(lat. historiographia; in. History; fr. Histoire; al. Geschichte, às vezes Historie; it. Storiografià).
O termo historiographus aparece em Cornélio Agripa (De incertitude et vanitate scientiarum, 1527, Cap. V, em Opera, II, p. 2,27) e o termo historiographie é encontrado num idílio em prosa do poeta inglês Nicholas Breton (Wits Trenchmour, 1597). Foi adotado por T. Campanella para indicar “a arte de escrever corretamente a história” (Philosophiae Rationalis partes quinque, videlicet Grammatica, Dialectica, Rethorica, Poetica, Historiographia, iuxta própria principia, 1638, p. 243). Permaneceu com esse significado em inglês e em francês (o alemão usa Historik), ao passo que em italiano passou a significar, na esteira de Croce, o conhecimento histórico em geral ou o conjunto das ciências históricas. Dada a ambiguidade do termo história, é oportuno dispor de um termo adequado para indicar o conhecimento histórico, na sua distinção da realidade histórica.
As interpretações dadas sobre esse conhecimento são fundamentalmente duas, que podem ser qualificadas como A) historiografia universal; B) historiografia pluralista. A interpretação do conhecimento histórico como história universal corresponde à interpretação da realidade histórica como mundo. A interpretação dela como história pluralista corresponde à interpretação da realidade histórica como objeto definível ou verificável só através dos instrumentos de pesquisa de que se dispõe.
A) A história universal, ou melhor, cósmica (al. Weltgeschichte), é o conhecimento do plano providencial do mundo histórico (cf. Hegel, Phil. der Geschichte, ed. Lasson, p. 52). Tem duas características fundamentais:
1)É tarefa do filósofo, e não do historiador, e a obra do historiador pode servir-lhe apenas como auxílio não indispensável. Fichte, que a chama “história apriori”, afirma: “Compreender com clara inteligência o universal, o absoluto, o eterno e o imutável que guia a espécie humana é tarefa do filósofo. Fixar de fato a esfera sempre cambiante e mutável dos fenômenos através dos quais marcha em passo firme a espécie humana, é tarefa do historiador, cujas descobertas são só casualmente recordadas pelo filósofo” (Grundzüge des gegenwärtigen Zeitalters, 1806, IX; trad. it., Cantoni, p. 67). Hegel, em polêmica com os grandes historiadores do seu tempo, degradados a “filólogos” (v. filologia), afirmava: “Para conhecer o substancial, é preciso ter acesso a ele por meio da razão… A filosofia, na certeza de que o que impera é a razão, ficará convencida de que o ocorrido encontrará lugar no conceito e não alterará a verdade, como hoje é moda particularmente entre os filólogos que, usando aquilo que chamam de acuidade, introduzem na história elementos francamente apriorísticos” (Op. cit., p. 8). Era isso que tinham em mente Croce, ao identificar filosofia e história (Teoria estória della storiografia, 1917, pp. 71 ss.), e Gentile, ao identificar história e história da filosofia (Teoria generale dello spirito, 1920, XIII, 14).
2) É independente das limitações do material historiográfico e dos instrumentos de pesquisa, podendo, pois, prescindir de qualquer história que tenha sido ou que possa ser escrita. Fichte considerava a história a priori completamente independente da história a posteriori, que é do historiador (Op. cit). Hegel afirmava que, para reconhecer a realidade substancial da história, é preciso “trazer consigo a consciência da razão: não olhos físicos, não um intelecto finito, mas o olho do conceito, da razão”, e portanto confiar no modo de proceder rigorosamente apriorístico” (Phil. der Geschichte, I, p. 8). Croce falava de uma “anamnese” do Espírito Universal que teceu a história e para o qual as fontes da história servem apenas como motivos de recordação (Teoria e storia della storiografia, p. 16). O próprio Heidegger compartilha desta concepção da história cósmica; adverte que “história cósmica” significa em primeiro lugar “o historicizar-se do mundo na sua essencial unidade existencial com o ser-aí”; em segundo lugar, “o historicizar-se intra-mundano dos instrumentos e das coisas”; em ambos os sentidos, a história cósmica é independente do conhecimento historiográfico (Sein und Zeit, § 75), de tal sorte que é a escolha implícita na historicidade do ser-aí que determina a escolha historiográfica (Ibid., § 76).
