro, é preciso conferir-lhe o ser-em-si enquanto nada” (Ibid., p. 120). Condicionando a estrutura da consciência, o nada é condição da totalidade do ser que é tal só para a consciência e na consciência. Mas ele define o ser da consciência que é expresso por Sartre desta forma: “O ser pelo qual o nada vem ao mundo deve ser o seu próprio nada” (Ibid., p. 59), o que significa que a consciência é o seu próprio nada na medida em que se determina a não ser o em-si a que se refere. Paradoxalmente, partindo da mesma premissa de Husserl, Sartre chega à conclusão simetricamente oposta. Para ele, assim como para Husserl, a consciência em sua percepção imanente, isto é, em seu ato de auto-reflexão, é tudo, é o absoluto. Mas por sua fissura interna como negação do em-si, ela é o próprio nada. Essa conclusão é tão pouco apta a exprimir ou a compreender os fenômenos relativos à consciência quanto a de Husserl.

*Por outro lado, Hartmann e Heidegger apresentam a alternativa objetivista da interpretação da consciência como intencionalidade. Hartmann julga que a noção de “consciência aberta”, que penetre sem limites no mundo das coisas, é falsa. A consciência é essencialmente clausura e as coisas nunca entram nela, mas permanecem além dela, ainda quando conhecidas. “A consciência não tem coisas, mas representações, concepções, imagens das coisas; e estas podem coincidir ou não com as coisas, isto é, ser verdadeiras ou não verdadeiras. Daí resulta que o conhecimento não é simples ato de consciência, como representar ou pensar, mas um ato transcendente. Um ato semelhante prende-se ao sujeito apenas por um de seus lados e com o outro estende-se para fora dele; com este lado, prende-se ao existente que, por seu intermédio, passa a ser objeto. O conhecimento é relação entre um sujeito e um objeto existente. Nessa relação, o ato transcende a consciência” (Systematische Philosophie, § 11). Desse modo, a consciência perde a supremacia e o caráter de círculo encantado, do qual não é possível escapar. Para Hartmann, o conhecimento é, para todos os efeitos, a transcendência da consciência para um objeto que existe independentemente dela. A consciência também perde o caráter de infalibilidade e perde-o a consciência histórica, a consciência coletiva. Esta nunca é adequada a si mesma, como seria se fosse de um Espírito Absoluto. O espírito histórico revela, no mais das vezes, sua própria natureza quando já é passado. “Não se mostra mais à sua própria consciência, mas a outra. Para a sua esconde-se atrás daquilo ela sabe dele” (Ibid., § 19). Na mesma linha, porém mais radicalmente, Heidegger fez uma análise da existência humana que prescinde completamente do termo e da noção tradicional de consciência (Bewusstsein), mas utilizou e interpretou a noção de consciência moral (Gewissen), isto é, da “voz da consciência”. A eliminação da noção tradicional de consciência deve-se ao uso que Heidegger fez da noção de transcendência na análise da relação do homem com o mundo. A transcendência não é para o homem um comportamento entre os outros possíveis, mas a própria essência de sua subjetividade; e o termo para o qual o homem transcende é o mundo, que nesse caso não designa a totalidade das coisas naturais ou a comunidade dos homens, mas a estrutura relacionai que caracteriza a existência humana como transcendência. Transcender para o mundo significa fazer do mundo o projeto das atitudes possíveis ou das ações possíveis do homem; mas enquanto projeto, o mundo recompreende em si o homem que se acha “lançado” nele e submetido às suas limitações. “A transcendência”, diz Heidegger, “exprime o projeto do mundo de tal modo que O-que-projeta é dominado pela realidade que ele transcende e já está conciliado com ela” (Vom Wesen des Grandes, III). Simultaneamente a transcendência também constitui o si mesmo do homem, isto é, a identidade do homem singular existente. “Na transcendência e através dela é possível distinguir no interior do existente e decidir quem é e como se é Si-mesmo e o que não o é” (Ibid., II). A relação do homem consigo mesmo e com o mundo, descrita em termos de transcendência, deixa de ter os caracteres tradicionais da consciência trancamento em si mesma, imediação, auto-reflexão, etc), de sorte que Heidegger pode dispensar até mesmo o termo consciência. Em sentido mais tradicional, porém, é utilizada a noção de “voz da consciência”. Esta é entendida como uma relação intrínseca do ser-ai do homem, mais precisamente uma relação pela qual o homem é revocado da existência anônima e banal do “diz-se”, “faz-se”, etc, para seu próprio e autêntico “poder-ser”, isto é, para a sua possibilidade constitutiva última, o ser-para-a-morte. “Para o que o ser é revocado? Para o seu próprio Si-mesmo. Portanto, não para alguma coisa à qual o ser-aí, na convivência pública, confira valor e urgência de possibilidade ou de fuga, nem mesmo àquilo que ele tomou, a que se dedicou, de que se assenhoreou. O ser-aí, relacionado consigo mesmo e com os outros no quadro da mundanidade, é ultrapassado nessa conclamação” (Sein und Zeit, § 56). Portanto, o ser-aí que compreende essa conclamação “obedece à possibilidade mais própria de sua existência. Escolheu-se a si mesmo” (Ibid., § 58). Ainda aqui, portanto, onde deveríamos encontrar uma relação intra-consciencial, há uma relação de transcendência.

