Filosofia – Pensadores e Obras

cartesianismo

Conjunto dos fundamentos tradicionalmente considerados como típicos da doutrina de Descartes e aos quais se faz habitualmente referência tanto no sentido de aceitar quanto de refutar. Podem ser resumidos do seguinte modo: 1) caráter originário do cogito como autoevidência do sujeito pensante e princípio de todas as outras evidências; 2) presença das ideias no pensamento, como únicos objetos passíveis de conhecimento imediato; 3) caráter universal e absoluto da razão que, partindo do cogito e valendo-se das ideias, pode chegar a descobrir todas as verdades possíveis; 4) função subordinada, em relação à razão, da experiência (isto é, da observação e do experimento), que só é útil para decidir nos casos em que a razão apresenta alternativas equivalentes; 5) dualismo de substância pensante e substância extensa, pelo qual cada uma delas se comporta segundo lei própria: a liberdade é a lei da substância espiritual; o mecanismo é a lei da substância extensa.

Em sentido estrito, o cartesianismo teve representantes na Holanda (Henrique Régio, 1598-1679; Pierre Daniel Huét, 1630-1721; Gilberto Voëtius, 1589-1676), entre os Padres do Oratório e os Jansenistas (Antoine Arnauld, 1612-94; Pierre Nicole, 1625-95), através dos quais deu origem à lógica de Port-Royal, e entre os ocasionalistas (Arnold Geulingx, 1624-69; N. Malebranche, 1638-1715) (v. ocasionalismo; escolástica). Em sentido mais lato, podem ser consideradas como desenvolvimentos do cartesianismo da doutrinas de Spinoza, de Leibniz e mesmo de Locke, que dele extraíram um ou outro fundamento. Na filosofia moderna e contemporânea, permaneceram como características do cartesianismo sobretudo o 1), o 2) e o 4) fundamentos. [Abbagnano]


A filosofia de Descartes e de seus discípulos. — Por cartesianismo designa-se sobretudo as filosofias de Leibniz, de Spinoza e de Malebranche, os três grandes “cartesianos”. Leibniz desenvolve a física cartesiana, cria o cálculo diferencial, descobre, com a verdadeira fórmula da conservação da energia (mv2), o caráter espiritual da “força” que está no princípio do movimento do mundo: funda assim uma “dinâmica” e uma metafísica espiritualista. Malebranche aprofunda o cogito para descobrir no pensamento uma presença mais profunda que nós mesmos (Deus); seu racionalismo se desenvolve em torno de uma intuição mística. Quanto ao sistema definitivo de Spinoza (exposto na Ética), ele pretende concluir os sistemas que o precedem e realizar a inteligibilidade absoluta, tanto no que concerne a Deus quanto no que se refere à existência concreta do homem. No séc. XVII, o cartesianismo é invocado ao mesmo tempo pelos idealistas, os espiritualistas, que se pretendem apoiados em Malebranche, e na metafísica de Descartes, e pelos materialistas, que reivindicam o apoio de sua física. A diversidade de interpretações advém da riqueza e da profundidade do ensinamento de Descartes. O ponto de partida de suas “meditações”, que fazem “tabula rasa” de tudo que sabemos para reconstruir um saber certo e verdadeiro, inspirou diretamente as Meditações cartesianas de Husserl, uma das mais completas exposições da moderna “fenomenologia”. [Larousse]


A dúvida como método.
Assim Descartes busca uma verdade primeira, que não possa ser posta em dúvida, que resista a toda dúvida. Quer dizer que, por um movimento sutil do seu espírito, Descartes converte a dúvida em método. Como? Negativamente, aplicando a dúvida como uma peneira, como um crivo que coloca ante qualquer proposição que se apresente com a pretensão de ser verdadeira; e então exige das verdades não somente que sejam verdadeiras, mas também que sejam certas. Tudo o que o preocupa é buscar a certeza, e o critério de que se vale é a dúvida. A mesma dúvida que derrubou o pensamento aristotélico, essa mesma lhe serve para encontrar o seu; porque se a dúvida corroeu o sistema aristotélico e o tornou inservível, tentemos agora aplicar a dúvida, para que tudo aquilo em que a dúvida (levada a termos de exagero rigoroso) provoque impressão, tudo isto fique eliminado das bases da filosofia, A dúvida se converte, pois, em método; e o que se tenta aqui descobrir é uma proposição que não seja duvidosa, que não seja dubitável.

