MEDITAÇÕES METAFÍSICAS (Méditations métaphysiques), por Descartes (1641), cujo título completo é: Meditações que tocam a filosofia primeira, onde se demonstra a existência de Deus e a distinção real entre a alma e o corpo do homem (Méditations touchant la philosophie première, où l’on demontre l’existence de Dieu et la distinction réelle entre l’âme et le corps de l’homme). O filósofo começa por duvidar de tudo, a fim de não tomar por verdadeiro senão o que conhece clara e distintamente como tal. Sua primeira certeza diz respeito ao ato mesmo de duvidar, que é um fato de pensar. Assim, o pensamento é o primeiro objeto de conhecimento verdadeiro. Ora, “penso, logo existo”. Descartes examina em seguida todas as ideias que se encontram em seu espírito: ressalta em particular a ideia do infinito, do qual o ser humano não pode ser o autor; essa ideia, que, na verdade, nos ultrapassa, é o sinal tangível de uma realidade — ela própria nos ultrapassando —, a realidade de Deus. A certeza de Deus é então o segundo de nossos conhecimentos verdadeiros. Da ideia mesma de Deus, de sua onipotência e bondade, o filósofo deduzirá a veracidade de todos os nossos conhecimentos naturais: sensíveis (percepções do mundo) e mesmo sensoriais (percepções de nosso corpo). As Meditações dão, assim, os princípios de uma física e de uma medicina, baseadas no conhecimento da verdade. [Larousse]
Partindo do Discurso sobre o Método e demandando o seu objetivo fundamental, que era a busca da verdade, ao mesmo tempo que afastava por uma dúvida sistemática tudo que pudesse ter recebido, sem controle, de outra fonte que não fosse de si mesmo, perguntou-se Descartes que realidade, mãe de todas as outras, se impunha indubitavelmente, e encontrou-a no pensamento, no seu pensamento, no fato de se surpreender em flagrante de pensar e de não poder duvidar, portanto, que ele fosse um eu que pensa. É o Cogito, ergo sum, o “Penso, logo existo” — nada de silogismo, apesar das aparências, mas uma constatação, uma afirmação, talvez uma identificação: eu penso, eu existo — talvez exista porque penso…
Desde o primeiro passo já entramos em cheio no centro e no ponto crítico do cartesianismo. Numerosas interpretações têm sido dadas ao Cogito que, com o decorrer do tempo, se tem alargado e aprofundado de maneira singular. Reaparece, e tornaremos a encontrá-lo, com uma extensão crescente de registro em Fichte, em Heidegger. Louis Lavelle, em seus cursos admiráveis do Colégio de França, renovou-o com uma tintura de platonismo. Via nele não já uma coisa mas um ato, o ato da inteligência que se percebe em sua operação. Assim marcham as ideias e dão seus frutos. O próprio Descartes poderia passar por ter tomado de empréstimo esta. que se encontra em Santo Agostinho e que no fundo é uma ideia do senso comum. Mas apresentava-a de maneira a assegurar-lhe maravilhosa fecundidade.
Da minha realidade como poderei chegar, agora, à realidade dd que não é eu? Outro passo adiante, e não menos decisivo. Descartes vai saltar da realidade do eu para a realidade do mundo — mas por um golpe de audácia, e passando pela realidade de Deus.
Apesar de ter apreendido o seu ser, refletiu consigo que duvidava e que, portanto, não era perfeito, uma vez que o conhecimento é superior à dúvida. Ora, donde lhe vinha essa ideia de perfeição? Não podia provir dele mesmo, nem do nada. Logo, era preciso afirmar um ser perfeito, isto é, Deus, que o ultrapassasse e ultrapassasse tudo mais, tornando-se assim a fonte e como que a garantia de todo ser, pois que nenhum ser poderia existir sem ele e sem o seu suporte. Tudo nos engana ou nos pode enganar, particularmente os sentidos, que constituem para o vulgo o critério da certeza; mas aqui se impõe uma outra evidência, esta de ordem lógica. Diremos acaso — e a objeção será formulada mais tarde — que essa manobra talvez não passe de um sonho e que podemos, nós e o resto, ser simples fantasmas suscitados por um “espírito maligno”, por um deus enganador? Mas um deus enganador seria um deus perfeito, seria Deus?
Assim fica fechado o círculo. Passamos da nossa realidade à realidade de Deus para tornar em seguida à realidade nossa e do restante. Quanto à natureza dessa realidade aprendida em primeiro lugar, já nos é perfeitamente manifestada pelo seu próprio objeto. É toda espiritual e da ordem do pensamento, única realidade verdadeiramente real, pois o que conheci foi “que eu era uma substância cuja essência total ou natureza consiste em pensar e que, para existir, não necessita de nenhum vínculo nem depende de coisa material alguma; de sorte que o eu, isto é, a alma, pela qual sou o que sou, é inteiramente distinta do corpo, sendo mesmo mais fácil conhecê-la do que a este”. Outra concepção, ou concepção derivada, de considerável alcance, e que se tornará temível.
Tais são os princípios da metafísica cartesiana desenvolvidos nas Meditações e nas Respostas dadas às objeções que se levantaram contra aquelas. E vemos, no curso da obra, reaparecer as mesmas noções, definidas ou precisadas.
