VIDE contradição; princípio de não-contradição
(lat. Principium contradictionis; in. Principle of contradiction; fr. Principe de contradiction; al. Satz der Widerspruchs; it. Principio di contraddizione).
Tendo nascido como princípio ontológico, o princípio de contradição só passou para o campo da lógica no séc. XVIII, para tornar-se, nesse mesmo século, uma das “leis fundamentais do pensamento”. Como princípio ontológico, foi admitido explicitamente, pela primeira vez, por Aristóteles, que o tomou como fundamento da “filosofia primeira”, ou metafísica. Segundo Aristóteles, esse princípio serve, em primeiro lugar, para delimitar o domínio próprio dessa ciência, permitindo abstrair o seu objeto, o ser como tal, de todas as determinações às quais está ligado, do mesmo modo como os axiomas da matemática e da física permitem abstrair seus objetos (respectivamente a quantidade e o movimento) de outras determinações às quais estão ligados (Mel, IV, 3). Aristóteles, porém, constantemente formula esse princípio de duas maneiras. Uma é estreitamente ontológica, e se expressa assim: “Nada pode ser e não ser simultaneamente” (Ibid, III, 2, 996 b 30; IV, 2, 1005 b 24); a outra poderia ser chamada de lógica e se expressa assim: “E impossível que a mesma coisa, ao mesmo tempo, seja inerente e não seja inerente a uma mesma coisa sob o mesmo aspecto” (Ibid., IV, 2. 1005 b 20), ou então: “É necessário que toda asserção seja afirmativa ou negativa” (Ibid., III, 2, 996 b 29). Aristóteles considera esse princípio indemonstrável, mas acha que pode ser defendido de seus opositores, entre os quais os megáricos, os cínicos, os sofistas e os heraclitistas, mostrando-se que, se eles afirmam algo de determinado, negam a negação desse algo e assim se valem desse princípio (Ibid., IV, 4). Portanto, o valor desse princípio é estabelecido por Aristóteles em relação ao que é determinado. “Se a verdade”, diz Aristóteles, “tem um significado, necessariamente quem diz homem diz animal bípede, já que isso significa homem. Mas se isso for necessário não será possível que o homem não seja animal bípede, pois a necessidade significa justamente que é impossível que o ser não seja” (Ibid., IV, 4, 1006 b 28). Assim, o princípio de contradição, referindo-se ao ser determinado, permite abstrair desse ser o que há de necessário: a substância ou a essência substancial: no exemplo do homem, o animal bípede é precisamente a substância, a essência substancial ou a definição do homem. Desse modo, o princípio de contradição leva a considerar a filosofia primeira, que é a ciência do ser enquanto ser, como teoria da substância. Diz Aristóteles: “O que há muito tempo, agora e sempre procuramos, o que sempre será um problema para nós, ou seja, ‘o que é o ser’, significa ‘o que é a substância?’” (Ibid., VII, 1, 1028 b 2). O significado que o princípio de contradição tem na metafísica de Aristóteles realiza-se, pois, nas noções fundamentais dessa metafísica, que são as de substância, de essência necessária e de causa (v. causalidade). Mas para Aristóteles, esse princípio também possui alcance lógico. Ele diz que, embora o princípio de contradição não seja assumido expressamente por nenhuma demonstração, é a base do silogismo na medida em que, considerando-se a noção de homem ou a de não-homem, desde que se admita que o homem é um animal, sempre resultará verdadeiro afirmar que Cálias é animal e não um não-animal; diz que ele é o fundamento da redução ao absurdo (An. post., I, 11, 77 a 10). A estrutura silogística é assim sustentada, tanto na sua forma positiva quanto na negativa, pelo princípio de C: o que não causa espanto, dado que para Aristóteles a estrutura silogística reproduz a estrutura substancial do ser (v. silogismo).
Na forma dada por Aristóteles, esse princípio permaneceu muito tempo como fundamento da metafísica clássica. As discussões do séc. XIII sobre o modo de expressá-lo com mais simplicidade e economia redundaram na formulação daquilo que depois se chamou de princípio de identidade, mas não abalaram a supremacia do princípio de contradição Descartes (Princ. phil., I, 49) e Locke (Ensaio, I, 1,4) ainda o admitiam como verdade indubitável, mas já ignoravam completamente seu valor ontológico, que, para Aristóteles, era primordial. Mas foi Leibniz quem levou o princípio de contradição de uma vez por todas para a esfera da lógica, considerou-o exclusivamente fundamento das verdades de razão, enquanto dizia que as verdades de fato baseavam-se no princípio de razão suficiente (Monad., §§ 11-32). Segundo Leibniz, esses dois princípios constituíam a base de todas as verdades e, portanto, de todo o edifício do conhecimento humano (Nouv. ess., IV, 2, 1). Wolff ainda incluía o princípio de contradição na ontologia, mas considerava-o como um princípio natural da mente humana (Ont, § 27). E Baumgarten encontrava a sua fórmula clássica: A + não-A = 0, chamando-o de princípio absolutamente primeiro e colocando-o à frente de sua ontologia (Mel, § 7). Kant preferia exprimi-lo num de seus primeiros textos com fórmula: “Aquilo cujo oposto é falso é verdadeiro” (Principiorum Primorum Cognitionis Metaphysicae Nova Dilucidatio, 1755,1, prop. II, scol.). Mais tarde, em Crítica da Razão Pura, dizia: “A coisa nenhuma convém um predicado que a contradiga” e considerava-o “princípio geral plenamente suficiente de todo conhecimento analítico”, eliminando dele, porém, a determinação temporal contida na expressão aristotélica; porque, dizia ele, “enquanto princípio simplesmente lógico, não deve limitar suas expressões às relações de tempo” (Crít. R. Pura, Analítica dos Princípios, cap. II, séc. I). Esse era substancialmente o ponto de vista de Leibniz. Depois de Kant, o princípio de contradição foi considerado uma das “leis fundamentais do pensamento” (KRUG, Logik, 1832, p. 45; FRIES, System der Logik, 1837, p. 121; HAMILTON, Lectures on Logic, I, p. 72), qualificação honrosa que distinguiu durante muito tempo os princípios lógicos e que às vezes ainda é empregada.
