Filosofia – Pensadores e Obras

disciplinas filosóficas

Já se disse, cum grano salis, que a filosofia é, de certo modo, tudo. Assim, ao lado das disciplinas filosóficas tradicionais, poderiam perfilar inumeráveis outras, legítimas ou estapafúrdias, como, por exemplo, filosofia da medicina ou filosofia do capitalismo ou filosofia da culinária ou filosofia do automobilista etc. etc.

Desde Aristóteles registra a história da filosofia a constituição de diversas disciplinas filosóficas, como a lógica (ainda que considerada um “instrumento” e não uma parte), a ética, a estética (poética), a psicologia (doutrina da alma), a filosofia política e a filosofia da natureza (física). Todas elas estão dominadas pela filosofia primeira ou metafísica. Essas mesmas disciplinas são reunidas em grupos de mais amplo conteúdo, tais como ciências teóricas, ciências práticas e ciências poéticas (ou produtivas), com a lógica como órgão ou instrumento. Outra classificação, adotada pelos estoicos, é: lógica, física e ética. Em tudo isso se percebe uma classificação das disciplinas filosóficas em metodológicas, teóricas e práticas, que teve singular fortuna no pensamento do Ocidente e que persistiu até quase nossos dias.

Durante grande parte da época moderna até hoje foram realizados muitos esforços para apresentar a filosofia em diversas disciplinas sistematizadas. Uma destas apresentações é a que, com diversas variantes, foi adotada pela escola de Wolff e depois por muitos escolásticos — ou neoescolásticos —: filosofia teórica (subdividida em lógicaformal e material — e metafísica — geral ou filosofia primeira ou ontologia; especial ou teologia, cosmologia e psicologia racionais) e filosofia prática (principalmente ética). A isso se acrescentou, depois, a criteriologia como teoria do conhecimento. Outra destas apresentações foi a adotada e muito usada entre os idealistas alemães do século XIX: lógica (metafísica), filosofia da natureza e filosofia do espírito.

Assim, cada um dos filósofos importantes ofereceu seu próprio sistema de divisão das disciplinas filosóficas. Em geral, porém, podemos dizer que até fins do século XIX, e em particular para fins didáticos, consideram-se como disciplinas filosóficas a lógica, a ética, a gnosiologia, epistemologia ou teoria do conhecimento, a ontologia, a metafísica, às vezes a criteriologia, a psicologia, com frequência a sociologia, e ainda um conjunto de disciplinas tais como a filosofia da religião, do Estado, do direito, da história, da natureza, da arte, da linguagem, da sociedade etc. etc. assim como a história da filosofia. Desse conjunto umas saíram, outras entraram, como é o caso da psicologia, que não é incluída dentro do sistema das disciplinas filosóficas, ou então se é incluída é eliminada a psicologia experimental, conservando-se apenas a chamada, às vezes, psicologia teórica e outras vezes psicologia filosófica. O mesmo destino teve a sociologia. Uma das disciplinas que voltaram foi a ontologia, enquanto tende a sair a lógica, especialmente como logística, que para alguns deveria ser eliminada do quadro filosófico e passar a formar parte da matemática. Por sua vez, novas disciplinas fizeram-se anunciar, como por exemplo a teoria dos objetos, a fenomenologia, a antropologia filosófica, a semiótica (e seus ramos: sintaxe, semântica e pragmática), assim como disciplinas diversas acerca das ciências especiais: filosofia da física, da biologia, da educação etc. etc. Tudo isso formulou de novo o problema de se a filosofia é simplesmente uma matriz das ciências (que, depois, vão se tornando independentes de sua origem comum) ou de se tem que englobá-las a todas, adotando um ponto de vista distinto das ciências. Para José Ferrater Mora “uma única conclusão parece certa se adotamos o método da indução histórica: que a filosofia possui um grau de flexibilidade maior que nenhum outro conhecimento humano”. Daí a filosofia ser, de certo modo, tudo. [LWVita]


De modo que há um processo de desprendimento. As ciências particulares vão se constituindo com autonomia própria e diminuindo a extensão designada pela palavra “filosofia”. Vão outras ciências saindo, e então, que resta? Atualmente, de modo provisório e muito flutuante, poderemos enumerar do seguinte modo. as disciplinas compreendidas dentro da palavra “filosofia”. Diremos que a filosofia compreende a ontologia, ou seja a reflexão sobre os objetos em geral; e como uma das partes da ontologia, a metafísica. Compreende também a lógica, a teoria do conhecimento, a ética, a estética, a filosofia da religião, e compreende ou não compreende — não sabemos — a psicologia e sociologia; porque justamente a psicologia e a sociologia estão neste momento na alternativa de se separarem ou não da filosofia. Ainda há psicólogos que querem conservar a psicologia dentro da filosofia; mas já há muitos outros, e não dos piores, que querem constituí-la em ciência à parte, independente. Pois o mesmo acontece com a sociologia. Augusto Comte, que foi quem deu nome a esta ciência (e ao fazê-lo, como diz Fausto, deu-lhe vida), ainda considera a sociologia como o conteúdo mais importante e seleto da filosofia positiva. Mas outros sociólogos a constituem já em ciência à parte. Há discussão. Não vamos nós resolver por enquanto esta discussão o assim diremos que em geral todas as disciplinas e estudos que enumerei: a ontologia, a metafísica, a lógica, a teoria do conhecimento, a ética, a estética, a filosofia da religião, a psicologia e a sociologia, formam parte e constituem as diversas províncias do território filosófico.

Podemos perguntar-nos o que há de comum nessas disciplinas que acabo de enumerar; que é o comum nelas que as faz incluir dentro do âmbito designado pela palavra “filosofia”; que têm de comum para ser todas parte da filosofia. O primeiro e muito importante que têm de comum é que todas são o resíduo desse processo histórico de desintegração.

A História pulverizou o velho sentido da palavra “filosofia”. A História eliminou do continente filosófico as ciências particulares. O que restou é a filosofia. Esse fato histórico, apesar de ser somente um fato, é muito importante. É já uma afinidade extraordinária a que mantém entre si essas disciplinas, só pelo fato de serem os resíduos desse processo de desintegração do velho sentido da palavra “filosofia”.

Mas aprofundemos-nos mais no problema. Por que ficaram dentro da filosofia essas disciplinas? Vou responder a esta pergunta de uma maneira muito filosófica, que consiste em inverter a pergunta. Como disse muitas vezes Bergson, uma das técnicas para definir o caráter de uma pessoa consiste não somente em enumerar o que prefere, mas também, e sobretudo, em enumerar o que não prefere; do mesmo modo, em vez de perguntarmos por que sobreviveram filosoficamente estas disciplinas, vamos perguntar-nos por que foram embora as matemáticas, a física, a química e as demais. E se nos perguntarmos por que se desprenderam, encontramos o seguinte: que uma ciência se desprendeu do velho tronco da filosofia quando conseguiu circunscrever um pedaço no imenso âmbito da realidade, defini-lo perfeitamente e dedicar exclusivamente sua atenção a essa parte, a esse aspecto da realidade. [Morente]