Filosofia – Pensadores e Obras

afecção

gr. pathos; lat. passio, affectio; in. affection; fr. affection; al. affektion; it. affezione.

V. afeição

pathos teoria platônica, pathos 6-7, psyche 15-17; em Aristóteles, 9-10; no estoicismo, 12; irracional, violenta, não natural no estoicismo, apatheia 3; as quatro maiores afecções, epithymia; em contraste com ação, ergon 3; prazer e dor em, hedone 8; reduzida a juízos por Crisipo, noesis 17; propriedade do organismo no epicurismo, holon 9; critério epicurista da verdade, prolepsis; virtude como meio de, meson [FEPeters]


Esse termo, que às vezes é usado indiscriminadamente por afeto e paixão, pode ser distinguido destes, com base no uso predominante na tradição filosófica, pela sua maior extensão e generalidade, porquanto designa todo estado, condição ou qualidade que consiste em sofrer uma ação ou em ser influenciado ou modificado por ela. Nesse sentido, um afeto (que é uma espécie de emoção), ou uma paixão, é também uma afecção, na medida em que implica uma ação sofrida, mas também tem outras características que fazem dele uma espécie particular de afeição. Dizemos comumente que um metal é afetado pelo ácido, ou que fulano tem uma afecção pulmonar, ao passo que reservamos as palavras “afeto” e “paixão” para situações humanas, que apresentam todavia certo grau de passividade por serem estimuladas ou ocasionadas por agentes externos.

Nesse sentido generalíssimo, Aristóteles entendeu a palavra pathos, que considerou como uma das dez categorias e exemplificou com “ser cortado, ser queimado” (Cal, 2 a 3); chamou de afetivas (pathetikai) as qualidades sensíveis porque cada uma delas produz uma afecção dos sentidos (ibid., 9 b 6). Além disso, ao declarar, no princípio de De anima, o objetivo de sua investigação, Aristóteles entendeu que visava conhecer (além da natureza e da substância da alma) tudo o que acontece à alma, isto é, tanto as afecção que pareçam suas, quanto as que ela tem em comum com a alma dos animais (De an., I, 1, 402 a 9). No referido texto a palavra afecção (pathe) designa o que acontece à alma, isto é, qualquer modificação que ela sofra. O caráter passivo das afecção da alma, caráter que parecia ameaçar-lhe a autonomia racional, levou os estoicos a declarar irracionais, logo más, todas as emoções (Dióg. L., VII, 110): donde a conotação moralmente negativa que assumiu a expressão “afecção da alma”, revelada claramente em expressões como perturbatio animi, ou concitatio animi, usadas por Cícero (Tusc, IV, 6, 11-14) e por Sêneca (Ep., 116), e expressamente consideradas por S. Agostinho (De civ. Dei, IX, 4) como sinônimos de affectio e affectus (emoção). Mas S. Agostinho e, depois dele, os escolásticos mantiveram o ponto de vista aristotélico da neutralidade das afecção da alma sob o ponto de vista moral, no sentido de que elas podem ser boas ou más, segundo sejam moderadas ou não pela razão; ponto de vista que Tomás de Aquino defendeu referindo-se precisamente a Aristóteles e a S. Agostinho (S. Th., II, I, q. 24, a. 2).

