(do lat. solus, sozinho e ipse, si mesmo).
atitude ou doutrina daquele que se separa do mundo e que submete toda realidade à de seu “eu” individual. — O solipsismo é o estado do que duvida de tudo; o primeiro momento das Meditações de Descartes, em que o filósofo coloca em questão todas as evidências comuns, é o momento do solipsismo. O termo equivale ao de ceticismo. [Larousse]
É a doutrina que considera o indivíduo racional como o ponto de partida e de legitimação de tudo quanto há e existe. É, metafisicamente, uma variante viciosa do idealismo, que afirma que todo o fundamento do mundo externo e de toda realidade depende das representações do indivíduo, não tendo uma existência independente da mente humana. [MFSDIC]
É aquela espécie de idealismo que nada mais reconhece como certo do que o ato de pensar e o próprio sujeito. Tudo o mais é incognoscível ou incerto. O solipsismo teve representantes no século XVIII, os quais arvoraram em objeto único de conhecimento a proposição cartesiana “cogito, ergo sum”. No século XIX, aparece em Max Stirner, como reação contra Hegel e sua vigorosa acentuação do universal. Atualmente não é já ponto de vista meramente especulativo, mas egoísmo prático. O solipsismo não pode ser afirmado como doutrina susceptível de ser exposta, sem se contradizer a si mesma. Para mais ampla refutação. vide idealismo. — Santeler. [Brugger]
O solipsismo surge como uma consequência do corte entre o sujeito (visto como a pessoa) e o objeto como o mundo). O solipsismo é apenas indiretamente uma consequência do pensamento nominalista: um nominalista como Guilherme de Ockham jamais distingue, efetivamente, entre o “subjetivo” e o “objetivo”, e, em consequência, jamais surge em suas análises o problema do solipsismo. É difícil expor-se a tese solipsista. Ela afirma, pelo menos, que qualquer “conhecimento” “seguro” do mundo — da objetividade — é impossível. Em consequência, qualquer conhecimento “seguro” do outro — das outras pessoas que comigo coexistem no mundo — é impossível. Como um corolário, segue-se que a comunicação é essencialmente impossível, desde que a comunicação pressupõe um conhecimento “comum” entre os comunicantes — conhecimento este que a tese solipsista afirma impossível. Tomando-a em todas as suas implicações, a tese solipsista obriga a redução de todo o universo a um único sujeito pensante — aquele sujeito que reconhece fora de si a objetividade “inalcançável”. A análise solipsista é extremamente rigorosa, e só pode ser considerada se revelarmos os problemas implícitos nos seus axiomas fundamentais. O primeiro deles afirma: toda forma de conhecimento nos é dada através de sensações. Ora, as sensações são falhas — porque nos iludimos constantemente com elas, ao julgar violeta uma cor vermelha na penumbra, ou ao encontrar na multidão, enganosamente, a cara de um amigo que lá não estava, ou ao supormos real uma alucinação que nos tiver a febre causado. Logo, toda forma de conhecimento é falha. Mas, em particular, a existência ou não dos “outros” nos é feita conhecer através de sensações. Logo, o conhecimento que temos desta existência é falho, permitindo-nos dela duvidar. Implícito a esta sequência de silogismos está o segundo axioma que funda a análise solipsista: partindo-se das sensações, a lógica formal nos permite expandir nosso conhecimento. Ora, nem um axioma nem o outro são proposição analíticas, isto é, são proposições cuja verdade é óbvia, ou, com maior rigor, nenhum dos dois é uma proposição onde o sujeito contenha o predicado, assim implicando a veracidade do afirmado. Os dois axiomas que fundamentam a tese solipsista são juízos sintéticos a respeito da totalidade do existente, ou seja, são proposições metafísicas, postulando o apriorismo (a) das sensações como possibilidade do conhecimento e (b) da lógica formal como possibilidade da extensão do conhecimento. Em consequência, elucida-se como “sensação” é algo que foi abstraído de certas experiências perceptuais nossas, e que foi constituída em categoria fundamental. Não sendo diretamente percebida no mundo, a “sensação” é uma categoria duvidosa. Desta maneira, tudo que por ela for implicado é, também, duvidoso. Entre os quais tanto o próprio primeiro axioma quanto a tese solipsista. Quer dizer: os axiomas que levam à tese solipsista são auto-contraditórios. Por redução ao absurdo (uma proposição implicar sua negação implica logicamente a falsidade daquela proposição), a tese solipsista é falsa. Notemos como a redução ao absurdo exige que utilizemos o segundo axioma; tentemos mostrar sua falsidade à luz do primeiro axioma. Como este, o axioma do apriorismo da lógica como meio de conhecimento é um juízo sintético, isto é, não nos é diretamente revelado através de uma percepção direta e imediata das coisas. Muito pelo contrário. Séculos se necessitaram para que sistemas lógicos fossem desenvolvidos. Não se fundando diretamente no que é percebido, o axioma do apriorismo da lógica é falho. Como corolário, qualquer conhecimento que dele possa ser deduzido é, ao menos, duvidoso. Utilizamos a lógica neste último raciocínio para mostrarmos como a tese solipsista se auto-aniquila.
