Filosofia – Pensadores e Obras

argumento ontológico

Desde Kant, assim se denomina uma prova da existência de Deus (provas da existência de Deus), primeiramente apresentada por S. Anselmo de Cantuária, a qual, sem quaisquer outras pressuposições, procura demonstrar a existência de Deus, baseando-se exclusivamente no conceito do mesmo Deus. S. Anselmo toma como ponto de partida o conceito do ser absolutamente maior, acima do qual nenhum outro pode haver, e conclui que, do mesmo modo que existe só no pensamento, assim também o ser maior que se pode pensar deve igualmente existir na realidade, porque, de contrário, não seria o ser maior que se pode pensar. Quando um seu contemporâneo (Gaunilão) lhe objeta que, por essa forma, poderia igualmente concluir-se a existência da maior ilha possível, e Kant observa que cem táleres reais não têm mais do que aquilo que se pensa no conceito de cem táleres possíveis, nenhum dos dois toca no ponto decisivo da questão, a saber: que o ser absolutamente maior (o infinito) se comporta, relativamente à existência, de maneira essencialmente diversa do ente finito. S. Anselmo tem razão, quando diz que Deus, como absolutamente maior e insuperavelmente perfeito no ser, não pode por forma alguma ser pensado sem que o concebamos como necessariamente existente. Todavia, com isso não fica elucidado se ao conceito de absolutamente maior corresponde uma realidade objetiva ou uma possibilidade. Para tal não basta, como pensava Leibniz, a mera possibilidade de pensá-lo sem contradição. Por isso, S. Tomás de Aquino e muitos escolásticos (não todos) não admitiram o argumento ontológico. Pelo contrário, este encontrou sempre acolhida no racionalismo (Descartes, Leibniz, Wolff), o qual aceitava, sem mais, a ordem dos conceitos como ordem ontológica. Kant impugnou justamente o argumento. Não obstante, é inexata a sua afirmação de que todas as provas da existência de Deus têm como pressuposição lógica a validade de dito argumento e que, portanto, caducam com ele. Porque, se a existência (ou possibilidade real) do ser absolutamente maior consta por outra via, p. ex., mediante um raciocínio fundamentado no princípio de causalidade, fica também justificado o raciocínio que conclui a interna necessidade de sua existência. — Brugger.


