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Eudoro de Sousa (HC:95-98) – Poema de Parmênides - Fragmento 8

sexta-feira 7 de outubro de 2022, por Cardoso de Castro

  

53. A charneira da «Via da Verdade» e da «Opinião dos Mortais» encontra-se nos últimos versos do frg. 8. Aqui, mais do que em qualquer outra passagem, exuberantemente se confirma a verdade do que afirmávamos acima (§ 50): qualquer tradução pressupõe resolvido um problema, cuja solução, naturalmente, o tradutor-intérprete procura no momento de abeirar-se do texto original. Mas, na verdade, o que acontece, nesta passagem, é que ele já formulou mentalmente a sua hipótese acerca da relação que supõe existir entre a «Via da Verdade» e a «Opinião dos Mortais». Vamos exemplificar: seguem-se A) uma versão portuguesa (Cavalcante de Souza), B) uma versão francesa (Battistini), C) uma versão inglesa (Kirk-Raven) e D) uma versão alemã (Diels-Kranz) dos vv. 50-61 do frg. 8:

A

«Neste ponto encerro fidedigna palavra e pensamento / sobre a verdade; a opinião de mortais a partir daqui / aprende, a ordem enganadora de minhas palavras ouvindo. / Pois duas formas estatuíram que suas sentenças nomeassem, / das quais uma não se deve — no que estão errantes —; / em contrários separaram o compacto e sinais puseram / à parte um do outro, de um lado, etéreo fogo de chama, / suave e muito leve, em tudo o mesmo que ele próprio, / mas não o mesmo que o outro; e aquilo em si mesmo (puseram) / em contrário, noite sem brilho, compacto denso e pesado. / A ordem do mundo, verosímil em todos os pontos, eu te revelo, / para que nunca sentença de mortais te ultrapasse.»

B

«J’arrête ici pour toi discours sans tromperie, pensée cernant la vérité. / Les semblances auxquelles la vue des mortels fait accueil, apprends-les maintenant, / écoutant de mes vers l’ordre fallacieux. / Ils se sont résolus à nommer deux figures dont aucune doit se nommer seule — en quoi ils se sont fourvoyés. / Les opposant, ils scindèrent leur structure, leur assignèrent des marques / par quoi les séparer. Ici le feu éthéré de la flamme, / favorable, subtil, léger, à lui-même partout semblable, / à l’autre non semblable. A l’opposé, l’autre figure, à part / antagoniste, la nuit sans flambleau, structure épaisse et lourde. / Cette disposition du monde selon les lois qui lui conviennent, / à toi, toute, je la veux révéler, / pour que jamais sentence des mortels ne te dépasse.»

C

«Here I end my trustworthy discourse and thought concerning truth; henceforth learn the beliefs of mortal men listening to the deceitful ordering of my words. For they made on their minds to name two forms, of which they must not name one only — that is where they have gone astray — and distinguished them as opposite in appearance and assigned to them manifestations different one from the other — to one the aitherial flame of fire, gentle and very light, in every direction identical with itself, but not with the other; and that other too is itself just the opposite, dark night, dense in appearance and heavy. The whole ordering of these I tell thee as it seems likely, that so no thought of mortal men shall ever outstrip thee.»

D

«Damit beschliesse ich für dich mein verlässliches Reden und Denken über die Wahrheit. Aber von hier ab lerne die menschlichen Schein-Meinung kennen, indem du meiner Worte trügliche Ordnung hörst. Sie haben nämlich ihre Ansichten dahin festgelegt, zwei Formen zu benennen (von denen man freilich eine nicht ansetzen sollte, in diesem Punkte sind sie in die Irre gegangen); und sie schieden die Gestalt gegensätzlich und sonderten ihre Merkzeichen voneinander ab: hier das ätherische Flamenfeuer, das milde, gar leichte, und sich selber überall identisch, mit dem anderen nicht identisch; aber auch jenes für sich, gerade entgegengesetzt: die lichtlose Nacht, ein dichtes und schweres Gebild. Diese Welteinrichtung teile ich dir als wahrscheinlich-einleuchtende in allen Stücken mit; so ist es unmöglich, dass dir irgendeine Ansicht der Sterblichen jemals den Rang ablaufe.»

