Todo pensamento platônico repousava sobre a união perfeitamente íntima entre a vida intelectual, moral e política: a filosofia, mediante o conhecimento, alcança a virtude e a capacidade de governar a cidade. Tudo isso se dissocia em Aristóteles. O bem moral ou bem prático, isto é, aquele que o homem pode alcançar por suas ações, nada tem a ver com a Ideia do Bem que a dialética situava na cúspide dos seres. [Ética a Nicômaco, I, 6.] A moral não é ciência exata, como as matemáticas, mas ensino que visa a tornar os homens melhores, e não apenas dar-lhes opiniões acertadas sobre as coisas que devem procurar ou evitar, mas, efetivamente, fazer com que as procurem ou evitem. “Quando se trata de virtude, não é suficiente saber; é preciso possuí-la e praticá-la.” Acerca do alcance desse preceito, o moralista não deve alimentar ilusões: simples discursos não bastam para inspirar a bondade; serão frutíferos na medida em que se dirigem aos jovens de caráter nobre e liberal, mas totalmente incapazes de inspirar a virtude ao vulgo. A moral, portanto, é ensino, mas ensino aristocrático. Não uma prédica para a multidão, mas convite à reflexão para os mais bem dotados; aos demais, bastarão o hábito e medo do castigo. [Ibid., X, 9, 1179 b I sq.] E até parece que a virtude não pode desenvolver-se plenamente senão nas classes ricas. “É impossível ou muito difícil a um indigente praticar belas ações, porque há muitas coisas que não se podem fazer senão servindo-se de instrumentos, como os amigos, a riqueza, o poder político.” Um homem muito feio, de nascença humilde, solitário e sem filhos não poderia alcançar a felicidade perfeita. [Ibid., I, 8, 1099 a 31] Virtudes tão preciosas, como a coragem, a liberalidade, a polidez, a justiça, não se podem exercer senão a um certo nível social. “O pobre não pode ser magnífico, porque não tem com que gastar convenientemente; se tentar, é um tolo.” [Ibid., IV, 2, 1122 b 25.]
Essa ética é a da burguesia endinheirada, decidida a aproveitar, sabiamente, os privilégios sociais. Aqui não se percebe, quer o sopro popular de um despertar de consciências, como em Sócrates, quer a convicção que animava Platão. Ela está em plena harmonia com o resto da filosofia: em ética, como em tudo, trata-se de definir um fim; depois, determinar os meios adequados para atingir esse fim. Tal fim é prático e humano, isto é, deve ser acessível ao homem por meio das ações. Para conhecê-lo será preciso valer-se da observação e da indução, ou seja, saber com que fins agem os homens. Não é duvidoso que todos procurem a felicidade; o prazer, a ciência e a riqueza não são senão meios de atingir essa finalidade, que não se subordina a qualquer outra.
O fim, então, é a felicidade, mas felicidade humana, que nos seja acessível por via de nossas ações e dure a maior parte de nossa vida. Mas importa saber que essa felicidade orientadora da ação como um fim não é parte ou resultado da ação (do mesmo modo que a intuição intelectual não é resultado do trabalho mental, embora oriente esse trabalho). A felicidade situa-se em outra categoria, diferente da ação: a felicidade é um absoluto e um ato; a ação é relativa a um fim. (Ética, I, 9, início.) Chega a nós como dádiva dos deuses e recompensa de nossa virtude; é princípio de bens e possui algo de divino. (Ibid., I, 12, final) Ademais, a opinião universal dos homens considera a felicidade como a coisa mais preciosa entre todas, mas não como coisa louvável. É de se supor que Aristóteles lutasse contra esse tipo de eudemonismo [etimologicamente, em grego, significa o demônio, sinônimo de felicidade; é o espírito orientado para o homem. O possuidor do daimon era detentor de valiosos bens e feliz, nesse sentido.], tão diferente do seu, que prevalece após ele e , une o que queria diferençar antes de tudo: o louvável e o precioso, a ação e o fim. (Ibid., I, 12)
É uma regra universal que um ser não alcança seu próprio fim se não preenche a função que lhe é própria; a virtude, para o ser, consiste no excelente cumprimento dessa função. A noção de virtude, em geral, ultrapassa de muito a esfera da moral. Pode-se falar da virtude de um ser vivo e mesmo de um objeto inanimado ou de um utensílio fabricado. A palavra não sugere qualidade especificamente moral. Além disso, a virtude de um ser é algo adquirido que se acrescenta à essência. Não há, com efeito, na essência, questão de mais ou de menos, e. nesse particular, Aristóteles é irredutível: ou se é homem ou não se é; não se pode ser mais ou menos homem. Contudo, da essência de um ser não se deduzem sempre todas suas qualidades, com a mesma necessidade com que as propriedades de um triângulo se deduzem de sua essência. Há graus de perfeição diferentes para um ser da mesma essência; há instrumentos de boa e má qualidade, sem que a boa ou má qualidade façam parte da essência. Na categoria de qualidade, portanto, encontra-se a virtude, ou, mais exatamente, entre as qualidades adquiridas (Ética, I,13; II. 1).
