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Fernandes (SH:302) – lugar da Ética

sexta-feira 28 de agosto de 2020

  

Mas... sugerir que talvez o lugar da Ética seja o Inferno!? E, no entanto, afirmo que, se o Inferno for o seu lugar, então lá ela sempre esteve, o mal-intencionado título da Seção não se referindo a algo que “teria acontecido” à Ética, mas sim a um predicamento seu, inerente e inescapável. Contudo, seguindo meu estilo, que é o de pintar quadros escritos sem procurar esconder as pinceladas, para mim, agora é como se tudo mudasse de repente, como num passe de mágica. Confesso-me de repente temeroso de dizer o que penso, com todas as letras que aquilo que penso merece e, ao mesmo tempo, ansioso de expô-lo à luz do Espírito. Pois, mesmo depois da não apenas insidiosa, mas verdadeiramente devastadora crítica dos “Mestres da Suspeita” — Darwin, Nietzsche  , Marx   e Freud   —, a Ética continua a parecer a muitos — e, como são... muitos, é sufocante! —, em todos os campos, teóricos e práticos, da chamada “Sociedade Humana”, demasiadamente importante. Às vezes tenho a impressão de que só se fala nisso! Seria o medo? Os melhores analistas das relações entre o medo, essa emoção básica do Instrumento encarnado, e inerente a todo desejo e todo apego, e a civilização, cultura, etc., apostam que o “medo fundamental” não seria o da morte, já que é impossível tomar como objeto a própria morte, muito menos acolhê-la à Experiência que somos, mas o [302] medo de não ser, o medo de não ser coisa alguma. Seria o medo de não ser que levaria a maioria das encarnações do Instrumento a frenéticos, constantes e inconscientes “investimentos” reativos em produtividade, aquisição, consumo, ânsia de sobrevivência, etc.? Às vezes os que não param de falar de Ética me parecem estar é querendo proteger coisas bem mais rasteiras, como seus “direitos”, seu conforto, sua propriedade privada, coisas desse tipo! Coisas... muito boas, diria o Instrumento, que leu, mas jamais entendeu, o Fausto goetheano. Seria uma tábua de salvação num mar revolto de “tentações” de não ser, mas só de “existir”, uma tábua de salvação daquilo a que eles se apegam — e se apegam a tudo, da propriedade à qualidade de vida, do “corpo” e suas paixões à salvação da própria “alma”? O apego é geralmente tido como uma característica muito... humana, não? Seja como for, é para mim impressionante — e chocante — como hoje em dia quase todo mundo pensa que a Ética é algo importantíssimo, a “única saída”, a “única esperança” de tudo que aflige a “humanidade”. Mesmo os religiosos costumam pôr a Ética quase que acima de tudo, às vezes acima de Deus. Mas não é de hoje: desde a Antiguidade, no Oriente era preciso ser “moral”; como condição sine qua non para ter o direito de ser instruído em yoga; no Ocidente, a preocupação, em última análise meramente prudencial, com a racionalização do ethos, com a maximização utilitária de recompensas e minimização de punições marca nossa cultura — até mesmo a figura simbólica do “herói” —, como que desde “o início dos tempos”. Será que somente poucos, psicopatas certamente (!) [sic], portadores da Síndrome de Cegueira de Valores, desconfiariam de que a racionalização do ethos (caráter, habitat, costumes), ainda que fantasiada de “contemplação”, theorein, batismo da Inteligência, etc., ainda assim é uma... racionalização?

[FERNANDES, Sérgio L. de C.. Ser Humano. Um ensaio em antropologia filosófica. Rio de Janeiro: Editora Mukharajj, 2005, 302-303]


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