Mas convirá muito a nosso propósito não permanecer neste plano de teses gerais. Vamos descer a algumas aplicações diretas do espírito clássico na filosofia de Tomás de Aquino. Desde já vamos vê-lo manter-se na perfeita medida e mesura clássica ao ocupar-se do problema fundamental de Deus. Tomás de Aquino aborda esse problema com uma coragem, que não tiveram seus antecessores, nem talvez seus sucessores, em toda a história do pensamento moderno. A coragem, a audácia intelectual — quando convém — é também um traço característico do espírito clássico em filosofia. Tomás de Aquino levanta corajosamente o problema de Deus desde as primeiras passagens da Summa Theologica. E verifica que, no seu tempo e até desde muito antes de seu tempo, existe nas mentes dos filósofos e nos livros de filosofia uma tese segundo a qual nós conhecemos a Deus imediatamente. Que significa isto de conhecer algo imediatamente? A palavra “imediato” tem em filosofia um sentido exato. Não ê uma palavra vaga. Significa rigorosamente ausência de todo meio ou intermediário entre quem conhece e o conhecido. Conhecimento imediato é, pois, o conhecimento intuitivo; por exemplo, conhecimento no qual entre o sujeito cognoscente e a coisa conhecida não se interpõe o veículo ou meio de nenhum conceito geral, de nenhuma demonstração discursiva, de nenhum processo de prova ou de descoberta. Pois bem; repito que Tomás de Aquino se defronta com uma opinião bastante difundida no seu tempo e segundo a qual a Deus se conhece imediatamente. O argumento de Santo Anselmo é um bom exemplo dessa opinião. Consiste em partir da ideia de Deus, que eu — cada um de nós — tenho dentro de mim. Esse Deus em que agora penso, penso-o como um ser infinito, quer dizer, tão grande que não pode haver maior. Pois bem; esse ser por mim pensado tem que existir necessariamente, diz Santo Anselmo, porque é evidente que estar na realidade e na ideia é mais do que estar somente na ideia; logo Deus existente na realidade é mais que Deus não existente ou existente somente na ideia. Este argumento que desde Santo Anselmo vem ressurgindo por toda a filosofia moderna, toma-o em conta Tomás de Aquino e o Crítica acerbamente, demonstrando sua invalidade. Por que carece de força probatória o argumento de Santo Anselmo? Tomás de Aquino coloca imediatamente o dedo na chaga. Carece de torça probatória porque supõe que o ser ideia e o ser existência são seres iguais, de idêntica estrutura; quantidades, em suma, que podem somar-se ou subtrair-se sem dificuldades. Mas somente as quantidades homogêneas podem somar-se ou subtrair-se-O argumento supõe, pois que a ideia de Deus e Deus realmente existente são quantidades homogêneas, adicionáveis. Pois bem; nessa suposição encontra-se — germinalmente — a hipótese primordial de que todo ser é igual a todo ser, quer dizer, a hipótese romântica da univocidade do ser. Mas esta hipótese é falsa e conduz ao idealismo e ao panteísmo. Supõe que nossas ideias e as coisas reais correspondentes às nossas ideias são seres de idêntica estrutura ôntica, e, portanto, permutáveis. Porém isto é — repitamo-lo — o erro fundamental do romantismo filosófico. Na realidade, uma coisa é a ideia e outra, perfeitamente distinta, a existência do objeto da ideia; uma coisa é aquilo que algo é e outra coisa é que esse algo exista. Eu posso dizer, por exemplo, aquilo que Rocinante é, embora Rocinante nem exista nem tenha existido. Confundir uma ideia com a existência do objeto correspondente a essa ideia, supõe naquele que faz isso a convicção de que entre a ideia e a coisa há perfeita homogeneidade de ser, de que o ser é unívoco. O idealismo é precisamente um modo romântico de filosofar, que identifica o ser da ideia com o ser da realidade existente e nega toda e qualquer diferença entre as estruturas primordiais do ser.

Exemplo típico de classicismo em filosofia é esta atitude de Tomás de Aquino diante do argumento de Santo Anselmo. Mas o espírito clássico do Doutor Angélico chega ainda a mais alto nível quando, inclinando-se sobre o argumento anselmiano, que acaba de refutar, esquadrinha aquilo que ainda pode haver nele de verdadeiro e aproveitável. O profundo respeito de Tomás de Aquino à realidade — espiritual, ideal ou material —, aos mínimos e mais leves matizes da realidade, é tão diligente, que tudo quanto é, inclusive as ideias falsas, têm para ele um sentido. De algum ponto de vista, sem dúvida, pensa Tomás de Aquino, terá que ser aproveitável o argumento de Santo Anselmo. Algum ângulo visual haverá, sem dúvida, visto do qual o argumento de Santo Anselmo mostre alguma parcela de verdade. Não existe ocorrência ou pensamento humano que, em algum sentido, não seja verdadeiro. Tomás de Aquino é eclético, justamente porque seu filosofar é clássico. Urge reabilitar o ecletismo, do qual se burlam, com graça demasiado fácil, os românticos da filosofia, cegos para as infinitas variantes e nuanças do real. Tem que se reabilitar o ecletismo pela simples razão de que a própria realidade é eclética. Se o argumento de Santo Anselmo é mau para estabelecer a existência de Deus, em compensação, é excelente e muito verdadeiro para estabelecer a natureza de Deus. Se já sabemos por alguma outra via que Deus existe e queremos conhecer sua natureza, então o argumento de Santo Anselmo nos ajuda poderosamente nisto. Porque então nos permite dizer de Deus que nele a essência e a existência se confundem, que seu ser consiste perfeitamente em existir, ou seja, que a existência em Deus não necessita uma causa própria e peculiar distinta da essência mesma de Deus. Eis como Tomás de Aquino, com admirável espírito de clássica ponderação e ecletismo, sabe aproveitar e incorporar tudo aquilo que há de bom e verdadeiro mesmo nas teses errôneas. [Morente]