B) A historiografia pluralista caracteriza-se, em primeiro lugar, pelo abandono de conceitos como “mundo histórico” ou “história universal” e pelo reconhecimento da pluralidade das formas do conhecimento histórico e da sua dependência em relação ao material documentário disponível e aos princípios que orientam a escolha historiográfica. Deste ponto de vista, o conhecimento histórico autêntico versa sempre sobre objetos delimitados ou delimitáveis, nunca sobre a totalidade da história; e nunca é juízo sobre essa totalidade, de sorte que exclui, como desprovidos de sentido, os conceitos de progresso, decadência, etc, entendidos em sentido absoluto. Embora a antiguidade grega nos tenha legado exemplos excelentes de historiografia nesse sentido (p. ex., a obra de Tucídides e de Políbio), os fundamentos do que hoje se chama metodologia historiográfica começaram a aclarar-se só a partir do Renascimento e a ser definidos por historiadores e filósofos só nos últimos anos. Tais fundamentos podem ser resumidos do seguinte modo:
1) O conhecimento histórico é perspectivista, mantém afastamento em relação ao passado e quer entendê-lo no seu tempo e lugar, sem assimilá-lo ou reduzi-lo ao presente. O reconhecimento da alteridade entre a experiência histórica e a realidade histórica, entre o sujeito histórico e o objeto histórico, ou entre o presente e o passado, é uma das condições fundamentais da pesquisa histórica. Constitui a contribuição do Humanismo para a metodologia histórica. Pois, enquanto a Idade Média ignorava a perspectiva histórica, transformando os fatos e os acontecimentos mais heterogêneos e distantes em fatos e acontecimentos contemporâneos, o Humanismo procurou entender o passado como passado, a antiguidade como antiguidade, o outro como outro (cf. E. Garin, Medioevo e Rinascimento, 1954, II, 5). A exigência de “reviver” o passado, de fazê-lo “voltar”, seria falsificadora da história, se tomada ao pé da letra (cf. historiografia I. Marrou, De la connaissance historique, 1954, pp. 43 ss.), assim como seria falsificadora da história, se tomada ao pé da letra, a exigência apresentada por Croce (Teoria e storia della storiografia, pp. 3 ss.; La storia comepensiero e come azione, 1938, p. 5), de que toda história seja entendida como “história contemporânea”. Um corolário da exigência da perspectiva histórica é o afastamento em relação ao passado, que Nietzsche atribuía à história crítica (ao lado da história arqueológica, que “conserva e venera”, e da história monumental, que exalta e encoraja, Unzeitgemässe Betrachtungen, 1873, II), afastamento que Nietzsche entendia como abandono do passado e encaminhamento do presente para novos caminhos, e que certamente é um dos ensinamentos da historiografia. Mas há também um afastamento em relação ao presente, inerente à atitude historiográfica preconizada sobretudo pelo Iluminismo, e expressa por P. Bayle em palavras que ficaram famosas: “O historiador deve esquecer que pertence a certo país, que foi criado em certa comunidade, que seu destino se deve a isto ou àquilo e que fulano e sicrano são seus parentes ou seus amigos. Um historiador, enquanto tal, assim como Melquisedeque, não tem pai, mãe, nem genealogia” (Dictionnaire, art. Usson, rem. F.). O ideal proposto por Bayle é difícil, para não dizer impossível, porque, como os historiadores hoje reconhecem (cf., p. ex., Marrou, op. cit., cap. II), a interferência ativa dos interesses e das tendências do historiador sempre condiciona, em certa medida, os resultados da sua investigação e mesmo a descoberta dos fatos. Entretanto, a técnica da investigação historiográfica não tende mais a descarnar ou desumanizar o historiador, como queria Bayle, mas a limitar e a disciplinar a interferência dos seus interesses na pesquisa.