Apliquem-se esses princípios ao homem: sua função própria e distintiva é a atividade conforme á razão; toda atividade boa ou má é racional; a virtude humana consiste na perfeição ou excelência dessa atividade. Realizar o sentido dessa fórmula, tal é o fim da teoria das virtudes; esse sentido é extraordinariamente complexo e rico, se se deseja vê-lo realizado em todos os detalhes particulares da vida humana. E é isso, precisamente, o que falta, dado que a ética deve ensinar como agir e, consequentemente, descer a todos os casos particulares. “Em matéria de ação, as noções gerais são vazias e as particularidades estão mais próximas da verdade, porque as ações incidem sobre o particular” (III, 7, início). A ética é, pois, uma espécie de descrição muito concreta da maneira pela qual a razão pode penetrar e dirigir toda a atividade humana. Nenhum pormenor da vida passional e de relações sociais pode ser omitido, porque é graças a esse pormenor que a razão cobra sentido. A ética orienta-se naturalmente para a descrição das paixões, como, pouco mais tarde, a comédia nova de Menandro (342-290) substitui a violência das diatribes de Aristófanes pela delicada análise dos caracteres. Essas análises emprestam-todo valor à Ética a Nicômaco. Não se trata de regras gerais, mas de investigar “quando se trata de agir, em que casos, a respeito de quem, em vista do que e de que maneira” (II,7).
A virtude é uma disposição estável de que se origina a ação virtuosa. Essa disposição não é natural e inata, uma vez que o homem nasce com inclinação para certas paixões, como, por exemplo, a cólera ou o medo. Entretanto, essas disposições não constituem vício ou virtude, e por elas não deve o homem ser louvado Ou censurado. A virtude é uma disposição adquirida, e se conquista pela vontade, para ser louvada. Não existe, realmente, senão quando se torna hábito, isto é, quando, embora adquirida, provoca as ações com a mesma facilidade de uma disposição inata. O homem não é verdadeiramente justo a não ser quando realiza uma ação justa, não apenas sem desgosto, mas com prazer. Esse hábito, provindo da vontade, torna-se, ao mesmo tempo, mais firme. Tudo que existe de virtude no homem promana de sua eleição voluntária.
Mas em que consiste essa escolha, para ser racional e virtuosa? Sobre esse ponto capital, Aristóteles (é a característica de seu método de moral) faz apelo, de uma parte, à analogia; de outra, á opinião comum (II, 6). De início, a analogia do ato virtuoso com as obras da natureza e da arte: tais obras visam, antes de tudo, a evitar excessos, o muito ou o muito pouco. Os médicos sabem que a saúde ou excelência do corpo é a justa proporção de forças ativas contrárias, quente e frio, que influem sobre o corpo. O escultor e o arquiteto tendem, também, para certas proporções justas. A natureza e a arte encontram sua excelência quando alcançam o termo médio entre dois excessos. A condição material desse ideal é que operem sobre um desses contínuos que comportam o mais e o menos, um desses múltiplos infinitos de que fala Platão, no Filebo, onde se reúnem o quente e o frio, o grave e o agudo. Ora, essa condição realiza-se na vida moral, em que a vontade trabalha sobre ações e paixões que envolvem a falta e o excesso, o mais e o menos, e se apresentam por pares, como temor e audácia, desejo e aversão, e onde o aumento de um dos termos é diminuição de outro. A virtude consistirá em alcançar o justo meio entre esses contínuos. Incide, também, a opinião comum de que existe uma única maneira de ser bom e mil maneiras de ser mau. Entretanto, o problema do meio-termo apresenta-se, igualmente, com características particulares, devidas ao objeto da moral: não se trata, com o fim de encontrar o objeto da virtude, de definir de modo preciso e absoluto o meio-termo, como se define a média aritmética entre dois extremos. A moral não comporta semelhante rigor; ela se dirige a homens naturalmente inclinados a paixões opostas, de qualquer grau ou natureza. Tende a proporcionar a esses homens uma definição teórica da virtude mais do que neles produzir a virtude. É claro que não se produzirá a coragem da mesma maneira que no tímido, a quem é preciso excitar, e no audacioso, que é preciso reprimir. Segundo os casos, o meio-termo estará mais próximo de um ou de outro extremo. E será meio-termo em relação a nós e não segundo a própria coisa. A determinação do meio-termo, inseparável dos processos tendentes a produzi-lo, é, por conseguinte, uma questão de tato e de prudência. Acrescente-se que numa média aritmética, o meio é posterior aos extremos e por eles determinado. Na vida moral, os extremos, pelo menos idealmente, são posteriores ao meio-termo, e não são extremos senão relativamente a ele: o imperfeito não se concebe como tal senão em relação ao perfeito; e, em certo sentido, o meio-termo é o verdadeiro extremo, isto é, o mais alto grau de perfeição (II, 6).