O primeiro conhecimento que derivamos da observação e da consideração das coisas não é o conhecimento delas mas o de nós mesmos, e vem não dos sentidos, mas do simples entendimento: se carrego em mim uma realidade que me supera e que não pode provir de mim mesmo, é forçoso que venha de fora e, por conseguinte, que eu não esteja só e que exista algo fora de mim. Essa ideia de perfeição que seríamos incapazes de criar sem ser perfeitos, isto é, sem ser Deus, só pode ter sua origem em Deus. E finalmente encontramos estas palavras decisivas:
“Ora, se eu, que sou uma coisa que pensa, não reconheço em mim o poder de conservar a mim mesmo, concluo que existo por um outro que, tendo a força de me conservar, deve, com mais forte razão, conservar-se a si próprio e, por conseguinte, existe por si”.
Tem-se reconhecido aí, e melhor armada, a prova ontológica da existência de Deus, o argumento de Santo Anselmo e a aplicação do princípio de perfeição. E é bem possível que sejam estas as melhores razões que a razão tenha encontrado para justificar o fato de se ultrapassar. Se existe ser, é necessário que haja um ser, e um Ser Supremo; se, por outro lado, o princípio de contradição, isto é, a própria atividade da inteligência, detém esta inteligência ao mesmo tempo que ela afirma a necessidade de ir além, é imprescindível que a ideia da perfeição venha em seu socorro. Tal era o fundo mesmo da filosofia de Platão. Descartes — um homem de ciência — marcha nesse sentido e vai até mais longe; vai até Duns Escoto, para quem a verdade não era a verdade por ser a verdade, mas porque Deus assim o queria, para quem a soma dos ângulos de um triângulo era igual a dois ângulos retos unicamente por decisão divina. Não disse Descartes, com efeito, que “o ateu não possui a verdadeira ciência das matemáticas” por lhe faltar o fundamento de Deus, “porque não lhe assiste nenhum motivo para crer que não esteja sendo enganado nas coisas que lhe parecem mais evidentes”?
Isto patenteia o caráter profundamente idealista, não de toda a filosofia, mas da metafísica cartesiana. Não é um idealismo no sentido estrito da palavra, pois que veremos adiante a parte concedida ao corpo e aos corpos, à “substância extensa” mas como não reconhecer que o primado da realidade é outorgado ao espírito? Filosofia da essência no sentido filosófico desta palavra — e Descartes é, por antecipação, decididamente anti-existencialista. À objeção capital de Hobbes: “A essência não existe senão pela existência” ele contesta com simplicidade e firmeza: “A essência e a existência são distinguidas por todo mundo.” Reintegra-se por este lado, na tradição escolástica tão vilipendiada.
Temos portanto aí uma metafísica, isto é, uma construção puramente espiritual. Todavia Descartes não esquece, nessa operação, nem a prudência nem os princípios do seu método. Parte da evidência de um eu pensante atingida em primeiro lugar e avança pelas vias de uma lógica natural, perfeitamente controlada. Não se deixa arrastar nem pelo acaso, nem pela quimera. Seu itinerário já não é de Deus ao homem mas do homem a Deus, para voltar em seguida ao homem por Deus, o que não deixará de ter as suas consequências. Segue a filiação e não traça a si mesmo limites excessivamente remotos nem concebe desígnios impossíveis. “Em lugar de procurar a causa final”, diz ele, “é preciso ater-se à causa eficiente; do efeito se pode remontar a Deus, mas nunca se deve inquirir com que intenção ele o produziu.” Revela-se, aqui, mais aristotélico do que platônico.
Mas o que permanece um dos caracteres próprios do sistema e a sua pedra de tropeço é a cisão entre a realidade inteligível e a realidade sensível, entre a substância pensante e a substância extensa, que desde então nada pôde tornar a unir, nem mesmo o esforço engenhoso e genial de Leibniz. É certo que o paralelismo é seguido com todo o rigor e a alma e o corpo, por exemplo, continuam tão estreitamente entrosados no curso da vida terrestre que dão a impressão de ser impossível separar uma do outro; não obstante, permanecem radicalmente diversos pela espécie.
Seres de carne, costumamos derivar do sensível a ideia de realidade e não é, em suma, senão por meio de uma imagem que a aplicamos ao inteligível. Com Descartes ocorre o contrário, do mesmo modo que com Platão. Para eles a realidade principal — entenda-se a realidade de -princípio, a única realidade — é a realidade da ideia, do pensamento, a tal ponto que o mundo sem ela se converte em pura fantasmagoria.
Descartes torna a repeti-lo: “Pois pelo entendimento”, escreve ele, “eu não afirmo nem nego coisa alguma, mas concebo apenas as ideias das coisas que posso afirmar e negar.” Passagem de capital importância: o que o entendimento apreende é com efeito a ideia e não a coisa em si. A existência da coisa, atestada pela observação, garantida por Deus, permitirá evitar um idealismo puro, o idealismo que faz do mundo sensível uma mera ilusão. Mas o fato é que a realidade do espírito será apresentada como primacial e única autêntica e essa justaposição, essa outra oposição do espírito e da matéria que nada poderá conciliar, vai abrir o pano de boca para um novo ato desse drama sem desfecho que é o drama da filosofia. [Truc]