Filosofia – Pensadores e Obras

Malebranche

MALEBRANCHE (Nicolas de), filósofo cartesiano francês (Paris 1638 — id. 1715). Estudante da Sorbonne e padre em 1664, descobriu tardiamente sua vocação filosófica ao ler, por acaso, o Tratado do homem, de Descartes. Publicou em 1674 o primeiro volume da Procura da verdade, que suscitou considerável interesse. Em seguida escreveu, principalmente, as Conversações cristãs (1676), o Tratado da natureza e da graça (1680), os Entretenimentos sobre a metafísica e a religião, completados em 1696 pelos Entretenimentos sobre a morte. Sua filosofia da religião, suas discussões sobre pontos da teologia estão longe de atingir o interesse universal de sua teoria do verbo e do fundamento do conhecimento (“na extensão inteligível”), que é uma das mais penetrantes que existem: essa doutrina situa-se entre a teoria cartesiana, cujo centro é a livre órbita do homem (humanismo), e a teoria spinozista, cujo centro é a participação em Deus (panteísmo). O essencial de sua doutrina, nesse ponto, acha-se exposto por Joseph Moreau na introdução à Correspondência com Dortous de Mairan. Os principais discípulos de Malebranche, nos séculos XVII e XVIII foram, inicialmente, os amigos do filósofo: o P. Thomassin, o P. Bernard Lamy, o P. Roche, Lelevel, Fidé; defenderam sua doutrina contra as correntes empiristas vindas da Inglaterra. [Larousse]


Descartes foi um sábio. Malebranche foi um crente. Nestas duas palavras resume-se talvez o segredo dos dois homens e do seu desacordo. Não que Descartes não tenha crido, nem que Malebranche não tenha sabido, mas o primeiro pela sua ciência, e a título acessório, empenhou-se em explicar a sua crença — ou, pelo menos, em demonstrar que não a contradizia, ao passo que o segundo quis reduzir toda ciência à sua crença.

Viveu em Paris, de 1638 a 1715, uma existência sem incidentes dramáticos e dedicada principalmente à meditação. Seu pai era financeiro. Nascera com um leve desvio da coluna vertebral e foi sempre de saúde delicada, o que não prejudicou, porém, o seu destino de filósofo.

Estudou no Colégio da Marche, depois na Sorbona, e aos vinte e um anos entrou para a Congregação do Oratório. Seus mestres lhe causaram a mesma decepção que a Descartes, conquanto a manifestasse com menos violência. O Pe. André, seu biógrafo, tem a esse respeito uma bonita passagem: “Na filosofia, que depende exclusivamente da razão, queriam que se contentasse com a autoridade de Aristóteles; e na teologia, que só se deve apoiar na autoridade divina, era preciso contentar-se com raciocínios que, de ordinário, nada tinham de razoáveis23.”

Sua revelação filosófica foi o acaso de uma leitura do Tratado do homem de Descartes. Mais adiante veremos o que aí descobriu. Isso o levou a fazer meditações em que aliás completava ou retificava Descartes por Santo Agostinho, e o resultado foi a Busca da verdade, publicada em 1674. No ano seguinte apareceram os Esclarecimentos e em 1699 era ele eleito para a Academia das Ciências. Eis aqui os títulos de suas outras obras principais: Meditações para dispor-se à humildade e à penitência (1677); Tratado da natureza e da graça (1680, ‘); Meditações cristãs e metafísicas (1683); Tratado de moral (1684); Tratado do amor de Deus (1687); Palestras sobre a metafísica e a religião (1688).

Foi bem o autor de sua obra. Não só esta lhe exprime com exatidão o pensamento e o sentimento mas desvenda também a natureza do seu espírito, um espírito meditativo, não propriamente místico mas voltado para as coisas de Deus, colocando-as sempre em primeira plana e chegando a fazer delas a substância de tudo. Numa especulação audaz elevou-se ao mais sutil exercício da inteligência, que no entanto conservava submetida à disciplina tomada de empréstimo ao seu predecessor, e a sua , longe de esfriar, exaltava-se nessas pesquisas em que ele a conduzia ao mesmo tempo que se deixava conduzir por ela. Era de resto um homem excelente, dotado de coração generoso, apesar de algumas singularidades, e mesmo um santo homem: expirou ao cabo de sofrimentos suportados com a maior coragem.

