(in. Grace; fr. Grâce; al. Anmut; it. Grazià).
Uma espécie particular de beleza distinguida pela estética do séc. XVIII: a beleza em movimento. Edmund Burke dizia: “A graça é uma ideia não muito diferente da beleza, constituída pelos mesmos elementos. A graça é uma ideia relativa à postura e ao movimento: para serem graciosos, não devem dar a impressão de dificuldade; bastam a leve flexão do corpo e a harmonia das partes, de tal maneira que não se estorvem reciprocamente e que não se mostrem separadas por ângulos bruscos e distintos. Nesta facilidade, harmonia e delicadeza de postura e de movimento consiste todo o encanto da graça, o seu não-sei-quê’” (A Philosophical Inquiry into the Origin of our Ideas of the Sublime and Beautiful, 1756, II, 22). Essas ideias eram repetidas com frequência pelos tratadistas do séc. XVIII. Num Ensaio sobre a beleza (1765), ao caráter da graça descrito por Burke, Giuseppe Spalletti acrescentava outro: a expressividade. “Já grandes autores observaram que essas qualidades (agilidade e robustez) consistem nas flexões, nas curvas e na mistura delas, que, se forem acompanhadas por transparência que indique a conformidade com os movimentos internos causados pelos afetos da alma, parecerão graciosas: prerrogativa cuja importância o feliz possuidor do gosto natural entende com tanta facilidade quanto lhe parece difícil explicar” (Op. cit., 37). Mas o maior teórico da graça foi certamente Schiller, que viu nesse conceito a mais consumada harmonia entre a liberdade moral e a necessidade natural. Schiller começa distinguindo a beleza imóvel ou arquitetônica, que é produzida pelas forças plásticas da natureza por meio da lei da necessidade, da beleza em movimento, que é produzida por um espírito segundo condições de liberdade. A beleza arquitetônica honra o criador da natureza; a beleza em movimento honra quem a possui. A beleza em movimento assim é chamada porque uma modificação da alma só pode manifestar-se como movimento no mundo sensível (Über Anmut und Würde, 1793; Werke, ed. Karpeles, XI, p. 183). Esta segunda espécie de beleza é justamente a graça, definida por Schiller como “a beleza de uma figura movida pela liberdade” (Ibid., XI, p. 184; cf. L. Pareyson, Vestetica dell’idealismo tedesco, Turim, 1950, 1, pp. 227 ss.). Essas observações tornaram-se clássicas e até hoje são repetidas, mesmo fora do contexto filosófico em que Schiller as inseria, o qual caiu completamente em desuso.
(gr. kharis; lat. Gratia; in. Grace; fr. Grâce, al. Gnade; it. Grazià). Em geral, dom gratuito, sem retribuição; mais especificamente, em sentido teológico, o dom da salvação ou de alguma condição essencial da salvação que Deus oferece ao homem, independentemente dos méritos (se existirem) do próprio homem. Nesses termos, a graça foi descrita na Epístola aos romanos, de S. Paulo. O problema da magnitude e dos limites da graça sempre foi fundamental no cristianismo. Marcou o ponto culminante da atividade filosófica e teológica de S. Agostinho e, depois de inúmeras discussões medievais, representou um dos maiores conflitos entre a Reforma e o Catolicismo pós-tridentino. Reduzido a seus termos essenciais, o problema pode ser expresso da seguinte maneira. É doutrina fundamental do cristianismo que a salvação não é possibilidade humana. A revelação e a encarnação do Cristo são os instrumentos indispensáveis que, suprindo a deficiência da natureza humana, reduzida ou corrompida pelo pecado original, lhe retribuem a possibilidade de salvação. Mas a revelação e a participação dos méritos de Cristo podem ser concedidas e, em princípio, o são a todos os homens enquanto tais; por isso, a admitir-se (como fazem muitos padres da Igreja oriental) que no fim dos tempos todos os homem serão salvos (doutrina da apocatástase), a noção de graça não dá origem a graves problemas. Mas surge o problema quando se admite que nem todos os homens se salvarão e que no fim dos tempos ainda haverá justos e perversos, portanto, eleitos e condenados. Nesse caso, surge a pergunta: quem determina a salvação de cada homem, o próprio homem ou Deus? Diante desse problema só há duas respostas possíveis e, na realidade, são duas as doutrinas típicas da graça: 1) a graça é determinante, ou seja, é Deus mesmo que, conferindo-a a uns e negando-a a outros, determina os hábitos e as disposições que tornarão o homem justo e o levarão à salvação; 2) a graça não é determinante, no sentido de que sua concessão por parte de Deus, mesmo sendo condição necessária da salvação, não determina a própria salvação, que exige a contribuição do homem. Essas duas soluções, ou melhor, esses dois tipos de soluções, permaneceram substancialmente inalterados ao longo da história dessa controvérsia, apesar da variedade das expressões, atenuações ou nuanças que receberam durante esse tempo.