2) O conhecimento histórico é individualizante, porque individualizantes são os instrumentos de que se vale. A individualidade ou unicidade (não-repetibilidade), amiúde atribuída aos fatos históricos, na verdade é reflexo dos instrumentos que os examinam (v. História). Em primeiro lugar, todo acontecimento histórico é individualizado pelos dois parâmetros fundamentais: cronologia e geografia. Em segundo lugar, a documentação da historiografia tem caráter individualizante. Um documento, uma moeda, uma inscrição sempre se referem a um único fato; o mesmo ocorre com o relato. Em terceiro lugar, têm caráter individualizante os critérios de escolha historiográfica, porque tendem a pôr em evidência um fato entre outros, a ressaltar seu significado ou sua importância, portanto o seu caráter de algum modo “singular” ou “único”. A unicidade do fato histórico às vezes foi criticada como caráter supostamente metafísico da realidade histórica (cf. os textos citados no verbete História, 4, 1), mas não poderá suscitar objeções, se for entendida como resultado do caráter individualizante dos instrumentos historiográficos. Pode-se dizer que o grau de individualidade do fato histórico deriva do grau de êxito que a investigação historiográfica logra obter. Um fato se mostra não-repetível quando a investigação historiográfica consegue reconstruí-lo em sua individualidade completa, mas essa individualidade é ideal historiográfico, mais que fato.
3) O conhecimento histórico é seletivo. Este é um dos pontos pacíficos na metodologia historiográfica (R. Aron, Introduction à la philosophie de l’histoire, 1948; ed. 1952, pp. 131 ss.; P. Gardiner, The Nature of Historical Explanation, 1952, pp. 104 ss.; M. Bloch, Apologie
pour l’histoire, 1952, p. 2; H. I. Marrou, De la connaissance historique, 1954, pp. 209 ss.; W. Dray, Laws and Explanation in History, 1957, pp. 98 ss.; J. H. Randall, Nature and Historical Experience, 1958, pp. 25, 45, etc). O caráter seletivo da historiografia também é reconhecido por K. Popper, The Poverty of Historicism, 1944, § 31, e pelo marxista L. Goldmann, Sciences humaines et philosophie, 1952, p. 4. J. historiografia Randall ilustrou deste modo a função seletiva da historiografia: “O historiador deve fazer uma escolha. Na infinita variedade de relações revelada pelos acontecimentos passados, deve escolher o que é importante ou fundamental para a sua história. Para que a seleção não seja apenas aquilo que parece importante para ele, para não ser subjetiva e arbitrária, deve ter um foco objetivo em alguma coisa que deve ser feita, em alguma coisa que ele considere obrigatória ou imposta aos homens, em algum Aufgabe ou faciendum, em algum trabalho que deve ser feito” (op. cit., p. 60). A possibilidade da escolha não implica a possibilidade de que o passado mude. “Não que o passado em sisi mesmo possa mudar; o que pode mudar é a seleção que o presente faz do passado. O que é significante e relevante no passado de cada coisa muda à medida que a própria coisa muda e se desenvolve” (op. cit, p. 36). A escolha historiográfica é feita, em primeiro lugar, em relação aos fatos, mas também, e simultaneamente, em relação às hipóteses que estão incorporadas na própria verificação dos fatos. A escolha de uma hipótese não é necessariamente sugerida ao historiador por suas próprias simpatias ou tendências; às vezes, como ocorre no caso de Tucídides, a hipótese que ele apresenta e acha comprovada pelos fatos é contrária a todos os seus desejos. O pluralismo das escolhas, isto é, a possibilidade de efetuar opções historiográficas diferentes e de mudar e corrigir as já efetuadas, é uma das condições do conhecimento histórico. Por vezes, os filósofos tentaram limitar, por princípio, a pluralidade das escolhas, ou seja, estabelecer um princípio que orientasse unilateralmente, em cada caso, a seleção historiográfica. Foi o que fez Hegel, ao afirmar que a história é “história do espírito”, obrigando assim a escolha do historiógrafo a deter-se nas ideias e a declarar historicamente inexistente todo o resto. Foi o que fez também o materialismo histórico , ao afirmar que a história é, em primeiro lugar, história das “relações de produção de trabalho”, e que todo o resto é “superestrutura”, que não determina, mas decorre. Não há dúvida de que essas tentativas de limitação da escolha historiográfica, especialmente a marxista, chamaram a atenção para fatos que podiam ser ou que eram negligenciados, aguçando, por assim dizer, o olhar do historiador para caminhos menos trilhados. Em última análise, porém, e se assumidos como princípios absolutos para a limitação das escolhas, negariam a pluralidade das escolhas, impediriam a sua retificação, e acabariam por falsear a história, ocultando esferas de fatos que não são os privilegiados por essa tendência.