A virtude é, em resumo, uma disposição adquirida (exis) pela vontade, que consiste em um meio-termo relativo a nós, definido em razão, isto é, tal como um homem de tato pode defini-lo. [Ética, II, 6, 1106 b 36.] É um quadro muito geral que virá preencher a experiência moral com tantos pares de paixões opostas quanto de virtudes, e outros tantos pares de vícios opostos entre si e a virtude. Relativamente ao temor e à audácia, por exemplo, há uma virtude, que é a coragem, e dois vícios, que são a temeridade e a covardia. Em relação à busca do prazer, a virtude é a temperança, e os vícios opostos são a intemperança e a insensibilidade. Da mesma forma, acontece quando deparamos com um par de ações opostas entre si: quanto ao dom de riquezas, a virtude é a liberalidade; os vícios opostos são, de uma parte, a mesquinhez, de outra, a prodigalidade (II, 7). Tais exemplos nos induzem a ver como a virtude é o meio-termo totalmente relativo à nossa condição humana e à nossa condição social. Assim, a liberalidade, virtude dos homens privados de fortuna média, é muito diferente da magnificência, virtude do rico magistrado benfeitor de sua cidade: o que é generosidade num, será mesquinharia em outro.
Conquanto Aristóteles defina a virtude por uma disposição voluntária, longe está de nela incluir qualquer coisa como a intuição. Tal disposição não é vista senão como tendência à ação; e estando as condições materiais da ação ausentes, a virtude deixa de ter sentido. “O liberal tem necessidade de riqueza para agir com liberalidade: e o justo, analogamente, necessita de intercâmbios sociais, porque as intenções são invisíveis, e o injusto se vangloria, também, de sua vontade de justiça.” As virtudes humanas são inseparáveis do meio social, virtudes políticas, que os deuses, por exemplo, jamais possuem. “Como poderiam os deuses ser justos? Seria o caso de, sem tentarmos rir, vê-los estabelecendo contratos ou restituindo depósito?” (X, 8, 1178 a 24 e 1178 b 28)
Disso surge sua análise da vontade (III, 1 a 5); ela é considerada não em si mesma, mas em suas relações com a ação que produz. É. antes de tudo, uma questão de pedagogia social; trata-se de saber quais são as ações que o legislador poderá, utilmente, favorecer com seus elogios ou impedir com suas censuras; uma condição é que sejam voluntárias. Tal condição concerne a suas diversas causas, isto é, a seu princípio originário, fim e meio. Uma ação é voluntária (ekousios) no sentido mais geral, quando seu ponto de partida é anterior ao ser que a cumpre. Aquilo que torna o ato involuntário é um imperativo material, como se o vento nos arrastasse, ou uma coerção moral, como a do tirano (mas aqui não há qualquer regra precisa para discernir o ponto em que a ameaça torna o ato involuntário), ou. ainda, por ignorância, não a ignorância do bem e do mal, mas a das circunstâncias particulares, cujo conhecimento teria modificado nossa ação. Em sentido geral, a ação voluntária não é, de modo algum, própria do homem, mas se encontra também no animal. O ato propriamente humano é feito por eleição reflexiva (proairesis), ou seja, por escolha precedida de deliberação (bouleusis). A deliberação é a pesquisa pertinente não ao fim do ato, mas aos diversos meios possíveis de atingir esse fim, e não tem lugar a não ser onde haja indeterminação e contingência. É. no domínio prático, o correspondente do pensamento discursivo no domínio teórico; constrói silogismos (v. silogismo) práticos, cuja premissa maior implica um preceito e um fim (as carnes leves são saudáveis); a premissa menor, uma constatação de fato através da percepção sensível (esta carne é leve); a conclusão, a máxima prática que leva imediatamente à ação ou à abstenção. Uma máxima geral, sem o conhecimento particular dos fatos, jamais acarretaria a ação. É privilégio da “inteligência prática” descobrir esses fatos particulares expressos nas premissas menores (aqui, a percepção sensível é realmente inteligência), ao passo que a “inteligência teórica” conhece os primeiros princípios. (VI, 11, 1148 a 35) Mas a deliberação é sempre relativa a um fim; a vontade do fim (bouleusis), muito diferente da deliberação que dela depende, é a que visa ao bem, ou, pelo menos, ao que nos parece ser o bem.