A noção de modificação sofrida, isto é, de qualidade ou condição produzida por uma ação externa, mantém-se constante na tradição filosófica e exprime-se o mais das vezes com a palavra passio, que só na segunda metade do século XVIII assume o seu significado moderno (v. paixão). Assim, Alberto Magno entende por afecção “o efeito e a consequência da ação” (S. Th., I, q. 7, a 1). Tomás de Aquino, que dá idêntica definição (ibid., I, q. 97, a. 2), distingue três significados do termo: “O primeiro, que é o mais próprio, tem-se quando alguma coisa é afastada daquilo que lhe convém segundo a sua natureza ou a sua inclinação própria, como quando a água perde a sua frieza por ação do calor, ou como quando o homem adoece ou se entristece. O segundo significado, que é menos próprio. tem-se quando se perde uma coisa qualquer, seja ela ou não conveniente; e nesse sentido se pode dizer que sofre uma ação (pati) nãoquem adoece mas também quem se cura e, em geral, quem quer que seja alterado ou mudado. Num terceiro sentido, diz-se quando o que estava em potência recebe aquilo que ele era em potência sem perder nada; em tal sentido, pode-se dizer que tudo o que passa da potência ao ato sofre uma ação mesmo quando se aperfeiçoa” (ibid., I, q. 79, a. 2). Cada um desses significados, distinguidos por Tomás de Aquino e compreendidos na noção geral de afecção, pode ser encontrado no uso ulterior do termo. Passio animi era a denominação que alguns escolásticos (cf. Ockham, In Sent., I, d. II, q. 8 C) davam à species intelectiva, isto é, ao universal ou conceito. A passio em geral é definida por Campanella (Phil. ration. dialectica, I, 6) como “um ato de impotência que consiste em perder a própria entidadeessencial ou acidental, no todo ou em parte — e em receber uma entidade estranha”. Descartes deu expressão clássica a essa noção em Paixões da alma (I, 1, 1650): “Tudo o que se faz ou que acontece de novo geralmente é chamado pelos filósofos de afecção, no que se refere ao sujeito a quem acontece, e de ação, no que se refere àquilo que faz acontecer; de tal modo que, embora o agente e o paciente sejam muitas vezes bem diferentes, a ação e a afecção não deixam de ser a mesma coisa com esses dois nomes, devido ao dois sujeitos diferentes aos quais se pode referir”. Em sentido análogo, essa palavra é empregada por Spinoza para definir o que ele chama de affectus e que nós chamaríamos de emoções ou sentimentos. As emoções, enquanto passiones, isto é, afecção, constituem a impotência da alma, que as vence transformando-as em ideias claras e distintas. “A emoção, diz Spinoza (Et., V, 3), “que é uma afecção, cessa de ser uma afecção assim que dela formamos ideia clara e distinta”. Nesse caso, realmente, essa ideia se distingue só racionalmente da emoção e se refere só à mente; assim, deixa de ser uma afecção (ibid., V, 3). Por isso Deus, que é desprovido de ideias confusas, está isento de afecção (ibid., V, 17). No mesmo sentido, exprime-se Leibniz (Monad., § 49): “Atribui-se a ação à mônada na medida em que ela tem percepções distintas, e a afecção na medida em que tem percepções confusas”. No mesmo sentido exprimem-se Wolff (Ont., § 714) e Crusius (Vemunftwahrheiten, §66).

Kant exprimiu do modo mais claro possível a noção de afecção como recepção passiva, em um texto de Antropologia (§ 7): “As representações em relação às quais o espírito se comporta passivamente, por meio das quais, portanto, o sujeito sofre uma afecção [Affection] (de si mesmo ou de um objeto), pertencem à sensibilidade; aquelas, porém, que incluem o verdadeiro agir (o pensamento) pertencem ao poder cognoscitivo intelectual. Aquele é também chamado poder cognoscitivo inferior e este, poder cognoscitivo superior. Aquele tem o caráter da passividade do sentido interno das sensações, este tem o caráter da espontaneidade da apercepção, isto é, da consciência pura do agir que constitui o pensamento; e pertence à lógica (isto é, a um sistema de regras do intelecto) assim como aquele pertence à psicologia (isto é, ao complexo de todos os atos internos submetidos a leis naturais) e fundamenta a experiência interna”. Esses conceitos são fundamentais para toda a Crítica da Razão Pura, especialmente para a distinção entre estética e lógica, que repousa no seguinte princípio: “Todas as intuições, por serem sensíveis, repousam em afecção; os conceitos, ao contrário, repousam em funções” (Crít. R. Pura, Analítica dos conceitos, I, seção I). Essas observações de Kant estão em polêmica com a tese da escola leibniziano-wolffiana, segundo a qual a sensibilidade consiste nas representações indistintas e a intelectualidade, nas distintas; o que, segundo notava Kant (Antr, § 7, nota), significa que a sensibilidade consiste numa falta (falta de distinção), enquanto esta é algo de positivo e de indispensável ao conhecimento intelectual.

Em conclusão, o termo afecção, entendido como recepção passiva ou modificação sofrida, não tem necessariamente conotação emotiva, e, embora tenha sido empregado frequentemente a propósito de emoções e afetos (pelo caráter claramente passivo destes), deve considerar-se extensivo a toda determinação, inclusive cognoscitiva, que apresente caráter de passividade ou que possa de qualquer modo ser considerada uma qualidade ou alteração sofrida. [Abbagnano]


Em Spinoza, afecção não é algo simplesmente passivo; é o modo da substância, de sorte que este modo equivale a suas afecções. Esclarece ele: “Entendo por afecções, as afecções do corpo por meio das quais aumenta ou diminui, acrescenta-se ou reduz-se a potência de obrar do dito corpo, e ao mesmo tempo as ideias de suas afecções.” Veja-se José Ferrater Mora. Dicionário de Filosofia, palavra afectar.