*A análise existencial de Heidegger foi um duro golpe contra o primado metafísico da consciência, tão tenazmente afirmada pela filosofia moderna e contemporânea. Não só essa análise deixa de utilizar o termo consciência ou a noção de consciência, como também a distinção entre “interior” e “exterior”, entre o que está na e o que está fora da consciência deixa de ter sentido. Todavia, o caso de Heidegger não é o único na filosofia contemporânea. O naturalismo instrumentalista e o positivismo lógico chegam à mesma negação do conceito tradicional de consciência. Dewey chega a ignorar esse significado, que, como se viu, não é de uma qualidade psíquica, mas de uma atitude reflexiva, a atitude da volta para sisi mesmo ou da reflexão sobre si. Entende por consciência o simples estar cônscio de si: “o estar desperto, vigilante e atento ao significado dos acontecimentos presentes, passados ou futuros”. Esse estar cônscio não é, como quer o realismo, uma espécie de luz que ilumina ora uma ora outra parte de um campo dado, nem, como quer o idealismo, uma força que modifica os acontecimentos. E “aquela fase de um sistema de significados que, em dado tempo, sofre uma retificação de direção, uma transformação transitiva”. O sistema dos significados é o que Dewey chama de espírito e é uma formação social. A consciência é o ponto focal em que esse sistema entra em crise ou sofre uma transformação. “O espírito é contextual porque existente; a consciência é focai e transitiva. O espírito é, por assim dizer, estrutural e substancial, é o fundo ou o primeiro plano constante; a consciência é perceptiva, é um processo, uma série de aqui e de agora. O espírito é uma constante luminosidade; a consciência é intermitente, uma série de jorros de luz de várias intensidades” (Experience and Nature, p. 260 e ss.). A condição da consciência é a dúvida, o sentido de situação indeterminada, suspensa, que urge a determinação e a readaptação. A ideia, que constitui o objeto da consciência, que, aliás, é a própria consciência em sua clareza e vivacidade, nada mais é que a previsão e o anúncio da direção em que a mudança e a readaptação é possível; por isso, Dewey diz que num mundo que não tivesse instabilidade e incerteza, a chama vacilante da consciência se apagaria para sempre (Ibid., pp. 351 ss.). A consciência é assim reduzida à funcionalidade, isto é, ao surto de ideias e diretrizes que servem para retificar determinada situação. Desse modo, não está ligada à introspecção, à auscultação interna ou, de algum modo, a uma atitude de “retorno para si mesmo”. Mas o destino da consciência na filosofia contemporânea parece cumprir-se com a análise que Ryle fez dela, ou melhor, das expressões linguísticas em que o conceito recorre (The Concept of Mind, 1949). Segundo a tese de Ryle, nenhum dos usos que os termos “consciência” e “consciente” têm na linguagem comum autoriza a considerar a consciência como uma espécie de autoluminosidade ou fosforescência que acompanha certas operações do homem; portanto, a consciência entendida nesse sentido é um mito. Tudo o que se pode dizer é que “habitualmente sabemos aquilo de que nos estamos ocupando, sem que, porém, seja necessário recorrer à história da fosforescência para explicar como o sabemos; que esse saber não implica um ato incessante de censura ou exame do fazer e do sentir, mas só uma propensão interalia a exprimi-los, se e quando nos ocorre fazê-lo; que esse saber não requer que devamos topar com algum evento de natureza espectral” (Ibid., trad. it., p. 164), isto é, com aquela realidade “alma” que se supõe imanente ao metanismo corpóreo (v. alma). A consciência não é um acesso privilegiado ao conhecimento da alma ou ao conhecimento de si”. “De mim mesmo posso descobrir as mesmas coisas que do próximo e com métodos não dessemelhantes. As diferenças existentes no fornecimento dos dados exigidos tornam diferente o grau dos meus conhecimentos, mas nem sempre em favor do conhecimento de si. Por alguns aspectos importantes, é mais fácil verificar as mesmas coisas de ti do que de mim mesmo; por outros, ocorre o contrário. Mas isso só na prática, porque em princípio Fulano acaba sabendo tanto de si quanto de Beltrano. Com a esperança em um acesso privilegiado, vai embora também o isolacionismo teórico cognoscitivo, perdemos, ao mesmo tempo, a doçura e o amargor do solipsismo” (Ibid., trad, it., pp. 157-58). O fato principal aduzido para sustentar essa tese é que os erros são frequentes no juízo sobre os próprios estados mentais , o que seria obviamente impossível se a consciência fosse aquela relação imediata e infalível consigo mesma que se pretende ser. A conclusão é, evidentemente, a negação da consciência em favor de um “conhecimento de si” tão pouco privilegiado, direto e infalível quanto o conhecimento de; qualquer outra coisa.

