Filosofia – Pensadores e Obras

coisa-em-si

A expressão “coisa-em-si” (Ding-an-sich), posta em circulação por Kant, designa a coisa, o ente, tal como existe independentemente de nosso conhecimento; portanto, o ente real, em oposição ao fenômeno, que não existe “em si”, mas tão-somente “para nós”. Kant chama a coisa em si também númeno, em oposição ao fenômeno, isto é, objeto do entendimento em oposição ao objeto dos sentidos, porque só pode ser dado a uma intuição intelectual, e não a uma intuição sensível. Segundo Kant, a coisa em si pode ser por nós pensada de maneira indeterminada; não pode porém ser “conhecida”, isto é, ser determinada em sua essência (em seu “ser tal”). Por isso, em oposição ao realismo, o criticismo de Kant é fenomenalismo. — De Vries. [Brugger]


Kant chamou “coisas-em-si” às realidades que não se podem conhecer por se encontrarem fora dos limites da experiência possível, isto é, que transcendem as possibilidades do conhecimento, tal como foram delineadas na Crítica da Razão Pura. As coisas-em-si podem ser pensadas – melhor ainda, pode pensar-se o conceito de uma coisa-em-si enquanto é possível, ou não envolve contradição – mas não ser conhecidas. Uma coisa é pensar um conceito, outra coisa é dar ao mesmo validade objetiva, isto é, possibilidade real e não meramente lógica. As coisas-em-si opõem-se às aparências, no sentido kantiano de aparência. Kant mostra que nem o espaço nem o tempo são propriedades de coisas-em-si. Mostra também que os conceitos do entendimento são também transcendentais e não estruturas ontológicas próprias de uma realidade em si.

A natureza e função do conceito de coisa-em-si na filosofia crítica de Kant foi objeto de muitos debates, alguns deles provocados pelo caráter vacilante do vocabulário kantiano. Umas vezes, Kant distingue entre coisa-em-si e objeto transcendental. outras vezes identifica-os ou deixa simplesmente de falar no último. Umas vezes, a noção de coisa-em-si parece distinta da de númeno; outras vezes, é praticamente idêntica. [Ferrater]


(in. Thing in itself; fr. Chose en soi; al. Ding an sich; it. Cosa in se).

O que a coisa-em-si é, independentemente da sua relação com o homem, para o qual é um objeto de conhecimento. Nem a expressão, nem a noção são próprias e originárias de Kant, como comumente se crê, mas representam “a convicção dominante de toda a filosofia do séc. XVIII” (Cassirer, Erkenntnissproblem, VII, 3; trad. it., II, pp. 470 ss.). A origem dessa noção pode estar em Descartes, que, em Princípios de filosofia (II, 3), assim se exprime: “Será suficiente observar que as percepções dos sentidos referem-se apenas à união do corpo humano com o espírito e que, enquanto de ordinário nos mostram aquilo que nos possa prejudicar ou ajudar nos corpos externos, não nos ensinam absolutamente, mas só ocasional e acidentalmente, o que tais corpos são em si mesmos”. Essa distinção entre as “coisas-em-si mesmas” e as “coisas em relação a nós”, isto é, como objetos de nossas faculdades sensíveis, torna-se lugar-comum na filosofia do Iluminismo. D’Alembert Élém. de phil., § 19), Condillac (Logique, 5), Bonnet (Essai analytique, § 242) repetem-na quase com as mesmas palavras, e Maupertuis (Lettres, IV) a expressa em termos tais que Schopenhauer teve a impressão de que Kant o plagiara. “Desde que estejamos convencidos”, diz Maupertuis, “de que entre nossas percepções e os objetos externos não subsiste nenhuma semelhança nem nenhuma relação necessária, deveremos admitir também que tais percepções não passam de simples aparência. A extensão, que costumamos considerar como o fundamento de todas as outras propriedades, e que parece constituir sua verdade íntima, em si mesma nada mais é do que fenômeno” (Cf. Schopenhauer, Die Welt, II, p. 57).

