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Fernandes (2005:291-293) – O "dever-ser" é o que não é

quinta-feira 13 de julho de 2017

  

O que nos resta é apenas investigar, do ponto de vista (cego) da Mente, do Pensamento e da Linguagem, ou seja, cavalgando o Instrumento, a própria noção de "valor", suas espécies, as relações entre elas, etc. O que teriam os valores, por exemplo, a ver com a razão e o intelecto? A venerável tradição chamada "tradição intelectualista", que foi inaugurada no Ocidente por Sócrates  , mas no Oriente o foi certamente com o Vedanta, e à qual voltaremos na próxima Seção, relaciona o Bem com a Verdade (além da Beleza) e a Ignorância com o Mal. Nesse caso, poderíamos procurar por uma relação entre o "desvelamento do Ser" (alethea) à "visão", "intuição", "contemplação imediata" (theorein, para evitar episteme, ou "conhecimento verdadeiro") e... a "racionalidade da vontade". Contudo, essa relação teria como consequência mais importante a distinção entre "liberdade", que nada tem a ver, seja com escolha, seja com "Ética", mas sim com espontaneidade criadora, e "livre-arbítrio", que tem a ver com a ignorância e o regime de carência, indispensáveis ao vicejar de "valores", seus juízos... e seus juízes. Além disso, para estabelecer essa relação (entre Verdade e Vontade) como mediada, ou "medida" pela "razão", teríamos que tomar o logos, não no sentido moderno e contemporâneo de "Razão" (Kant   fracassou!), mas em suas associações mais antigas, originais, sublimes e... estéticas(!), com harmonia, proporcionalidade, perfeição, etc. Pois já nos demos conta, se o leitor concordou comigo, do caráter, ou do destino, sejam filosóficos ou extrafilosóficos, das ideias de "razão", "racionalidade", etc. Das sublimes origens antigas nada sobrou, ou pior, sobraram as acepções de pressupostos, premissas, ou "racionalizações", cada um correspondendo exatamente ao que editaria ex post factum um cérebro amedrontado e acuado pela necessidade de justificar-se, em juízo, perante juízes, sejam os juízos e juízes lógicos, epistemológicos, éticos ou estéticos, todos a exigir-lhe o impossível: "responsabilidade", "coerência", etc.; e de maximização ou minimização utilitária de parâmetros, processos adaptativos prudenciais, também usados para lidar com o medo, que é uma das principais consequências de todo e qualquer desejo. Tendo as "razões" tal caráter (ou destino), não há porque exaltar "o valioso", "o estimável", "o que é digno de ser honrado", para além do âmbito estritamente inconsciente da Mente, do Pensamento e da Linguagem, ou seja, de um Instrumento não compreendido, estranho às Experiências em si mesmas, que somos. Para completar o quadro, sendo o sofrimento, por definição, a alternância, percebida pelo Instrumento, entre prazer e dor, pode-se ver claramente, suponho, a verdadeira natureza do "valor": o "valor" é o que está em falta, ou aquilo de que alguma coisa carece. Faltariam, por exemplo, Verdade, Bondade e Beleza ao Mundo projetado pelo Instrumento e não compreendido pela Experiência. Fazendo a ponte entre Ocidente e Oriente, sendo a ideia de "falta" incompatível com a ideia do autêntico Vazio (Não confunda Vazio com Não-Ser!), que compõe, com a autêntica Forma, a verdadeira natureza do Ser enquanto Ser, não há tampouco porque exaltar o "valor" para além do Não-Ser. Prima facie, não afirmei nada de mais: o que "deve ser" não "é"; e nem poderia ser, porque, se "fosse" alguma coisa, não "seria" o que "deveria ser", já sendo o que "é". (O "dever-ser" é o que não é, e não é o que é. Filosofia da Consciência, 25) O "ser" daquilo que não é, mas só "deve ser", não pode consistir em coisa alguma, exceto na existência de wishful thinking. Ainda assim, à parte as maquinações dos "pensamentos de abandono", é extremamente difícil, senão impossível ver por que, não só o Ser, mas também algum ente, "deva" ser o que ele não é [sic] e, por cúmulo, por que "isso" que lhe faltaria ser (ao Ser não falta nada!) seria chamado de "valioso", "verdadeiro", "bom", "belo" ou "sagrado". Se admitirmos que, ontologicamente, valores não "são", mas (?!)... "valem" [sic], já admitimos que esse "valer", seja qual for seu estatuto, e se o tiver, não tem Ser algum. Pois não faria sentido pensar que o Ser de algum ser é o seu não-ser. Volta o leitmotiv: o ser de alguma coisa não pode consistir na sua existência. Se houvesse "essências reais", a "essência" do "valor" seria Não-Ser, duplo contra-senso! Mas nem mesmo esse "Não-Ser" poderia ser o "ser" do "valor", e menos ainda sua "propriedade intrínseca", pois não há propriedades "intrínsecas" - a ideia é outro contra-senso, ainda seria preciso argumentar, depois de todo o primeiro Capítulo? Além disso, "conseguir", ou "atingir" um fim, é uma ideia do Instrumento, e uma ideia feita por ele, expressamente para não poder ser por ele mesmo "realizada", pois sua realização estragaria a eficácia do efeito de contraste, o efeito da "armadilha axiológica" por ele mesmo montada.

(FERNANDES, Sérgio L. de C.. Ser Humano. Um ensaio em antropologia filosófica. Rio de Janeiro: Editora Mukharajj, 2005, p. 291-293)

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