Nosso exercício de escolástica teve uma finalidade: sugerir o casuísmo implícito na tese solipsista. No entanto, esta tese foi por muitos sustentada; procuremos, portanto, a sua verdade através de uma análise existencial do problema que parece se esconder por trás do problema do solipsismo: o problema da solidão.
Análise existencial da solidão. Como em todos os verbetes teóricos de nossa autoria, referir-nos-emos, de início, à análise feita por Heidegger em Ser e Tempo. Heidegger mostra como nós só existimos no mundo como Mitsein, isto é, como o ser-com. Ser-com que, ou com quem? Com os outros. Um dos modos do ser-com é o ser-sozinho. Hajam ou não outros à nossa volta, nós somos o ser-com, isto é, existe em nós uma certa abertura, existencialmente apriorística, para os outros. Deste modo, o ser-sozinho é uma deficiência. A solidão é a paisagem de um momento da existência com o outro para um momento futuro de existência com um novo outro. É uma situação “instável”, ladeada pela lembrança do passado com uma pessoa querida, e tentada ou amargurada pelo desejo de um futuro com nova (ou a mesma) pessoa querida. O exercício da solidão exige energia, “força de vontade”; é uma violência contra o nosso modo-de-ser no mundo; o eremita fazia “exercícios espirituais”, “sacrificava-se” para manter a solidão imposta por seu voto. Mas a estrutura existencial da solidão não é caracterizada apenas pela ausência do outro; a presença de alguém a meu lado, se desconhecido, pode caracterizar para mim a para ele um duplo ser-sozinho. Nas filas de ônibus às seis da tarde, o ser-sozinho é comum a todos os que esperam condução. Na praia de domingo, quando chego à uma das tarde, sol brilhante, céu muito azul, e no meio das muitas centenas de pessoas quando só vejo uma conhecida, e pergunto, “como está a praia?”, muito possivelmente vou ter como resposta, “uma droga; não tem ninguém”. O “ninguém” é a ausência do outro que destrói a solidão, e, no caso, nenhuma das trezentas pessoas que nos cercam é capaz de nos destruir nossa solidão. Uma tentativa de elucidar o problema da destruição da solidão está na análise existencial da comunicação. Mais profundamente, Heidegger mostra como a experiência da solidão está ligada à angústia. Especificamente, “a angústia isola e abre a Dasein (i.e., nós) como “solus ipse”. E, adiante, analisando o sentimento de “estranheza” e “insegurança” no meio do mundo que a angústia nos causa, diz Heidegger, “a estranheza (Das Un-zuhause) deve ser compreendida existencial-ontologicamente como o fenômeno mais originário”. Estas são as duas características que apontamos na solidão: ela conduz à experiência de um solipsismo, de uma solidão dentro do mundo. Esta solidão é desvelada pela angústia, e junto com ela vem uma radical desvalorização, uma perda total de sentido das coisas que existem no mundo. Ora, já a angústia é causada por uma ausência; pela inexistência dentro do mundo de algo que desejamos, ou precisamos — e, em particular, do outro como companheiro ou como pessoa amada. Por outro lado, a angústia torna estranho o mundo: e como fundamento da experiência do ser-sozinho (que não é sempre experimentado como tal, na fila do ônibus ou na praia do encontro dos amigos; nestes dois casos, o ser-sozinho é encoberto pela expectativa do encontro da família em casa, ou da “turma” vinte metros à nossa frente), como fundamento de nosso auto-reconhecimento na solidão ela torna indesejável, inatural esta própria solidão, e exige que nós dela saiamos. Este imperativo da angústia pode se transformar num dilema que explica existencialmente, muitos casos de doenças mentais: a angústia junto ao reconhecimento da solidão exige o relacionamento ao outro. Tentando-se estabelecer este relacionamento, a tentativa é bloqueada pela angústia que permanece e que revela o outro como inalcançável, no mesmo gesto que tenta o alcance como “sem sentido”, “absurdo”. Em consequência surge a “doença mental” como desistência de alcançar o outro. Pelo menos uma tentativa séria já foi feita, no sentido de se compreender a doença mental como recusa à comunicação, ou como comunicação fictícia, e parece ter havido sucesso com a terapia de se tentar revelar a possibilidade do estabelecimento de uma ligação ao outro.
Existencialmente, portanto, o solipsismo tem uma verdade irrespondível.
Reconsiderando dentro da fenomenologia o problema, Maurice Merleau-Ponty mostra como o solipsismo é uma verdade, mas como a construção de uma filosofia solipsista pressupõe um auditório capaz de ouvi-la: o paradoxo está no fato da recusa à comunicação ser também um modo de comunicação, desde que ela pressupõe um outro a quem nos recusamos. A solidão como modo de comunicação será considerada na análise existencial da comunicação, onde será vista como o surgimento da pluralidade do “outro” leva a um falseamento da comunicação, e eventualmente ao solipsismo. (Francisco Doria – DCC).