Nesse ponto, como em muitos outros, Kant não fez senão inspirar-se na orientação geral do Iluminismo. Todavia, em sua doutrina, como, aliás no Iluminismo, o conceito de coisa-em-si não permanece um simples lembrete da limitação do conhecimento humano e uma advertência para afastar o homem das especulações metafísicas. Aclara-se, mais precisamente, como um instrumento técnico para circunscrever os limites do conhecimento humano. Do começo ao fim de Crítica da Razão Pura, Kant repete que o conhecimento humano é conhecimento de fenômenos, não de coisa-em-si, já que ele não se baseia na intuição intelectual (para a qual ter as coisas presentes significaria criá-las), mas na intuição sensível, para a qual as coisas são dadas sob certas condições (espaço e tempo). De acordo com essa diretriz fundamental, Kant, após haver estabelecido a possibilidade do conceito de coisa-em-si (ou númeno), passa a distinguir uma doutrina positiva e uma doutrina negativa dos númenos. “O conceito de um númeno, isto é, de uma coisa que deve ser pensada não como objeto dos sentidos, mas como coisa-em-si (unicamente para o intelecto puro), não é em nada contraditório, já que não se pode afirmar que a sensibilidade seja o único modo de intuição”. Isso posto, se entendermos por númeno “o objeto de uma intuição não sensível”, isto é, criadora ou divina, teremos o conceito de númeno em sentido positivo. Mas na realidade esse conceito é vazio, porque nosso intelecto não pode estender-se além da experiência senão problematicamente, isto é, não com a intuição nem com o conceito de uma intuição possível. Portanto, “o conceito de número é só um conceito-limite (Grezbegriff), para circunscrever as pretensões da sensibilidade, portanto de uso puramente negativo” (Crít. R. Pura, Analítica dos princípios, cap. III). Essa função puramente negativa da coisa-em-si permaneceu como um dos princípios da doutrina kantiana do conhecimento, porque garante, nela, o caráter finito (isto é, não-criativo) do conhecimento humano.

Entretanto, a filosofia pós-kantiana assinala a rápida destruição desse conceito. Já as Cartas sobre a filosofia kantiana (1786-87) de Reinhold, que faziam uma exposição do criticismo que, durante muito tempo, serviu de modelo para a interpretação do próprio criticismo, reduzindo o fenômeno a representação, tornavam dúbia ou problemática a função da coisa-em-si; depois, esta era explicitamente negada, por Schulze e Maimon, com base em sua incognoscibilidade. Mas quem começou a extrair consequências dessa negação foi Fichte: este viu que, eliminada a condição limitativa, constituída pela coisa-em-si, o conhecimento humano tornava-se criador não só da forma, mas também do conteúdo da realidade que constitui seu objeto, transformando-se naquela “intuição intelectual” que Kant atribuía somente a Deus, fazendo do sujeito dela, isto é, do Eu, um princípio infinito (Wissenschaftslehre, 1794, § 4). Essas transformações marcam a transição do criticismo, que é filosofia de tipo iluminista, ao romantismo, que é uma filosofia do inifinito. O romantismo assinalava o crepúsculo definitivo da doutrina da coisa-em-si, que fora a insígnia do iluminismo porque servira para exprimir a limitação fundamental do conhecimento humano. A noção de incognoscível, que o positivismo evolucionista às vezes comparou com a coisa-em-si, na realidade é completamente diferente. Em primeiro lugar, tem função oposta à da coisa-em-si: serve para oferecer à metafísica e à religião um domínio de competência específica, em vez de restringir as pretensões do conhecimento científico. Em segundo lugar, o Incognoscível é mais definido positivamente pela esfera de problemas que a ciência não resolve do que negativamente pelos limites intrínsecos da própria ciência. A filosofia contemporânea, que restabeleceu e continua restabelecendo a doutrina do limite do conhecimento, entende que ele é demarcado pelo alcance dos métodos ou dos critérios que presidem à validade do conhecimento; portanto, já não precisa da iluminista “coisa-em-si” para impor moderação às pretensões cognitivas do homem. [Abbagnano]