Um retorno ao uso metafísico do princípio de contradição ocorreu com Fichte e com Hegel. Tratava-se então da metafísica subjetivista do idealismo, para a qual nada existe fora da autocons-ciência racional. Fichte chamava o princípio de contradição “princípio da oposição”, expressando-o com a fórmula “- A não = A” (que se lê “não – A não igual a A”), que julgava exprimir o ato pelo qual o Eu opõe a si mesmo um não-Eu, isto é, uma realidade ou uma coisa (Wissenschaftslehre, 1794, § 2). Hegel considerava o princípio de contradição, e o de identidade, como “a lei do intelecto abstrato” (Ene, § 115). E contrapunha-lhe a lei da “razão especulativa”, que seria: “Todas as coisas se contradizem em si mesmas”. Essa lei seria a raiz de qualquer movimento e da vida, servindo de fundamento para a dialética (Wissenschaft der Logik, ed. Glockner, I, pp. 545-46). Por outro lado a dialética é a identidade dos opostos, de tal modo que a contradição, conquanto seja a raiz da dialética (do movimento e da vida), não é à dialética, que, aliás, procede continuamente, conciliando e resolvendo as contradições e estabelecendo para além delas o que o próprio Hegel chama de identidade ou unidade (d. Wissenschaft der Logik, I, p. 100). No mesmo sentido, Gentile falava do princípio de identidade como da “lei fundamental do pensamento” no campo da “lógica do abstrato” (Sistema di lógica, 1922, II, 1, § 6), ao mesmo tempo em que falava da unidade do Espírito consigo mesmo e com a realidade. Essas e outras críticas semelhantes ao princípio de contradição (assim como aos outros princípios lógicos) são inconcludentes. Por um lado, visam a um uso muito mais dogmático e metafísico desses princípios, pois tendem a utilizá-los para explicar “o movimento e a vida” da realidade inteira. Por outro, o algo das críticas são moinhos de vento, pois, quando Leibniz e Kant afirmavam que o princípio de contradição é o fundamento das verdades idênticas ou analíticas, não pretendiam dizer que ele é o fundamento de verdades do tipo “um planeta é um planeta”, “o magnetismo é o magnetismo”, “o espírito é o espírito”, como julgava Hegel (Ene, § 115), mas aludiam às verdades matemáticas e lógicas redutíveis a tautologias.
No entanto, coube à lógica matemática moderna renunciar a considerar os princípios lógicos como princípios da lógica ou mesmo como “leis fundamentais do pensamento”. Já na obra de G. Boole (Laws of Thought, 1854), os princípios lógicos desapareceram como axiomas da lógica e foram substituídos, nessa função, pela definição das operações lógicas fundamentais, cujos modelos são as operações da aritmética. Boole considerava o princípio de contradição como um teorema derivado de uma expressão lógica mais fundamental (Ibid., cap. III, IV, ed. Dover, p. 49). A partir de Boole, os princípios assumidos como fundamento da lógica são simplesmente as definições de funções, constantes lógicas, variáveis lógicas, conectivos e operadores. Os chamados princípios lógicos que ainda são honrados às vezes com o nome de “leis” reduzem-se a tautologias no cálculo das proposições (cf., p. ex., REICHENBACH, The Theory of Probability, § 4), ou a teoremas do mesmo cálculo (cf., p. ex., A. CHURCH, Introduction to Mathematical Logic, § 26, 13).
Isso não quer dizer que a consistência formal de um discurso, ou seja, a compatibilidade recíproca das asserções que o constituem, tenha perdido importância. Significa apenas que, para cada sistema linguístico, essa compatibilidade é definida pelas regras de transformação ou de inferência, de implicação ou de sinonímia explicitamente adotadas no próprio sistema ou às quais se faz referência tácita. O princípio de tolerância, na forma dada por Carnap, afirma: “Não”nos cabe impor proibições, mas só chegar a convenções”. Isso significa que “em lógica não há moral e que cada um está livre para construir sua própria lógica, isto é, sua forma de linguagem, como desejar. Tudo o que deve fazer, se quiser discutir o assunto, é declarar claramente seus métodos e, em vez de argumentos filosóficos, dar as regras sintáticas do seu discurso” (CARNAP, The Logical Syntax of Language, § 17). [Abbagnano]