*O declínio da noção de consciência na filosofia contemporânea é um dos sinais mais evidentes de uma nova colocação do problema do homem; elaborada pela filosofia alexandrina, essa noção serviu de início para expressar o orgulhoso isolamento do sábio, que, como diz Plotino, extrai tudo de si mesmo e, assim, não tem necessidade das coisas nem dos outros homens para conhecer e viver. Para o sábio da era alexandrina, as relações com o mundo são acidentais e secundárias: ele encontra a verdade e a realidade em si mesmo. O Cristianismo valeu-se do mesmo conceito para ressaltar a independência do juízo moral em relação a toda circunstância externa e sua dependência só de um princípio ou realidade que nada recebe das coisas e dos homens, porque é Deus. A filosofia moderna lançou mão do mesmo princípio a partir de Descartes, usando-o como instrumento de dúvida e de libertação. Dele extraiu também “testemunhos” de verdades primeiras, absolutas ou inderiváveis, bem como de “dados últimos” ou originários, usando-os para erigir pesados edifícios dogmáticos, cujo apoio era a fragílima base de uma noção histórica, mas assumida como estrutura real ou originária. Esse, porém, foi só o lado mais visível do uso da noção de consciência Não se deve esquecer que, a partir de Descartes, essa noção serviu para introduzir dúvidas, levantar problemas, suscitar oposições ou rebeliões a crenças ou a sistemas de crenças estabelecidos institucionalmente. O recurso à consciência serviu com muita frequência para apresentar ideais ou regras morais ainda não aceitos pela moral corrente e destinados a superá-la, para sustentar a insurreição e a luta contra a autoridade constituída, para mostrar o caráter incerto e problemático de muitas crenças e construções metafísicas. Em Descartes, serviu para pôr em discussão algumas certezas tradicionais, como p. ex. a da existência de um “mundo externo”, e para iniciar pesquisas científicas e filosóficas de grande importância. O próprio ceticismo de Hume é um dos resultados a que conduziu a noção de consciência, já que nasceu do pressuposto de que o homem não dispõe de nada além de impressões e ideias, ou seja, de objetos imediatos de consciência, e que, por mais que arremeta com o pensamento, “nunca dará um passo além de si mesmo” (Treatise, I, 2, 6). Isso posto, o declínio da noção de consciência na filosofia contemporânea deve-se às seguintes condições: 1- a formação, em vários campos de pesquisa, de técnica de verificação e controle, às quais, mais do que ao testemunho íntimo, são confiadas as instâncias negativas e limitativas da crítica; 2- consequente desconfiança de certezas que se pretendem infalíveis e diretas, mas que são pessoais e incomunicáveis e muitas vezes apresentam oposições mútuas; 3- abandono definitivo do ideal de isolamento do homem em relação ao mundo, e da crença na estrutura solitária da realidade humana; portanto, renúncia a compreender o homem em seus modos de ser e em seus comportamentos efetivos abstraindo suas relações com as coisas naturais e com os outros homens e considerando-o fechado em si mesmo pelo círculo intransponível da consciência. [Abbagagno]


O importante é caracterizar como se apresenta a consciência ante a especulação da psicologia moderna.

“O que há de mais geral numa atividade é, certamente, sua tensão para um fim… A tensão psíquica pode ser concentrada ou dispersada, mantida pelo sujeito ou abandonada por ele ao automatismo, e