Filosofia – Pensadores e Obras

Gassendi

Nasceu Gassendi em Champcetier, nas proximidades de Digne, em 1592. Revelou uma precocidade surpreendente nos estudos e, tendo-se ordenado em 1616, foi-lhe confiada a cátedra de filosofia aristotélica em Aix. Aproveitou a oportunidade para atacar o peripatetismo e publicou em 1624 a sua primeira obra, Exercitationes adversus aristotélicos. Polemista nato e bastante mordaz apesar da altivez de seu caráter, combateu os fiéis da Escola e os sequazes de Fludd, autênticos abstratores de quinta-essências, porquanto o sistema de Fludd admitia essa quinta-essência.

Sua oposição a Descartes deixa entrever-lhe a doutrina e o alcance desta. A propósito das Meditações apresentava as “Quintas” objeções, que receberam uma resposta bastante desdenhosa, e um grosso volume de “Instâncias”, também acolhidas com azedume. Gassendi mantém-se, pelo tom, no nível do adversário, a quem se avantaja mesmo pela cortesia e pela facilidade; quanto ao fundo, ora assinala vantagens, ora é menos feliz. Ataca a dúvida metódica, sustentando que com ela se barra todo caminho à certeza; pugna em favor das causas finais rejeitadas; menos bem inspirado, não admite a diferença estabelecida entre a intelecção e a imaginação, entre a ideia e a imagem. Contesta-lhe Descartes que a ideia de um quilígono (polígono de mil lados) é muito clara, ao passo que a imagem é muito obscura.

Todo o debate se resume, enfim, nas apóstrofes célebres que se lançavam mutuamente os contendores: “Ó carne”, dizia Descartes, censurando a Gassendi o não enxergar senão a carne; “Ó espírito”, retrucava Gassendi, incriminando o outro de só levar em conta o espírito. Era negar o dualismo cartesiano da substância pensante e da substância extensa, ou melhor, e no termo desse pensamento contraditório, fazer passar tudo para a substância extensa.

As ideias de Gassendi nada tinham de especialmente original; seu método acusava uma forte inspiração baconiana. Faz do espaço e do tempo verdadeiras realidades, derivando deste o movimento. Admite o vácuo, aliás por necessidade, pois precisa dele para movimentar os átomos. Estes átomos existem e têm propriedades específicas, embora sejam invisíveis e impalpáveis; possuem forma e figura e estão sujeitos à lei da gravidade: é a própria gravidade que lhes determina o movimento. São matéria, enquanto princípios constitutivos das coisas, e causas segundas pelo movimento que lhes comunicam. Os corpos, formados por eles, têm qualidades sensíveis e propriedades ocultas, tais como a simpatia. Possuem, na nossa espécie, uma alma que é una, embora de natureza ao mesmo tempo animal e humana. As ideias são dados dos sentidos a que se acrescentou a inteligência.

Vê-se que ainda estamos longe do ponto atingido por Descartes e por outros depois de Descartes; não interveio a separação entre o inteligível e o sensível e não se parece mesmo pensar nisso. Gassendi conserva não apenas Deus mas a ação de Deus e demonstra-lhe a existência pelas provas clássicas das causas finais e do consenso geral. Em moral, continua a misturar o antigo com o moderno, derivando as paixões da natureza sensitiva do homem, apontando o utilitarismo como vício fundamental e fazendo consistir o mal, como Aristóteles e Platão, na ausência ou na ignorância do bem. Na questão do livre arbítrio, salva a liberdade colocando-a na vontade.

Tal foi, muito por alto, a doutrina de Gassendi. Nada tem de extraordinário, nem tampouco produziu algo fora do comum, mas vale como uma característica do tempo e sobretudo do homem. Em comparação com a de Descartes, aparece como um singular retrocesso. Tem ainda uma mescla do pensamento passado, e não do que havia de melhor no passado; quer realizar uma obra para a qual não se dispõe ainda de todos os elementos. Pretende estabelecer o acordo entre o empirismo moderno e o espiritualismo cristão e essa tarefa, em que fracassara o gênio de um Descartes ou de um Leibnitz, tornava-se ainda menos possível com uma inteligência insuficientemente esclarecida ou organizada. Gassendi tem pouca repercussão na história da filosofia e os seus recursos não estiveram à altura da sua audácia.

Essa audácia que ele proclamava, adotando a bela máxima Sapere aude, “ousa saber”, não excluía contudo nem a prudência, nem a circunspeção. Não foi absolutamente pirrônico; conservou-se padre, cristão sincero, e nunca esqueceu, mesmo na especulação mais arriscada, a sua finura provençal. Tem o seu lugar na história da ciência, pois já se preocupara, antes de Descartes, em reformar a física. Apesar de combativo, nunca lhe faltou nem a dignidade nem o senso da justa medida. [Truc]