Essa análise da vontade tem por consequência a distinção de duas espécies de virtudes: as virtudes éticas, que estão em relação com o caráter, isto é, com nossas disposições naturais para tal ou qual paixão, visando a reduzi-las a seus justos limites, e as virtudes dianoéticas ou virtudes da reflexão, que são qualidades do pensamento prático conducente à ação. Impossível confundir as primeiras com as segundas, ou, em outras palavras, a força de vontade que domina as paixões com a clareza da inteligência que busca o caminho reto. A unidade que Sócrates parece haver tentado estabelecer entre o domínio de si e a reflexão fica destruída. A parte irracional da alma permanece como elemento irredutível que a razão pode governar, mas não absorver. As virtudes éticas, coragem ou justiça, são, em nós, quase inatas; as virtudes dianoéticas, como a prudência, não se adquirem a não ser através de longa experiência. Impossível também confundir as virtudes dianoéticas com a ciência ou a sabedoria. Essas qualidades são a prudência (phronesis), que consiste em deliberar bem, isto é, procurar pela reflexão o melhor meio possível de alcançar um fim e em prescrever esse meio; a penetração (synesis), que consiste em saber julgar corretamente os outros na escolha que fazem; e o bom-senso, faculdade de julgar corretamente o que convém. Ora, enquanto a ciência apenas se ocupa do universal e do necessário, toda a reflexão prática, como se viu, refere-se unicamente a circunstâncias particulares e contingentes. E o conhecimento complexo de meios diversos de alcançar nossos fins não poderia conduzir a verdades universais (livro VI).
Essa mesma tendência em separar o que unia o pensamento de Sócrates e Platão volta a manifestar-se na doutrina da justiça (livro V). Em Platão, a justiça é o sustentáculo da unidade das virtudes; em Aristóteles, torna-se virtude à parte. Não que ele abandone inteiramente a ideia de que a justiça é virtude integral. Com efeito, o justo é o que a lei prescreve; e a lei, sobretudo a que foi concebida por Platão, contém grande número de prescrições morais feitas para encorajar a virtude. Ela ordena a temperança, a coragem, a doçura. Mas convém acrescentar que se a legislação prescreve os atos virtuosos, visa menos à perfeição do indivíduo do que à da sociedade. Sob essa forma muito geral, a justiça não envolve senão um aspecto da vida morai: o de nossas relações com o outro (V, I). Apresenta, ainda, uma segunda forma, muito especial, em que pode subdividir-se: a virtude que preside à distribuição de honrarias e riquezas entre os cidadãos; a que faz respeitar os contratos de toda classe, como a venda, a compra, os empréstimos; e, finalmente, a que proíbe atos arbitrários e de violência. Isso significa que Aristóteles considera o direito como situado em lugar distinto e irredutível, sob três formas então em uso: repartição dos bens comuns entre os cidadãos; direito contratual e direito penal. Para esses três aspectos do direito, ele encontra um só princípio, a igualdade, que interpreta diferentemente nos três casos: no direito distributivo, é a igualdade proporcional que atribui a parte de cada um em seu valor; o princípio do direito contratual e penal, que consigna a igualdade aritmética. Ao juiz cabe, por missão, mediante um jogo de compensações e de danos e perdas, restabelecer a igualdade em benefício da pessoa lesada, quer se trate de violação de contrato ou ato de violência. No intercâmbio de mercadorias, a igualdade torna-se viável por força da invenção dessa medida comum, que é a moeda.
