Filosofia – Pensadores e Obras

Genealogia da Moral

Nietzsche, F.. A Genealogia da Moral. Tr. Paulo César Lima de Souza. Belo Horizonte: Companhia das Letras, 1998 (ebook)


Juntamente com o cristianismo, aliás condenando o cristianismo, Nietzsche também submete a moral a cerrada crítica. Essa é a “grande guerra” que Nietzsche trava em nome da “transformação dos valores que dominaram até hoje”. E essa revolta contra “o sentimento habitual dos valores” explicita-se especialmente em dois livros, “Além do Bem e do Mal” e “Genealogia da Moral”. Escreve Nietzsche: “Até hoje, não se teve sequer a mínima dúvida ou a menor hesitação em estabelecer o ‘bom’ como superior, em valor, ao ‘mau’ (…). Como? E se a verdade fosse o contrário? Como? E se no bem estivesse inserido também um sistema de retrocesso ou então um perigo, uma sedução, um veneno?”

Essa é a questão proposta pela Genealogia da Moral. E é aí que Nietzsche começa a indagar os mecanismos psicológicos que iluminam a gênese dos valores: a compreensão da gênese psicológica dos valores, em si mesma, será suficiente para pôr em dúvida a sua pretensa absoluticidade e indubitabilidade. Antes de mais nada, a moral é máquina construída para dominar os outros e, em segundo lugar, devemos logo distinguir entre a moral aristocrática dos fortes e a moral dos escravos. Estes são os fracos, os mal-sucedidos. E, como diz o provérbio, os que não podem dar maus exemplos dão bons conselhos. É assim que os constitutivamente fracos agem para subjugar os fortes.

E prossegue Nietzsche: “Enquanto toda moral aristocrática nasce da triunfal afirmação de si, a moral dos escravos opõe desde o começo um não àquilo que não pertence a ela mesma, àquilo que é diferente dela e constitui o seu não-euesse é o seu ato criador. Essa subversão (…) pertence propriamente ao ressentimento”. É o ressentimento contra a força, a saúde e o amor à vida que torna dever e virtude e eleva à categoria de bons comportamentos como o desinteresse, o sacrifício de si mesmo, a submissão.

Assim, por exemplo, se examinarmos a psicologia do asceta, aparentemente ele demonstrará profundo desinteresse pelas coisas e acontecimentos deste mundo; entretanto, a análise um pouco mais aprofundada descobrirá nele forte vontade de domínio sobre outros. Sua moral é o único modo e o único instrumento com que ele pode subjugar os outros. E é fruto do ressentimento. A moral dos fortes ou dos senhores é a moral do orgulho, da generosidade e do individualismo; a moral dos escravos, ao contrário, é a moral dos “filisteus” ressentidos, é a moral da democracia e do socialismo. E essa moral dos escravos é legitimada por metafísicas que a suportam com bases presumidamente “objetivas”, sem que se perceba que tais metafísicas nada mais são do que “mundos superiores” inventados para poder “caluniar e sujar este mundo” que elas querem reduzir a mera aparência.

Escreve Nietzche: “Olhai os bons e os justos! Quem eles odeiam mais que a qualquer outro? Aquele que rompe o quadro dos valores, o violador, o corruptor. Mas este é aquele que cria. Olhai os crentes de todas as religiões! Quem eles odeiam mais que a qualquer outro? Aquele que rompe o seu quadro de valores, o violador, o corruptor. Mas este é aquele que cria”. E esse ódio, que impediu os instintos mais sadios, isto é, os instintos que ligam o homem à terra (que é a alegria, a saúde, o amor, a intelectualidade superior etc), fez com que esses instintos “se voltassem para trás, se revoltassem contra o próprio homem”. E foi assim que, ao invés de se desenvolver externamente e criar um mundo de beleza e de grandes obras, desenvolveu-se interiormente, fazendo nascer “a alma”, mas uma alma enferma da doença “mais grave e obscura”. [Reale]