1) A primeira solução é apresentada por S. Agostinho na polêmica contra Pelágio, pela Reforma protestante e pelo jansenismo. Consiste em julgar que a humanidade toda pecou com Adão e em Adão e que, portanto, o gênero humano é uma só “massa condenada”, a cuja punição nenhum membro pode escapar, a não ser pela misericórdia e pela graça não obrigatória de Deus (S. Agostinho, De civ. Dei, XIII, 14). O fundamento dessa solução é que a verdadeira liberdade do homem coincide com a ação agraciadora de Deus. Segundo S. Agostinho, a vontade só é livre quando não dominada pelo vício e pelo pecado e é essa a liberdade que só pode ser devolvida ao homem pela graça de Deus (Ibid., XTV, 11). Desse ponto de vista, o homem não possui méritos próprios, válidos perante Deus: seus méritos são dons divinos que devem ser atribuídos a Deus e nào a si mesmo (Degratia et libero arbítrio, 6). O De servo arbítrio (1525) de Lutero, admitindo esse ponto de vista agostiniano, nega que o homem seja livre. Segundo Lutero, não se pode admitir ao mesmo tempo a liberdade divina e a humana. A presciência e a predestinação divina implicam que nada acontece sem a vontade de Deus, e isso exclui que no homem ou em qualquer outra criatura haja livre-arbítrio. À óbvia objeção que, nesse caso, Deus é o autor do mal, Lutero responde com a doutrina já defendida pela última escolástica (p. ex., por Ockham, In Sent., I, d. 17, q. 1 M): Deus não se submete a normas: ele não deve querer uma coisa ou outra porque é justa, mas o que ele quer é justo por sisi mesmo (De servo arb., 152). Calvino expressava mais cruamente o mesmo conceito quando afirmava: “Digamos que o Senhor decidiu, em seu parecer eterno e imutável, a quais homens conceder salvação e quais deixar em ruína. Digamos que os chamados à salvação são recebidos por sua misericórdia gratuita, sem nenhuma consideração pela dignidade deles. Ao contrário, o ingresso na vida está fechado para todos os que ele quer entregar à condenação, e isso acontece em virtude de seu juízo oculto e incompreensível, embora justo e equânime” (Institution de la religion chrétienne, 1541, 7). Augustinus (164V) de Jansênio contém tese idêntica a esta sobre a graça (v. jansenismo).
2) O segundo ponto de vista foi formulado durante a Idade Média e está exposto, p. ex., na obra de Anselmo, Concordância da presciência da predestinação e da graça, de Deus com o livre-arbítrio (1109). Anselmo afirma que a predestinação de Deus leva em conta a liberdade humana, já que Deus não predestina ninguém violentando sua vontade, mas deixa sempre a salvação em poder do predestinado. Todavia, em virtude de sua presciência, ele predestina só aqueles cuja boa vontade conhece antecipadamente (De concordia prescientiae, etc. q. 2, 3). Solução análoga é dada por Tomás de Aquino: “A preparação do homem para a graça tem Deus como móbil, o livre-arbítrio como movimento. Ela pode ser considerada sob dois aspectos: no primeiro, depende do livre-arbítrio e não implica a necessidade de obter a graça porque o dom da graça excede qualquer preparação da virtude humana; no segundo aspecto, tem Deus como móbil e implica a necessidade de obter a graça que é determinada por Deus, embora não se trate de uma necessidade proveniente de coação, mas da infalibilidade, porquanto a intenção de Deus não pode deixar de ter efeito” (S. Th., III, q. 112, a 3). No período da Contra-Reforma, Luís de Molina, no texto Liberi arbitri cum gratiae donis, divina praescientia, providentia, praedestinatione et reprobatione concórdia, voltou a propor a solução tomista, distinguindo a graça suficiente, dada a todos os homens como condição necessária da salvação, da graça eficaz, que é infalível e segue a boa vontade humana. Em realidade esta e análogas distinções só servem para justificar o caráter não rigorosamente determinante da graça, no sentido de que, em todo caso, ela deixa a salvo a liberdade humana e, com isso, também deixa aos réprobos (e somente a eles) a responsabilidade de sua condenação. Toda a disputa gira em torno do significado de liberdade), e, já que ambas as partes consideram a liberdade como auto-causalidade — mas nenhuma delas considera tal causalidade — primária ou absoluta —, a substância da disputa reduz-se a bem pouco do ponto de vista conceptual. Para uma ou outra doutrina, a causa primeira de tudo, e, portanto, também da liberdade ou da salvação humana, é Deus. Contudo, essa disputa não é realmente conceptual, mas religiosa ou eclesiástica. A defesa de certo grau de liberdade humana em relação à graça tende a acentuar a importância da ação mediadora da Igreja, na qual o homem sempre pode achar, desse ponto de vista, a concessão compreensiva da graça, ou seja, a ajuda sobrenatural para a salvação. Por outro lado, a acentuação do caráter determinante ou necessitante da graça tende a colocar o homem diretamente diante de Deus e de sua vontade inescrutável, já que o pecado, desse ponto de vista, não pode ser remido por ação mediadora, mas, ao contrário, é sinal evidente de não-concessão da graça, portanto, da futura condenação. Entende-se por que este segundo ponto de vista, assim como ocorreu com o jansenismo, surge no próprio seio do catolicismo quando, em nome de certo rigorismo moral, se deseja insistir na gravidade do pecado e não se está disposto a considerá-lo um obstáculo fácil à salvação. [Abbagnano]
O dom gratuito, favor feito por pura benevolência. — Em teologia, participação na vida divina. O problema teológico da graça é saber se ela pode ser o resultado do aperfeiçoamento interior ou da conduta virtuosa do homem (concepção católica), ou se é absolutamente independente de nossos esforços, um mero socorro de Deus no qual não temos participação, uma espécie de destino (concepção protestante, que foi também a do jansenismo). O problema é, pois, saber o que faz a “eficácia” da graça: a cooperação do homem ou o concurso divino. A graça constitui o único “milagre” de que se pode propriamente falar, sendo interior o verdadeiro milagre, o da conversão (e não os milagres exteriores, que podem simplesmente tocar a imaginação e permanecem sempre sujeitos à caução). [Larousse]