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Heráclito Buzzi

terça-feira 29 de março de 2022, por Cardoso de Castro

  

Heráclito
Logo no início temos o grande Heráclito. O ser, diz ele, é um eterno fluir, uma evanescente fuga, um rio que corre. Não há possibilidade de fixar-lhe as águas. Tudo passa «panta rei». No momento de passar, porém, fração mínima que seja, surpreendemos em sua fugacidade uma tênue consistência. Empenhamo-nos por conservá-la. Estabelece-se então uma experiência do ser como conflitual. Tudo briga no ser. É a luta da consistência contra a não-consistência, do ser contra o não-ser. Heráclito estende essa experiência originária à totalidade das experiências e diz numa frase que perpassa a história:

«o pólemos (a competição ou guerra) é o pai de todas as coisas, rei ue tudo» (Fragm., n. 53).

Guerra não é aqui entendida no sentido técnico-militar, nem político-social. Guerra indica a estrutura do ser. O ser se desdobra numa competição sem trégua: o inconsistente ansiando pelo consistente, o ordinário pelo extraordinário, o inautêntico pelo autêntico.

A guerra técnico-militar, os conflitos pessoais, as lutas sociais são apenas modalidades epidérmicas dessa competição (polemos), onde o indivíduo, o grupo ou a nação buscam defender um arranjo imediato de ser ameaçado do exterior.

Heráclito achava que nenhuma coisa pode evadir-se dessa eterna luta. Jamais chegaremos a alcançar a perene consistência, a autenticidade do ser. A vida é a morte e a morte é a vida. A vida é sucessão de momentos irrecuperáveis. Não estamos na competência de sustá-los. Deslizam, morrem. Um tal viver é um lento morrer. Um tal morrer é um fugaz viver. A afirmação existencial de uma determinada Modos de Ser - modalidade de ser, por exemplo, o ser afirmado por uma pessoa, por um grupo, por uma organização social, por um reino, por um império, por uma civilização e cultura, traz em si o germe da própria morte.

Heráclito não para nessa afirmação conflitual, competitiva do ser. Seu pensamento inquire para mais além desse fluir, desse modo ou aspecto de o ser aparecer. O ser aparece no enredo dos contrários, mas ele mesmo é anterior aos contrários, embora só se dê, só seja engendrado na disputa.

O anterior que deixa aparecer todo ser, o anterior que expõe e dispõe tudo quanto é no tema de uma unidade superior, Heráclito denomina de Logos.

«Se não me tendes ouvido a mim, mas o Logos, então é sábio dizer-se, portanto: um é tudo» (Fragm., n. 51).

Os entes estão no fluir, na fluência do Logos. Tudo flui:

«Para dentro dos mesmos rios descemos e não descemos; somos e não somos» (Fragm., n. 49).

A fluência da realidade é envio e revelação do Logos. O ser está na competição de fluir como que na ânsia de proclamar o Logos. Ver e ouvir no fluir o Logos oculto e velado é próprio do pensamento que pensa. Pensar é ler, recolher a harmonia do Logos disseminada na pluralidade do que se manifesta.

A pluralidade de entes que manifestam o Logos não está parada: brota, surge, se impõe à manifestação, aparece. Brotar, surgir em grego é phyein, donde vem physis (natureza). A natureza é pois o vigor velado que faz surgir os entes. Os entes estão como que recolhidos, agasalhados na força instauradora da physis. Ela, porém, a natureza, que é o Logos instaurador de tudo que é, permanece no seu fundamento último velada. Donde Heráclito dizer: «physis kryptesthai filei» (a natureza ama se esconder, se preservar, se guardar). Ela se dá, se aliena, sem se perder. É permanente eclosão sem declínio.

Hoelderlin evoca em versos o ocultar-se heraclítico no revelar-se da natureza:

Ein Raetsel ist Reinentsprungenes. Auch Der Gesang kaum darf es enthuellen... (Enigma é aquilo que, puro, brotou. Dificilmente é lícito, mesmo à poesia, revelá-lo).

O Logos mantém, evita que se rompa a unidade do ser. Para Heráclito a realidade permanece una, mas enredada na disputa, no movimento de velar-se e desvelar-se, de ser sem jamais poder ser, de competir sem nunca alcançar a competência de ser.

O ser como «unidade de contrários» perpassa a história do pensamento ocidental e se impôs ao pensar moderno por obra sobretudo de Hegel.

«Em Heráclito encontramos pela primeira vez a ideia filosófica na sua forma especulativa... Aqui vemos finalmente terra: não há proposição de Heráclito que eu não tenha acolhido em minha lógica» (Geschichte der Philosofia, ed. Glockner, I, p. 343).

Mais tarde, ao longo da História da Filosofia, tema-tizou-se o difícil e obscuro pensamento de Heráclito nas distinções de ser e vir-a-ser, de ser e Logos, de ser como síntese de opostos. Tudo isso foi desenvolvido atenden-do-se mais às distinções que ao Logos que compele originariamente à unidade. Em Heráclito as distinções se pertencem entre si. São instauradas pelo Logos e no processo competitivo da realidade proclamam sua força mantenedora de união. Por exemplo, crescer é viver as mais diferentes e opostas distinções sem nelas se perder, integrando-as em harmonia superior. A sabedoria não é um saber discorrer sobre as diferentes distinções do viver, mas o ver a unidade que percorre todos os diferentes. Cada palavra é diferente. Mas vivem todas de um mesmo idêntico: a linguagem. A cada passo na vida topamos com diferentes. Mas tudo é um.

As distinções heraclíticas foram vistas como existindo separadas. Daí nos veio a metafísica como ciência do ser, a lógica como ciência das regras do pensar, a dialética como ciência da síntese dos opostos.

Tome-se como exemplo a tese do caráter conflitual do ser. Na Idade Moderna a tese heraclítica foi reduzida ao aparecer político-social. Tornou-se ideologia, esqueceu a filosofia. A ideologia da dialética está em reduzir a concepção conflitual do ser à praxis social em todas as suas manifestações, buscando diluir o conflito em síntese ou harmonia de unidade superior. Esse processo de superação dos opostos conflitantes do ser para uma síntese político-social superior é chamado de Dialética.

Nesse sentido, o ser como Dialética é hoje bastante desacreditado porque foi usado como uma espécie de forma mágica, de panaceia, de vara de condão para justificar tudo o que aconteceu no passado e o que se espera venha a acontecer no futuro. Em Heráclito não encontramos este processo de superação. Ele afirma o conflito, a luta do que se é e do que ainda não se é como tensão permanente do ser em todos os níveis ou aspectos de seu aparecimento.

«Tudo se faz por contraste; da luta dos contrários nasce a mais bela harmonia» (Fragm., n. 8).

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