O sistema. — O que Malebranche descobriu nesse Tratado do homem que o deslumbrava foi, além do método, uma sua consequência que se revestia, para ele, de capital importância: a distinção radical do sensível e do inteligível, do corpo e da alma, da substância pensante e da substância extensa, que ele ia retomar por sua conta e conduzir a novos rumos. Do problema que o preocupava, isto é, o que dizia respeito às relações simultaneamente necessárias e impossíveis entre o homem e Deus, não lhe tinham sido propostas senão soluções pouco satisfatórias; apercebia-se de que a Escola não fizera mais que emaranhá-lo em palavras. O próprio Descartes não tratava dele expressamente e, quando entravam em jogo os grandes valores divinos que formavam o fundo da sua religião, esse discípulo, tão fiel no entanto, confessava que era preciso corrigi-lo ou completá-lo com Santo Agostinho.

Havia estabelecido o mestre que as Ideias, sobretudo as ideias primeiras de universalidade, de infinidade, de suma bondade e de onipotência, das quais ele derivava todas as demais, não podiam vir à alma pelo corpo nem ser engendradas pela alma, e portanto era necessário que se originassem numa fonte divina. O papel de Malebranche foi mostrar que elas se encontravam efetivamente nessa fonte, como ali se encontravam e de que maneira se comunicavam à inteligência humana.

“É indubitável”, escreve ele, “que antes de ser criado o mundo não existia senão Deus, que ele não pôde produzi-lo sem conhecimento e sem ideia e, por conseguinte, essas ideias que Deus teve do mundo não diferem dele próprio, e assim todas as criaturas, inclusive as mais materiais e as mais terrestres, estão em Deus, embora de uma forma toda espiritual que não podemos compreender. Deus vê, portanto, todos os seres no interior de si mesmo ao considerar as suas próprias perfeições que os representam 2V

É a visão em Deus. Não se trata de uma concepção absolutamente nova, pois reconhecemos aí a ideia platônica e agostiniana do Inteligível, de Deus bastando a tudo e a si próprio. Mas é expressa com uma precisão particularmente nítida e devia trazer consigo consequências que, estas sim, seriam originais.

A questão da origem e da natureza das ideias é eterna e vai entroncar no velho debate do nominalismo versus realismo. Isto é evidenciado pela oposição que Malebranche encontrou em Arnauld, oposição que não teria sido de todo desinteressada. Arnauld, ao que parece, começara por aplaudir, mas sucedeu que Malebranche teve de pronunciar-se contra Port-Royal e até, pelo seu Tratado da natureza e da graça, reconduziu um jansenista ao bom caminho. Arnauld escreveu pois, em 1683, um tratado Das ideias verdadeiras e das falsas, a que Malebranche respondeu no ano seguinte. O Pe. André, que nos relata o caso em pormenores, resume muito bem a dupla argumentação:

“O Pe. Malebranche afirma que as ideias são realmente distintas das percepções, que subsistem independentemente dos nossos espíritos na substância divina, que é Deus que no-las comunica quando isso lhe apraz, tornando-se, dessa forma, a nossa verdadeira luz…

“O Sr. Arnauld sustenta, pelo contrário, que as ideias não passam de modificações da nossa alma, que não são realmente distintas das percepções, dos pensamentos e até dos sentimentos mais obscuros e confusos; numa palavra, que as nossas percepções são essencialmente representativas e, por conseguinte, que todas as nossas modalidades são luminosas por si mesmas.”

A controvérsia prosseguiu sob as vistas irônicas de Bayle, que marcava os golpes. As respostas de Malebranche eram significativas. Opunha ele cinco “provas”.