Colocado já neste plano, no plano de não se interessar pela quantidade do conhecimento, mas de obter mesmo que seja um só, mas indubitável; colocado já nesse plano, a marcha do pensamento cartesiano não pode ter mais que um destes dois resultados: ou encalhar na esterilidade completa, naufragando no cepticismo total, terminando assim a navegação filosófica no pélago do cepticismo, ou chegar forçosamente a descobrir pela primeira vez na história do pensamento humano algo completamente novo: o imediato. Descartes tinha que descobrir o imediato, ou fracassar na sua empresa. Com efeito, descobriu o imediato.

Existência indubitável do pensamento.

Nosso conhecimento das coisas, na filosofia de Aristóteles, consiste em possuir conceitos, em preencher nossa mente de conceitos, que se ajustem às coisas. Um conceito é verdadeiro quando o que o conceito diz e o que a coisa é, coincidem. Assim, no sistema aristotélico nossa relação com as coisas é uma relação mediata. Por quê? Porque está fundada num intermediário. Esse intermediário é o conceito. O conceito nos serve de intermediário entre nossa mente e as coisas. ‘”Mediante” o conceito conhecemos as coisas. Nosso conhecimento é mediato. Por isso o conhecimento aristotélico era sempre , discutível; porque sempre cabia discutir se o conceito se ajustava ou não se ajustava à coisa. Visto que a verdade do conceito consistia em ajustar—se à coisa sendo o conceito a mediação ou o intermediário entre nós e a coisa, sempre cabia discutir a verdade do conceito. Quer dizer, que neste sistema aristotélico, o conhecimento oferece sem remédio o flanco à dúvida.

Mas o que busca Descartes é um conhecimento que não ofereça o flanco à dúvida. Não terá, pois, outro recurso senão fracassar e cair no cepticismo absoluto ou chegar a um conhecimento que não seja mediato, que não se faça “por meio” do conceito, mas que consista numa posição tal, que entre o sujeito que conhece e o conhecido não se interponha nada. Pois bem: que coisa há tal que não necessite eu um conceito entre mim e ela? Que coisa há capaz de ser conhecida por mim com um conhecimento imediato, com um conhecimento que não consista em interpor um conceito entre mim e a coisa? Pois bem: o único elemento capaz de preencher essas condições de imediatismo é o pensamento mesmo. Nada há mais que o pensamento mesmo. Se eu considerar que todo pensamento é pensamento de uma coisa, eu poderei sempre duvidar de que a coisa seja como o pensamento a pensa. Mas se eu dirigir meu interesse e meu olhar não à relação entre o pensamento e a coisa mas à relação entre o pensamento e eu; se tomar o próprio pensamento como objeto, então aqui já não poderá penetrar a dúvida. A dúvida pode instalar-se no problema da coincidência do meu pensamento com a coisa; mas a dúvida não pode, não tem morada possível no pensamento mesmo. Dito de outro modo: se eu sonhar que estou metido numa barca e remando num rio, meu sonho pode ser considerado “falso”, pois eu não estou realmente em nenhuma barca e em nenhum rio, mas metido na cama; porém o que não é falso é que eu estou sonhando isto. Se eu então disser: “estou sonhando isto”, não me enganarei. Se eu pensar um erro, uma falsidade, e disser: “penso isto”, sem tentar averiguar se isto é verdade, mas que o penso, não poderei duvidar de que o estou pensando. Em suma, o fenômeno de coincidência, o pensamento mesmo, é indubitável. O dubitável é que o pensamento coincida com a coisa que está atrás dele. Mas no pensamento mesmo a dúvida não tem sentido.