54. Com excepção das linhas grifadas (em itálico), que correspondem aos vv. 53-54, as quatro versões concordam tanto quanto possível, atendendo à estrutura própria de cada idioma e ao gosto literário dos tradutores. Também é certo que aí o original grego explicita o próprio sentido, sem ambiguidades. Mas, chegando aos versos assinalados, o leitor desprevenido hesitaria, se lhe exigissem uma resposta precisa a esta pergunta: em que erraram os mortais? Qual foi o erro? Convirem eles em dar nome às duas formas, o que equivale a estatuírem a existência de dois princípios, como condição necessária, conforme o entendemos (§ 52), para que o ser de algum modo aparecesse no mundo? Ou que, após estatuírem a existência de dois princípios, elegessem só um deles, como único princípio? A), B) e C) parecem dizer que o erro dos mortais residiria na exclusão de uma das formas; mas D) afirma decididamente o contrário, o que parece implicar, contra tudo o que a «Doxa» evidentemente ensina, que, das duas formas, Luz e Noite, a Luz representa o Ser e, por conseguinte, a Noite, o Não-Ser. E ainda haveria a possibilidade — que não emerge claramente de nenhuma das quatro versões — de que a errância dos mortais se desdobra, primeiro, no haver convencionado nomear duas formas, e, depois, em não se aperceberem de que a existência de uma implica a da outra, e que ambas são necessárias para explicar o mundo, segundo a relativa verdade, ou a verosimilhança, da sua aparência. As versões A), B) e C) alinham no sentido da interpretação de Verdenius (1942), das palavras tôn mían ou khréon estin do v. 54, quer delas se tirem ou não as ilações de Hölscher (pp. 103 e 129) — tôn («das quais», isto é, «das duas formas»), mían («uma só»), ou khréon estin («não é necessário» ou «é necessário que não seja», ou ainda «não é permitido que seja»), completando-se o pensamento por acréscimo de «nomear» ou «nomeada»; e o membro da frase traduzir-se-ia, o mais exatamente possível, deste modo: «(os mortais convieram em nomear duas formas) das quais, não é permitido nomear uma só». E agora pergunta-se: a que ou a quem se destina esta advertência da deusa-reveladora? Em primeiro lugar, talvez, a prevenir o logro em que caiu o autor da versão D), embora ele seja da estatura de um Diels (e a versão vem confirmada por Kranz, depois que este assumiu a responsabilidade pelas sucessivas edições dos Fragmente der Vorsokratiker  ) — além de, como dissemos acima, a hipótese que presidiu a essa tradução seja a de que o Ser se representa pela Luz, neste lugar também se atribuía claramente ao Eleata o intuito de se aproximar do monismo dos «naturalistas» de Mileto. Com efeito, se o erro dos mortais consistiu em não excluir um dos dois princípios, a inevitável consequência é que Parmênides pretenderia a existência de um mundo sensível, provindo de um só princípio. Mas ainda não ficam por aqui as perplexidades diante daquelas palavras do v. 54. Schwabl (1953) propôs outra hipótese: tôn não é um genitivo partitivo, mas sim, um genitivo colectivo, e, no caso, a tradução mais correta seria: «Pois os mortais convieram em nomear duas formas, das quais, uma (isto é, uma única forma, compreendendo justamente aquelas duas) não é necessária — e nisto andaram errados». A forma unitária aponta inequivocamente para o Ser da «Via da Verdade» as duas contrárias têm o seu lugar na «Opinião dos Mortais», onde nunca, repare-se bem, se fala do Ser, assim como na «Via da Verdade» não se encontra palavra que se refira à Luz e à Noite. Conclusão óbvia é que o erro dos homens consiste em não levaram em conta o Ser, como unidade dos contrários, representados pelas duas potências cosmogônicas. Estaria Parmênides assim tão próximo de Heráclito? Por ora, a pergunta fica apenas enunciada. Na sequência, mais interessa acentuar que a última hipótese referida, mais do que qualquer outra, contribui para relevar a unidade interna de composição, sem prejuízo do intuito parmenídeo de separar a «Doxa» da «Verdade»: «em nossa opinião», escreve Schwabl, «Parmênides opõe-se a aceitar as duas formas, só quanto à sua absolutização»; «o que é criticado (na ’Doxa’) não é a própria separação, mas só o apresentá-la como absoluta» (op. cit., pp. 53 e segs.).


Ver online : Parmênides