“A primeira”, prossegue o Pe. André, “é deduzida da ideia do infinito, que possuímos com toda a certeza e que não pode ser uma modificação da alma, que é finita”; a segunda é uma concepção muito clara da distinção que fazemos entre a alma e a extensão; a terceira estabelece que o universal, não podendo ser deduzido da alma, deve preexistir nesta; a quarta recorda que somente Deus pode ser a sede de toda perfeição; a quinta invoca Santo Agostinho, para quem a alma não é a sua própria luz mas apenas “o olho capaz de contemplar a luz.”

Transparecem aqui os grandes argumentos cartesianos. Arnauld sustentava ao contrário (e aqui está o nó do problema) que “as ideias que representam as coisas não são distintas das percepções”, sendo-lhe respondido que isto continha uma petição de princípio, pois admitia o que era preciso provar. “Eu digo”, concluía Malebranche, “que se vê Deus em todas as coisas; o Sr. Arnauld diz, ao contrário, que a alma lhe conhece a verdade porque tal é a sua natureza.”

Embora a vantagem se inclinasse para o lado de Malebranche, a questão não estava resolvida e bem sabemos que não podia sê-lo. Tem reaparecido sob diversas formas em todos os tempos. Se desta vez recebia uma resposta de ordem mais mística que a filosófica, também lucrava em ser formulada com mais clareza e em levar a considerações de índole moral ou religiosa que serviam de ocasião para enriquecimento do espírito.

O fato de colocar toda a realidade em Deus tinha, com efeito, as suas consequências. Fazia voltar a uma teoria da “participação”, e o próprio filósofo é textual a respeito. “As ideias”, diz ele ainda, comentando Santo Agostinho, “estão em Deus; portanto… nada mais são do que a essência divina na medida em que as criaturas humanas podem imitá-la ou participar dela…”.” O Inteligível, como queria Platão, é a única realidade original e formal, e as realidades derivadas não subsistem ou não se aperfeiçoam senão na medida em que se aproximam dele. “Em Deus”, dizia o poeta grego citado por S. Paulo, “vivemos, movemo-nos e somos.”

Se tudo vem de Deus, não virá também dele o movimento? Vem efetivamente, e é ele que modela o vasto e complicado mecanismo ordenador da substância extensa. A substância extensa, a natureza, é assim encadeada por forças fatais; sofre-lhes a ação, que lhe vem de fora e não existe nela nenhum princípio capaz da produzi-las. Tudo se explica, no encadeamento dos fenômenos, pela interdependência dos fenômenos.

Mas sucederá o mesmo com a alma, com a substância pensante, e não teremos então vontade própria? Sim, sem dúvida, mas veja-se como Deus continua a estar presente mesmo em nós. Somos nós que queremos, mas é ele que age em nós por ocasião das nossas volições. Se quero mover o braço, por exemplo, sou de fato eu que tomo a decisão; mas, uma vez tomada, é ele que se insere no meu querer e move o meu braço. Eis aí a famosa teoria das causas ocasionais.

É tão audaciosa quanto engenhosa; nada tem de absurdo ou de propriamente fictício e favorece a marcha da meditação nessas profundezas que se vão tornado obscuras à medida que avançamos. Limitar-nos-emos a acrescentar aqui que ela se liga ao idealismo do sistema cartesiano e à separação radical das duas substâncias, separação apresentada como única forma de conciliá-las, e que resolve, pelo conjunto do sistema, uma dificuldade que Descartes havia resolvido de forma diversa.

Se existe efetivamente uma fatalidade cósmica, ou se pelo menos o mecanismo do universo é tão invariável e perfeito, que necessidade haverá de Deus uma vez dado o impulso inicial? Não poderá o mundo andar sem ele? Descartes respondera com a teoria da “criação contínua”, que reintroduzia no mundo a necessidade da presença e da ação divinas. A dupla hipótese — a palavra “hipótese” corre por nossa conta — a dupla hipótese da visão de Deus e das causas ocasionais trazia um complemento e um aprofundamento notáveis à doutrina.

Restava um último problema que desta vez não seria resolvido, o da alma dos animais. Existe algo de inteligível nos animais, e de que maneira se comporta? ou serão eles puramente mecânicos? Neste ponto Descartes parece incerto e Malebranche resoluto. Como desse um pontapé a um cão e os presentes se admirassem de tal desumanidade, teria respondido: “Como, então não sabem que isso não sente?” A anedota não está muito de acordo com o seu caráter, mas podia acaso fugir a semelhante consequência? La Fontaine, compassivo, propôs para os seus amigos uma alma inferior, uma alma de segunda classe, mas o Inteligível comportará tal hierarquia?