Por isso Descartes, lançando-se a procurar que é aquilo que é indubitável, não tem mais recurso que fazer um giro de conversão para dentro de si mesmo e situar o centro de. gravidade da filosofia, não nas coisas, mas nos pensamentos. Então Descartes, à pergunta da metafísica: que é o que existe? quem existe? não responde já: existem as coisas, mas responde: existe o pensamento; existo eu pensando; eu e meus pensamentos. Por quê? Porque a única coisa que há para mim de imediato é o pensamento; por isso não o posso pôr em dúvida. O que posso pôr em dúvida é o que está além do pensamento; o que não atinjo mais que “mediante” o pensamento. Mas aquilo que sem mediação alguma posso ter na mais íntima posse é algo do qual não posso duvidar; não posso duvidar de que tenho pensamentos. Se fizermos a hipótese extravagante — que faz Descartes — do gênio maligno dedicado a enganar-me, se me engana é que penso. Se os pensamentos que tenho forem todos eles falsos, é certo que tenho pensamentos. Por conseguinte, eis aqui que a necessidade histórica da apresentação do problema, o fato de que o problema seja proposto por um pensamento não inocente, mas prudente e cauteloso, instruído por vinte séculos de tradição filosófica, esse fato histórico impele o pensamento moderno a proporse inicialmente o problema de uma verdade indubitável, o problema da indubitabilidade, ou seja o problema da teoria do conhecimento; e logo a procura traz a verdade indubitável e o obriga a fazer um giro de conversão para encontrar a única coisa indubitável, a única rigorosamente indubitável, que é o pensamento mesmo. Eu posso pensar que estou sonhando, que nada do que penso é verdade; porém, é verdade que eu penso. Eu posso estar enganado por um gênio maligno; porém, se estiver enganado, os pensamentos falsos que este gênio introduziu em mim são pensamentos, eu os tenho.

E assim a filosofia moderna muda por completo seu centro de gravidade e dá ao problema da metafísica uma resposta inesperada. Quem existe? Eu e meus pensamentos. Então, por acaso o mundo não existe? É duvidoso. A coisa é grave, muito grave, porque agora acontece que se exige de nós uma atitude mental completamente distinta da natural e espontânea. Espontânea e naturalmente todos acreditamos que as coisas existem; todos os homens somos espontânea e naturalmente aristotélicos: acreditamos que esta lâmpada exista e que seja lâmpada, porque eu tenho o conceito de lâmpada em geral e encontro nesta coisa o conceito de lâmpada. Todos acreditamos que o mundo exista, ainda que eu não exista. Porém, agora se nos propõe uma atitude vertiginosa; propõe-se-nos algo desusado e extraordinário, como uma espécie de exercício de circo. Apresenta-se-nos nada menos que isto: que a única coisa de que estamos certos que exista sou eu e meus pensamentos; e que é duvidoso que além dos meus pensamentos existam as coisas. De maneira que o problema, para a filosofia moderna, é tremendo, porque agora a filosofia não tem mais solução senão tirar as coisas do “eu”.

Trânsito do eu às coisas.
E vamos supor que consegue tirá-las, que consegue sair da prisão do eu e chegar à realidade das coisas. Será esta sempre uma realidade derivada; nunca será uma realidade primária. (De modo que eis aqui uma série de condições que o idealismo nos impõe e que são extraordinariamente difíceis. A filosofia começa a ser difícil. É agora que a filosofia começa a ser difícil; porque agora é que a filosofia, por necessidade histórica e não por capricho, volta as costas ao sentido comum; volta as costas à propensão natural e nos convida a realizar um exercício acrobático de uma extrema dificuldade, que consiste em pensar as coisas como derivadas do eu. Eis onde chegamos com a nova tese do idealismo; ao problema mais tremendo e mais difícil. Como o vamos resolver? De início vamos escutar reverentemente as soluções que se deram.

A partir de Descartes, a filosofia moderna não fez senão pensar sobre este problema: como tiraremos o mundo exterior do pensamento e do eu? como extrairemos o mundo exterior do pensamento? A esse problema fundamental do idealismo moderno, as soluções que se deram são muitas. Podem agrupar-se em dois grandes grupos: primeiro, o grupo das soluções psicológicas, que consistem em investigar a alma humana, suas leis internas, por introspecção e ver como a alma humana opera com seus pensamentos para deles extrair a crença no mundo exterior. Foram principalmente ingleses os que desenvolveram esta solução psicologista. Em contraste há outro grupo de soluções que chamaremos lógicas. Essas soluções tentam fundar a objetividade da realidade e das coisas sobre leis do pensar mesmo, do pensar racional, lógico. Esta solução logicista ou epistemólogo — teoria do conhecimento — encontrá-la-emos desenvolvida especialmente na Alemanha. Podemos simbolizar em dois nomes os dois pontos de vista contrários: Hume, na Inglaterra, explicará o mundo das coisas exteriores como produto das leis psicológicas da nossa alma; Kant, na Alemanha, explicará o mundo da realidade sensível como resultado ou produto das leis de síntese lógica do nosso pensamento. Porém num e noutro se adverte que as palavras “ser” e “pensamento” têm agora uma significação completamente distinta daquela que tiveram para Parmênides, Platão e Aristóteles. [Morente]