Dessa maneira, Aristóteles tende a criar, na moral, esferas distintas, cada uma com seus princípios próprios, Isso não quer dizer que todas as virtudes careçam de condições comuns. Aristóteles dedica tantas páginas ao tema da amizade (livros VIII e IX), porque a considera condição indispensável à virtude. Mas sua forma mais elevada, a amizade entre homens livres e iguais, animados, individualmente, do amor ao bem, é a única capaz, em virtude da reciprocidade de serviços que engendra, de propiciar aos homens a meta de toda perfeição possível, afeiçoados uns aos outros e corrigindo-se mutuamente. Não se trata, bem entendido, de formas inferiores de amizade, da amizade por interesse comum entre os velhos ou da amizade recreativa que une os jovens.
Quando Aristóteles estuda o prazer (VIII, 11 a 14 e X, 1 a 5), é também para determinar-lhe a forma mais elevada e nele fazer ver uma condição da excelência moral. É indispensável à virtude complacência para com o que se deve fazer e aversão para com o que se deve repudiar. Isso porque, de todos os modos, é impossível negar a tendência ao prazer; e aqueles, como Espeusipo, que declaram que todo prazer é mau, são desmentidos pela experiência universal, que nos mostra todos os seres sensíveis procurando o prazer como um bem. E com tal ascetismo aparente não se conseguirá afastar os homens dos prazeres perigosos e atraí-los para os prazeres úteis. A verdade é que todo ato, qualquer que seja, uma vez terminado, se acompanha de prazer, da mesma maneira pela qual o desenvolvimento completo de um ser não se entende sem a beleza: o prazer alia-se ao ato. Ademais, termina em ato, favorecendo-o; por ser efeito do ato, torna-se causa da perfeição desse ato. Desde então, o prazer não mais é susceptível de ser buscado sem condição, a título de fim, com mais razão do que ser repudiado. Quanto valha o ato, tanto valerá o prazer. Isso mostra quanto é diferente o valor dos prazeres; e, também, que a virtude não poderia ser perfeita se não se desenvolvesse até produzir o prazer quando se manifesta em ato.
Amizade e prazer completam, por conseguinte, cada qual à sua maneira, a virtude, mas não lhe dão unidade. A virtude permanece dispersa sob múltiplas formas, e não se pode reduzi-las todas a uma só virtude. Mas como Aristóteles, na teoria da substância, primeiro determinou a substância a título de noção geral, contendo em sua extensão uma multidão de substâncias diversas, e, depois, passou dessa noção geral à de uma substância individual, Deus, que é a substância por excelência, de modo análogo, em moral, passa da noção geral de virtude, considerada como o modelo comum de virtudes humanas, éticas e dianoéticas, a uma virtude que é a virtude por excelência, transcendente às virtudes humanas, virtude divina, que é a faculdade da contemplação intelectual (X, 6 a 8). Enquanto as outras virtudes implicam a união da alma com o corpo e a vida social, a inteligência, na contemplação da, verdade, está isolada e se basta a si mesma. Enquanto o resto da vida moral é pleno de ocupações incessantes, a vida contemplativa é de lazer, e, por conseguinte, muito superior, ao passo que o lazer é o fim da ação, e não o inverso. É, pois, a vida do que existe de verdadeiramente divino no homem, a única vida que o homem pode partilhar com os deuses, que são, antes de tudo, atividades pensantes, e, finalmente, a que nele produz, com o prazer mais elevado, a felicidade que pode. mais que qualquer outra, prolongar-se sem fadiga.
Essa moral do contemplativo ou do homem de estudo, situado acima do político, implica ainda uma dissociação daquilo que Platão havia tentado unir fortemente. Aristóteles sentiu intensamente necessidade de separar a vida intelectual do restante da vida social e dela fazer um fim em si. “Todos os homens desejam naturalmente saber” [Metafísica, A, I, início.], e o saber é como um absoluto que não se refere á qualquer outra coisa. Não se pode dizer que haja em Aristóteles verdadeira dualidade de ideal, porque há entre as duas vidas, pratica e contemplativa, hierarquia e subordinação da primeira à segunda. A vida social de uma cidade grega, com todas as virtudes que implica, é a condição pela qual pode existir o ócio do sábio que contempla; são duas vidas inseparáveis, à maneira pela qual são inseparáveis Deus e o mundo. [Bréhier]