4) O conhecimento histórico não visa à explicação causal, mas à explicação condicional. Embora não falte quem ainda insista no caráter causal da explicação histórica (cf., p. ex. Hempel, em Readings in Philosophical Analysis, ed. Feigl. e Sellars, 1949, pp. 459 ss.; Gardiner, op cit., pp. 65 ss.), tende a prevalecer entre os metodizadores da história a opinião de que as noções de causa e de lei têm pouca possibilidade de aplicação no domínio historiográfico (como também, aliás, no domínio da física). Nesse sentido, a obra citada de W. Dray é particularmente significativa (v. o verbete explicação). A preferência pela explicação condicional reduz a importância da oposição entre explicação e compreensão, que por certo tempo pareceu expressar a oposição entre ciências da natureza e ciências do espírito. De fato, tanto a explicação quanto a compreensão consistem na determinação da possibilidade do objeto.
5) O conhecimento histórico visa à determinação de possibilidades retrospectivas. Esta é uma consequência da renúncia da historiografia ao esquema causal (que supõe a necessidade do objeto histórico) e do seu recurso ao esquema condicional. Este esquema consiste na determinação de possibilidades, ou melhor, de probabilidades retrospectivas. Essa característica já foi atribuída ao conhecimento histórico por Max Weber: “A consideração do significado causal de um fato histórico começará com a seguinte pergunta: excluindo os acontecimentos do conjunto de fatores considerados condicionantes, ou mudando-os para determinado sentido, e tomando como base regras gerais da experiência, seu curso teria podido tomar direção de algum modo diferente, nos aspectos decisivos para o nosso interesse?” (Kritische Studien auf dem Geliet der kulturwissenschaftlichen Logik, 1906; trad. it. em Il método delle scienze storico-sociali, p. 223). Por certo, qualquer historiador julgaria sem sentido a tentativa feita por Renouvier, em Uchronie, de imaginar “o desenvolvimento da civilização europeia tal com poderia ter sido, mas não foi”. Contudo, como diz R. Aron: “Todo historiador, para explicar o que foi, pergunta-se o que poderia ter sido. A teoria limita-se dar forma lógica a essa prática espontânea do homem comum” (op. cit., p. 164; cf. Marrou, op. cit., p. 181). Por mais que os historiadores e os metodizadores da história continuem a falar de “causa”, o sentido que dão a essa palavra nada tem que ver com seu significado tradicional: por isso, seria interessante que, à mudança conceitual já ocorrida, se seguisse a mudança terminológica (Cf. uma bibliografia selecionada sobre a metodologia historiográfica em Theory and Practice in Historical Study: a Report of the Committee on Historiography, 1942, e cf. sobre os autores tratados neste verbete: P. Rossi, Storia estoricismo nella filosofia contemporânea, 1960). [Abbagnano]