Isto nos leva a considerar a psicologia e a moral de Malebranche. Participam igualmente da sua dupla qualidade de cartesiano e de cristão, e podemos ver a vida que este empresta àquele. Embora substância pensante, a alma não é a ideia. É um ser espiritual que tudo recebe do Ser e que tem tanto mais ser quanto mais participa do Ser. Mas por outro lado está unida e ligada a um corpo de forma tão rigorosa que, de acordo com o sistema, se deveria dizer justaposta — e é todo o composto humano que vive, que age e que sofre, tendo o físico sobre o moral uma ação menos pormenorizada talvez do que no Tratado das paixões, mas muito mais íntima e eficaz. É essa união tão estrita das duas partes do composto que constitui propriamente o indivíduo; é essa qualidade divina do inteligível que dita uma moral cujos princípios serão exatamente os da moral cristã: o desapego do sensível para lograr acesso ao inteligível e a procura desse Deus de quem se recebe tudo, inclusive a própria existência.

Não se pode explicar plenamente a filosofia de Malebranche senão à luz da sua crença. Já é significativa essa intenção moral que ele coloca em primeiro plano. O objetivo de Descartes é o saber; o de Malebranche é a salvação; e percebemos, ao compará-los, que tudo se resume nesta oposição, ou pelo menos neste matiz. Ambos se propõem como tarefa a “busca da verdade” e ambos chegam a Deus: para Descartes este Deus é uma conclusão, para Malebranche é uma intuição primeira, a própria substância da verdade. O dado inicial, se assim se pode dizer, já não é “Penso, logo existo”, mas “Penso, logo Deus existe” — e este Deus é na verdade um Deus particular e pessoal, o Deus dos cristãos. Por que, por exemplo, a alma criada por ele permanece, sem ele, ainda obscura a si própria? É porque foi maculada pelo pecado original.

Sem embargo de tudo isso, podemos estar seguros de que o cristão permanece um homem estreitamente submetido às condições humanas, o composto alma-corpo, o homem de Descartes, numa palavra. Malebranche não é um místico ou não procede por vias místicas, como bem o demonstra a posição que tomou contra certo misticismo da sua época, o quietismo. No admirável Tratado do amor de Deus insurge-se contra a opinião segundo a qual esse amor, para ser perfeitamente desinteressado, deve despojar-se de toda espécie de prazer, pretendendo que cada um esteja mesmo preparado para consentir na sua própria condenação caso esta entre nos planos da Providência. Denuncia o sofisma que há nesta última loucura. É o desejo de gozar de Deus, diz ele em substância, que nos faz procurar a Deus, e portanto não pode haver posse de Deus sem prazer. Sujeitos à condição humana, não podemos amar senão dentro desta condição: “O prazer é o motivo do amor”.

Apenas, acrescenta: “não se deve amar senão a Deus, senão àquele em quem reconhecemos claramente a verdadeira causa…” E assim Malebranche reentra no seu sistema: Deus, o único amor por ser a única realidade, a única ação, a única presença. Vemos destarte a sua filosofia coroar-se com a teologia, que é aliás o termo de toda filosofia. [Truc]


Nicolau Malebranche (1638-1715) influído pela obra de Descartes, discordou deste quanto à possibilidade do conhecimento certo da substancialidade do eu pensante. O conhecimento apenas pode ater-se à substância extensa e através das suas modalidades pode conhecer-se, parcialmente, as modalidades que se referem à alma. Desta forma, toda atividade da alma se acha relacionada com os fenômenos corporais e sensíveis.

O corpo, como extensão, não tem capacidade de modificar-se por sisi mesmo. Deus é a única causa eficiente das modificações do corpo, dos movimentos deste, como das modificações que se processam na alma. Assim, Deus contém em sua essência, todas as finitudes, e também todas as infinitudes particulares. [MFS]